2009 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2009

As férias vem aí

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O agente de turismo mostra fotos de lugares distantes, paradisíacos. Indecisos, ficamos entre um destino e muitos outros; quando escolhemos um deles passamos aos hotéis e, de novo, ficamos em dúvida.

Temos poucos dias para sair um pouco, não podemos errar. Ponderamos sobre custos e benefícios afinal quase nunca saímos, então que tal o hotel cinco estrelas, merecemos, não?

Conversamos mais através de olhares que por meio de palavras. Ela quase não contém o seu entusiasmo. Estamos enfim prontos para fechar quando ela decide refletir mais um pouco, talvez descansássemos mais se fôssemos para um desses resorts em praias do nordeste, precisamos de sol e umas caipirinhas para por os nervos em ordem, olhe que o ano foi muito difícil.

O agente interrompe o que está fazendo no computador, cancela o pacote já quase fechado e fica olhando para nós com uma imensa cara de interrogação. Há pessoas esperando lá fora, muita gente viaja nessa época do ano e nós dois aqui embaçando, demorando demais para tomar uma decisão.

Entramos no mundo dos resorts e a primeira coisa que vemos é uma foto de entardecer com uma barraca de praia onde se vendem iguarias e uma moça de maiô que não olho muito porque ela está atenta e sempre diz que privilegio coisas que têm algum erotismo. Depois falamos sobre os hotéis e estamos prontos para optar por um quando o vendedor descobre que as reservas estão esgotadas, nessa época do ano o movimento é grande, os senhores que me desculpem, mas calma, temos outras opções.

Sobre a mesa há uma foto de criança recém-nascida. O agente percebe que estou olhando para a foto e sorri dizendo que é a filha dele, agora com três meses. Ela pergunta ao vendedor se a criança está dando trabalho e ele, muito alegre, diz que se trata do melhor trabalho do mundo, nada paga isso de ter uma criança em casa, ainda mais quando se trata do primeiro filho.

Estou assim, esperando, enquanto ela pergunta sobre outras opções de viagens. O celular vibra no meu bolso e penso que talvez seja alguém precisando de mim, alguém que vai me tirar daqui, dessa imensa indecisão. Enfio a mão no bolso, pego o telefone, mas ele parou de vibrar, talvez nem tenha vibrado de verdade porque o que eu queria é me livrar disso tudo, nem que fosse falando sobre um assunto absurdo com alguém que nem mesmo conheço.

Quase uma hora depois o vendedor mostra sinais de impaciência que depressa evolui para irritação. É quando digo a ela que o melhor é ir para casa, pesquisar na internet, pensar melhor e voltar quando tudo estiver decidido. Ela faz mais algumas perguntas, o agente responde com má vontade e enfim nos levantamos e saímos, indo ao encontro aos olhares furiosos das pessoas que aguardam a sua vez.

Há alguns anos pensamos em fazer uma viagem de férias para conhecer um pouco do mundo fora da cidade em que moramos. O problema é que nunca conseguimos decidir para onde ir, daí que ficamos aqui, trancados em casa, eu assistindo aos programas de televisão, ela lendo revistas de viagens e traçando roteiros que poderemos fazer nas próximas férias.

Escrito por Ayrton Marcondes

31 outubro, 2009 às 9:56 am

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O velho centro

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liceuUm editorial da “Folha de São Paulo” de ontem e artigo de Clóvis Rossi, publicado na mesma página, falam sobre a degradação do centro de São Paulo, citando o caso do Liceu Coração de Jesus hoje cercado por consumidores de crack. Clóvis Rossi afirma que um pedaço da cidade está morrendo referindo-se à decadência do Liceu que, segundo informa o editorial, de seus 3000 alunos do passado atualmente conta com apenas 288. Confessa Rossi não ser simpático ao saudosismo, mas que não há como deixar de cair uma lágrima por um ou outro desmanche que acontece na cidade.

Falar sobre o passado nem sempre representa saudosismo. O que não se pode é descambar para a pieguice, chorando por um mundo melhor que, infelizmente, está acabando.

O que também não se pode é deixar de lado o testemunho sobre o passado só porque existe a ameaça de cair no saudosismo. Pois, eu vi o Liceu funcionando a todo vapor no seu período áureo embora nunca tenha estudado lá – um primo foi aluno do Liceu. Falar sobre isso inevitavelmente me devolve outra época, povoada por pessoas que de repente se erguem de seus túmulos para refazer um pedaço da história da cidade de são Paulo.

Meu tio morava num apartamento localizado na Alameda Nothman, bem trás do Liceu. Naturalmente a cidade era outra e o centro tinha o seu viço. Para nós que morávamos no interior e vínhamos para São Paulo o Liceu era, por assim dizer, passagem obrigatória. Na antiga Estação Rodoviária, localizada perto da Estação Sorocabana, desembocavam os ônibus vindos de toda parte do país, inclusive os da região onde morávamos. Isso quer dizer que ao desembarcar na Rodoviária tínhamos que passar pelo Largo Coração de Jesus – onde fica o Liceu - para chegar ao apartamento do meu tio.

Percorri esse caminho inúmeras vezes e sou capaz de descrevê-lo em detalhes.  Andava-se por ali com segurança, pelo menos até o início da noite. Nada da bandidagem ostensiva e de consumidores de drogas. De manhã, bem cedo, a região era ocupada por grande número de estudantes que vinham para as aulas no Liceu. Parece-me vê-los agora, conversando na praça, chegando ou saindo do colégio. O mundo tinha cor, cores puras, nada da degradante sujeira que se vê por ali hoje em dia. Respirava-se um ar nem sempre puro, mas de todo modo não tão poluído como o de agora. E dali se ia serenamente a pé até o Largo do Paissandu, região chique onde ficavam os melhores cinemas, bons restaurantes e passavam bondes elétricos que corriam pela Av. São João afora.

Era o velho centro e não há como não se sentir saudades dele. Não se trata de pieguismo porque é inevitável pensar que, de algum modo, nós mantemos pelo menos um dos nossos pés lá, parte do que fomos permanece no passado, imutável e fazendo parte de uma paisagem e coreografia muito viva em nossas memórias.

Dá, sim, muita pena a nós que amamos tanto o centro da cidade vê-lo assim, em tão injustificável degradação. Dá pena ver ruas tão belas com aquelas próximas à Praça da Sé sitiadas por camelôs.

Dá muita saudade, sim. O velho centro que conhecíamos continua bem vivo, permanecendo em nossas memórias como aquele Beco da poesia de Manuel Bandeira: imóvel, suspenso no ar.

O Velho e o Mar

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Um tubarão de mais de cinco metros apareceu nos mares da Austrália. O tubarão gigante atacou e matou outro de tamanho menor. O fato ocorreu na costa de Brisbane, capital do Estado australiano de Queensland.

As notícias sobre tubarões tão grandes atacando pessoas não são muito frequentes. Os tubarões são peixes cartilaginosos pertencentes à subclasse dos elasmobrânquios representada por 815 espécies. É relativamente fácil diferenciar, pelo aspecto externo, peixes cartilaginosos de peixes ósseos: nos cartilaginosos a boca situa-se ventralmente, a pele é coberta por escamas duras chamadas placóides, lateralmente ao corpo existem aberturas denominadas fendas branquiais e as nadadeiras dispõem-se nas posições que observamos em fotos de tubarões, destacando-se a nadadeira caudal.

Nas águas costeiras vivem espécies como a tintureira e os tubarões-martelo; em águas profundas encontram-se tubarões grandes como o anequim e o grande tubarão branco.

As notícias sobre ataques de tubarões a seres humanos, curiosamente quase sempre vêm da Austrália. Há em certas regiões daquele país grande preocupação com a saúde dos banhistas principalmente em épocas em que as águas marítimas são frequentadas por cardumes de pequenos peixes que servem de alimento aos tubarões. Por isso, as praias mais populares são protegidas por redes e bóias com anzóis e iscas para evitar os ataques dos predadores. São comuns por lá os tubarões tigre, branco e o tubarão-de-cabeça-chata (também conhecido como touro).

Existem tubarões tímidos, mas muitos deles são muito perigosos. O grande tubarão branco pode atingir 6 m e é muito feroz. Justamente a maior parte dos acidentes com tubarões acontece nas águas tropicais e temperadas da região australiana. Durante a Segunda Guerra Mundial foram registrados vários ataques de tubarões a vítimas de naufrágios.

oldmanseaFalar sobre tubarões leva-nos ao grande livro que é “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Trata-se de um romance essencialmente de ação em que o confronto entre o homem e a natureza se dá através da luta entre o velho pescador cubano Santiago e os tubarões. Santiago passa por uma maré de azar – há 84 dias não pega nada - e sonha pescar um grande peixe para provar a outros pescadores que não está acabado. Solitário e determinado Santiago acaba conseguindo, mas os tubarões atacam e progressivamente retiram pedaços do peixe. Ao retornar à praia resta apenas a carcaça que, entretanto, serve como prova diante de outros pescadores que o taxavam o velho e azarado.

“O Velho e o mar” (The old man and the sea – título em inglês) é leitura indispensável e altamente recomendada. O livro pode ser encontrado nas livrarias, publicação da Editora Bertrand do Brasil com tradução de Fernando de Castro Ferro.

A trama de “O Velho e o mar” também serviu à realização de um filme com o mesmo nome. A produção é de 1958 e dirigida John Sturges. No papel do pescador Santiago está o grande ator Spencer Tracy, indicado para receber o Oscar de melhor ator pela sua atuação. O filme recebeu um Oscar de melhor trilha sonora. Impressionam as imagens de Santiago enfrentando o mar com um pequeno barco, sua solidão e respeito pela natureza, sua luta em busca do sonho de pescar um peixe grande, o ataque de tubarões e a forma como enfrenta as adversidades.

A versão cinematográfica de “O velho e o mar” está disponível em DVD.

Só um pedaço de muro

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Encontrei o pacotinho no fundo de uma gaveta que não era aberta há muito tempo. Ao abri-lo dei com pedaços pequenos de concreto. Por que guardara aquilo? Só depois de alguns instantes fui capaz de reconstituir o caminho do material que tinha em mãos até a minha gaveta.

Houve tempo em que os pequenos pedaços de concreto fizeram parte de um muro de 155 Km que cercou Berlim Ocidental, durante 28 anos. Quando da queda do Muro de Berlim um sobrinho que morava na Alemanha recolheu alguns destroços e os trouxe ao Brasil onde os distribuiu entre seus parentes. Foi assim que fiquei ligado à história recente da Europa, tendo ao meu alcance relíquias que comprovavam acontecimentos que acompanhei à distância.

Como se sabe, o Muro foi construído pela República Democrática Alemã em 13 de agosto de 1961. Eram os tempos da Guerra Fria e o Muro representava a divisão do mundo em dois blocos: a República Federal Alemã (Alemanha Ocidental)  e República Democrática Alemã (Alemanha Oriental). Do lado ocidental, chefiado pelos Estados Unidos, alinhavam-se os países capitalistas; do lado oriental faziam parte os países socialistas, alinhados com o regime soviético.

O Muro dividia, portanto, não só a cidade de Berlim em duas como o mundo em dois blocos. Ele foi destruído no dia 9 de novembro de 1989, considerado como marco final da Guerra Fria.

Passados 20 anos desde a destruição do Muro, pedaços dele continuam a ser comercializados sob a forma de suvenires.  Notícia divulgada pelo jornal francês “Le Monde”, na edição de 22/10/09, informa que, em maio, a chanceler alemã Angela Merkel ofereceu um pedaço de bom tamanho ao presidente da França, Nicolas Sarkozy;  o corredor jamaicano Usain Bolt recebeu da prefeitura de Berlim um bloco de muro, pesando de 2,7 toneladas, como recompensa por seus três títulos mundiais conquistados em campeonatos de atletismo em agosto.

Hoje em dia há quem condene a exploração mercantil da antiga Cortina de Ferro dizendo que estão comercializando a idéia de liberdade. Por outro lado, é impossível comprovar a autenticidade das relíquias comercializadas fato que gera protesto entre os comerciantes.

Eu? Bem, eu tenho uns pedaços do Muro de Berlim aqui em casa. Quando li no “Le Monde” sobre fragmentos serem ofertados a gente tão importante, liguei para o meu sobrinho que garantiu a autenticidade do material que me cedeu: ele mesmo pegou pedaços do Muro lá em Berlim, enfiou num saco e os trouxe para o Brasil.

Agora o “meu” Muro está sobre a mesa, aguardando a minha decisão sobre o seu destino. Olho para esses fragmentos e me pergunto se o acaso não terá feito chegar até mim o tato de alguma mão desesperada que tentou escalar Muro para fugir da cortina de Ferro; ou se um ponto que me parece mais escuro não conterá uma partícula do sangue de alguém baleado durante a escalada, impedindo-o de chegar ao lado ocidental.

De qualquer modo, parece-me inútil conjeturar sobre qualquer coisa. A Guerra Fria que tanto afetou as nossas vidas terminou; é desaparecida a maioria dos homens que dela participou e nada mais existe a fazer em relação a isso.

O mundo é outro, diferentes são os dramas da humanidade atualmente. Refletindo sobre isso penso sobre a inutilidade de guardar fragmentos do Muro e chego a me levantar para jogá-los no lixo. Entretanto, algo me impede: trata-se do passado, de cenas chocantes que retornam fortes, vozes imperialistas que ecoam com sotaques fortes e ininteligíveis, corpos abatidos e e ideologias que se chocam, provocando derramamento de sangue.

A batalha está para recomeçar quando embrulho as pedras e as devolvo ao fundo da gaveta, trancando o passado para que ele não se liberte e de modo algum se repita.

Televisão e lazer

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dentro-da-tvJá faz algum tempo que fui convertido no tal “assinante” de TV a cabo e me rendi à assinatura de revistas semanais e mensais. No caso da TV a cabo não tive escolha: o prédio em que moro, como a maioria, abdicou da velha antena coletiva que permitia a sofrível recepção dos canais abertos. Já em relação às revistas não foi possível evitar o assédio das editoras que sabem explorar muito bem as nossas fraquezas através de uma bem sucedida campanha sobre necessidade de informação associada à qualidade das publicações e prazer da leitura.

Dirão que só participa quem quer, ninguém é obrigado a assinar nada e assim por diante. Discordo. Sou daqueles caras que tem mania de assistir a televisão e considero esse hábito essencial dado o escasso tempo que disponho para o lazer. A verdade é que a telinha está dentro de casa, não preciso me locomover para entrar em contato com o mundo através de noticiários, shows musicais, filmes e todo o conteúdo de uma programação exibida 24 horas por dia. Então, qual é o problema?

O problema da TV a cabo é justamente a qualidade da programação. Não importa que as assinaturas dêem direito a tantos e tantos canais porque na maioria deles observa-se uma incansável repetição de programas capaz de irritar até mesmo o mais penitente viciado em televisão. Quem duvida que assine essa novidade chamada HD: verá que na verdade poucos canais (cerca de meia-dúzia, no interior) transmitem com a nova tecnologia e, ainda assim, nem todos os programas vão ao ar dentro do novo formato. Pior que isso é a repetição contínua, sendo que um dos canais testa a paciência do assinante através da transmissão, horas a fio, de uma overdose de episódios dos Simpsons. Haja atração pelo Homer Simpson e sua gente que resista à maratona da série exportada pela TV norte-americana.

De algum modo é importante frisar que estamos falando de lixo cultural embora seja necessário reconhecer que, como sempre acontece em relação ao joio, encontra-se algum trigo no meio dele. Há, sim, bons programas, mas destaque-se que isso não representa ao menos a média da programação.

Escrevo sobre esse assunto porque, dias atrás, conversando com um amigo, ele discordava da minha opinião, dizendo que a variedade tem a vantagem de oferecer matérias para todos os gostos. Acusava-me ele de exigir uma programação elitista num país onde grande parte da população é inculta e não preparada para tanta sofisticação. Para esse meu amigo os tais programas populares que expõem as vísceras do cotidiano dos menos favorecidos podem ser um espelho cruel da sociedade, mas o fato é que divertem na medida em que substituem a antiga fofoca entre as famílias que antes se reuniam para uma boa troca de conversa mole.

Devo admitir alguma razão ao meu amigo, ainda mais em se considerando que hoje em dia, mesmo nas periferias, as pessoas não correm o risco de se reunir à noite, primeiro por falta de tempo, depois pela insegurança em sair de casa, pelo menos nas cidades maiores. Por outro lado, destaco que justamente a televisão torna-se ferramenta eficaz, talvez a única, capaz de alcançar toda sorte de pessoas em suas casas em momentos de lazer, daí sua obrigação em ser veículo de matérias mais educativas ainda que exibidas de forma subliminar.

Obviamente essa discussão pode ir muito longe, mormente se adentramos o território das telenovelas que ditam hábitos à população, os programas de auditório que muitas vezes escandalizam o público e os noticiários policiais que banalizam o crime na medida em que o divulgam de forma detalhada e ininterrupta. Faz-se muito dinheiro à custa da desgraça coletiva explorando-se a atração natural das pessoas pelo insólito que existe no cotidiano.

Entretanto, eis que me desencaminho. Na verdade comecei a escrever sobre esse assunto para reclamar dos filmes exibidos na televisão, sempre os mesmos, raramente novidades, impondo-se por uma repetição que não condiz ao preço que pagamos mensalmente pelas assinaturas de TV a cabo. Acontece que eu não consigo deixar de lado a televisão e não custa reclamar. Vai que por grande sorte alguém responsável pela programação de filmes da televisão leia um texto como esse e se sensibilize. Daí que a minha intenção é mesmo fazer uma corrente em prol da melhora da programação. Se você aí concordar com o que estou dizendo e tiver algum meio de divulgar a sua insatisfação, não deixe de fazer isso: quem sabe alguém importante escute e as coisas se modifiquem.

Para terminar, aproximam-se as eleições de 2010 e virão os horários políticos no rádio e na televisão. Nada contra a necessidade dos candidatos divulgarem os seus programas de atuação caso sejam eleitos, mas todo mundo sabe que não é bem assim: as coalizões realizadas entre os partidos, sabe-se lá a que preço, garantem mais tempo de propaganda durante o qual são feitas promessas sedutoras quase nunca cumpridas (para ficar no mínimo sobre o que acontece).

Será que existe algo que possamos fazer em relação a isso?

A importância da literatura

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A Editora Cosacnaif acaba de lançar o primeiro volume da coleção organizada pelo italiano Franco Moretti, professor de literatura na Universidade de Stanford, cujo tema central é o romance. Esse primeiro volume tem como título “A cultura do romance” e reúne, nas suas 1120 páginas, vários ensaios de diferentes autores . A ele seguirão outros quatro volumes com os seguintes títulos: “As formas” (volume 2), “História e Geografia” (volume 3), “Temas, lugares e heróis” (volume 4) e “Lições” (volume 5). Participam da obra 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro, entre eles vários escritores e críticos.

Em seu conjunto a obra tem, como dela se espera, intenção totalizante, visando dentro do alentado de suas páginas englobar o que se escreveu sob a forma de romance nas diferentes culturas.

O primeiro volume é iniciado com um texto de Mario Vargas LLosa que diz a que vem a obra já no seu título: “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. Llosa discute não só o papel do romance como o da literatura em geral. O escritor peruano destaca a função da literatura enquanto meio de comunicação entre os seres humanos permitindo-lhes o diálogo independentemente das funções que desempenham, nacionalidades e circunstâncias que os cercam. Em particular só o romance disponibiliza o conhecimento totalizador e imediato do ser humano. E por essa linha segue Llosa, destacando a importância da literatura enquanto denominador comum da experiência humana.

Llosa se propõe demonstrar que a literatura, em especial o romance, não é um passatempo de luxo: trata-se, segundo suas palavras, “de uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana, uma atividade insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática, de indivíduos livres, e que, por isso, deveria ser inculcada nas famílias desde a infância e deveria fazer parte de todos os programas de educação como uma das disciplinas básicas”.

Para mim um aspecto maior da literatura – e por extensão do romance – é o convite permanente à transcendência, lembrando e desobrigando os seres humanos à mesmice de suas rotinas diárias. Ela torna possível uma viagem ao redor de si mesmo através de experiência ficcional que mantém sólidos vínculos e pontos de contato com a experiência pessoal de cada leitor, abrindo-lhe novas dimensões e diversificando suas formas de analise e raciocínio sobre a realidade que o cerca. Mas, e mais que isso, a literatura converte-se em tábua e salvação quando o espírito está a sucumbir diante de mazelas inevitáveis. Nesse sentido basta-nos lembrar a elevação de espírito que se atinge com a simples leitura de um poema através da qual torna-se possível a transferência do estado de espírito do poeta ao leitor. É quando a literatura nos permite a saciedade dos sentidos proporcionando a plenitude dificilmente atingida por outros meios de sensibilização do espírito.

Há quem negue os efeitos mágicos do romance a da poesia embora seja certo que eles existem. A literatura pode, sim, salvar-nos em momentos cruciais das nossas vidas nos quais a beleza parece ter-nos abandonado e um muro de incógnitas se interpõe aos nossos horizontes. Provas desse fato existem e muitas. Uma delas está no noticiário de hoje, no qual se destaca a entrevista de Sidney Rittenberg, publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”. Rittenberg, único norte-americano aceito por Mao Tsé-tung no Partido Comunista Chinês, foi intérprete do próprio Mao e de Zhou Enlai, além de chefiar a rádio China Internacional.

Durante a Revolução Cultural, Rittenberg criticou a burocracia do regime chinês pelo que foi condenado e esteve dez anos preso. Sendo o nosso assunto de hoje a literatura é interessante ouvir o que disse Rittenberg sobre o período em que esteve preso:

- Na solitária, consegui manter a saúde mental recitando poemas, lembrando de histórias, atuando performances cômicas. A literatura defendeu a minha sanidade.

Trata-se de afirmação à qual nada precisa ser acrescentado. Tem razão Vargas Llosa quando sugere que a literatura deva ser inculcada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas de educação: não se pode negar às pessoas, não importa quem sejam elas, a ligação direta com a possibilidade de transcendência. Para dizer pouco, a literatura torna as pessoas melhores, dá-lhes espírito crítico e opinativo mais aguçado e contribui largamente para que possam exercer maiormente as suas cidadanias.

Cristo e Judas

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É indisfarçável o constrangimento provocado pelo presidente da República ao afirmar que no Brasil, Cristo teria que se aliar com Judas. São palavras do presidente: “se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”.

Nada de pudores religiosos, nada de aversão a frases de efeito e, preconceito, se existe, só em relação a uma confissão pública do tipo “os fins justificam os meios”.

Mas a lição vem de cima e está dada: nada contra aliar-se com alguém que o traiu ou poderá novamente traí-lo se o que está em jogo é alcançar a vitória de momento. Na verdade o passado e o futuro pouco interessam, exceto o esforço para manter o poder em mãos indefinidamente.

Não custa lembrar: Jesus foi torturado e morto justamente para não pactuar com fariseus etc.

Sou dos que tem na Bíblia uma das maiores obras literárias de todos os tempos, isso sem considerar os aspectos ligados à fé cuja interpretação difere de acordo com a crença que cada um professa.

Por falar em literatura, em carta endereçada a Joaquim Nabuco, em agosto de 1906, Machado de Assis afirma que se consola e desconsola com a leitura de um de seus livros prediletos, o Eclesiastes. Um dos trechos preferidos de Machado pode nos servir para consolo e desconsolo diante do que homens públicos afirmam e praticam nos dias de hoje. É o seguinte:

- Vaidade das vaidades. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.

Giovanni Papini

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Você pode escrever sobre tudo ou nada numa manhã de sol nas montanhas. Também pode ficar em silêncio, ouvindo o barulho do vento suave entrecortado pelo canto dos pássaros que nunca se cansam.

Pode, ainda, perguntar-se sobre o significado de tudo e, depressão avizinhando-se, socorrer-se com algum livro de uma antiga biblioteca, da qual restaram poucos volumes. 

Livros velhos guardam o pó de outros tempos e exalam odores capazes de reconstituir impressões adormecidas. Basta ter um só deles em mãos para que a biblioteca que conhecíamos e à qual ele pertenceu se erga das cinzas, imponente no ar, tão real que podemos tocá-la com mãos que já não são as nossas, mas das pessoas que fomos no passado.

Abro a porta da estante, pego um livro ao acaso e de repente lá está toda a biblioteca desfeita à minha frente, tão vívida que posso ler nas lombadas alguns títulos e mesmo supor que posso buscar certo livro que se encontra num canto, atrás de uma pilha, ali onde o deixei há muitos anos.

O livro que me entroniza no passado e que agora está em minhas mãos chama-se “Loucuras do Poeta”, de Giovanni Papini. Trata-se de uma edição portuguesa, sem data, publicada por “Livros do Brasil, Limitada – Lisboa”, distribuída no Brasil pela “Editora Globo – Porto Alegre”.

Em “Loucuras do Poeta”, Papini dá a conhecer alguns ensaios nos quais se revelam o poeta e o pensador que faz uso de alegorias muito próximas de parábolas.  Do livro me é particularmente caro o texto “O Congresso dos Loucos” ou “Da loucura dos sãos”, verdadeira parábola acerca de uma reunião de loucos que protestam contra o seu aprisionamento em manicômios. A cada momento um dos loucos toma a palavra e o tom dos discursos é a reconquista da liberdade já que as pessoas consideradas normais e não sujeitas à reclusão são muito parecidas com eles – os loucos - em seus hábitos, ações e pensamentos.

Giovanni Papini (1881-1956), escritor italiano, tornou-se católico fervoroso após longo período de ceticismo. Entre suas várias obras destaca-se, segundo a crítica européia, o livro “Gog, uma coletânea de contos filosóficos escritos em estilo satírico. Admirado por escritores como Jorge Luis Borges, Papini escreveu mais de 60 livros destacando-se, além de “Gog”,”Palavras e Sangue”, “Trágico Cotidiano”, “Juízo Final” (contos) e “Um Homem Acabado” (autobiografia) . Seus livros fazem parte do que de melhor foi publicado em língua italiana no século XX.

A lembrança de Giovanni Papini retorna muito forte nesta manhã de muito sol nas montanhas tornando-me capaz de abrir uma estante imaginária e dela retirar um livro a muito perdido, sobre o qual não tenho mais notícias. Na verdade desse livro me restaram apenas a memória da publicação portuguesa e fragmentos de um único ensaio, justamente o citado “O Congresso dos Loucos”.

A literatura tem dessas coisas: ela nos permite participar de aventuras imaginárias, criar ambientes como esse de uma manhã de sol nas montanhas com pássaros cantando, reconstruir bibliotecas perdidas, devolver-nos páginas esquecidas de livros e libertar-nos da realidade imposta por manhãs nubladas, passadas em quartos fechados.

Da inteligência

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Lobo frontal 15% maior que a média; existência de uma saliência no córtex motor; quantidade de neurônios por centímetro cúbico maior que a média; concentração maior que a normal de células gliais; e neurônios do hipocampo do lado esquerdo do cérebro mais longos que os do lado direito; são características encontradas por pesquisadores em estudos do cérebro de Einstein.

Você se considera inteligente? Já fez algum teste de QI? Você é uma pessoa que alia praticidade aos seus dons naturais de inteligência?

Houve época em que o respeito e a admiração pela inteligência eram sagrados. No Brasil de décadas passadas os estudantes do ciclo médio falavam sobre Einstein, Darwin, Marx e outros; admirava-se o alemão Werner Von Braun pelos seus trabalhos como foguetes V2 e, mais tarde, na Nasa; o filósofo Bertrand Russel era lido em seus textos menos técnicos pela estudantada; o pacifismo do cientista Albert  Sabin era digno de nota; e assim por diante.

Hoje em dia pedagogos, psicólogos e professores acusam computadores, vídeo games, celulares e a televisão a cabo como responsáveis pela dispersão da atenção dos estudantes. Com tantos apelos e a facilidade da informação sem esforço, a juventude não lê, não estuda. Os dons de inteligência não se completam dado que os cérebros tornam-se embotados pela cultura adquirida de segunda mão.

Outro dia assisti a entrevista de um antropólogo na qual ele dizia que tivera a sorte de crescer num tempo em que não existiam vídeo games e televisão a cabo. Sua distração era, portanto, ler.

O antropólogo tem razão. A verdade é que em tempos não muito distantes lía-se um pouco de tudo. Homens como Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux empenhavam-se em divulgar, no Brasil, a grande literatura européia. Daí resultou a publicação, em português, da preciosa “Antologia do Conto Russo” em nove volumes, sob orientação literária de Carpeaux e Vera Newerowa.  Através da “Antologia” os jovens travaram contato com obras de grandes escritores como Gogol, Tolstoi e muitos outros. A Carpeaux também se deve a magnífica “História da Literatura Ocidental” que em boa hora foi republicada pela Editora do Senado Federal, agora em terceira edição.  A Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira deve-se a tradução de centenas de contos reunidos na coletânea “Mar de Histórias” (Editora Nova Fronteira). Esses livros e muitos outros, de autores como os grandes poetas Bandeira e Drummond, contribuíram para a formação intelectual de gerações de pessoas que hoje ocupam vários postos no mercado de trabalho do país.

Mas voltemos à inteligência. Conheci e conheço pessoas inteligentíssimas, grande parte delas talentos perdidos. Ninguém é Einstein, mas existem muitas pessoas dotadas de qualificação mental superior. Entretanto, acontece a muitas delas não aliar seus dotes mentais à praticidade, daí ficarem à margem do sistema produtivo, muitas vezes desempenhando funções menores e aquém de suas aptidões. Isso é terrível. O fato é que inexiste um sistema de valorização de jovens talentos, capaz de valorizá-los e endereçá-los a setores onde possam dar vazão aos seus potenciais.

É preciso lembrar que cérebros avantajados nem sempre se dão bem com o mundo das pequenas coisas do cotidiano. Um grande escritor que certa vez visitou o Brasil, homem genial, revelava-se muito confuso aos que dele se aproximavam. Pedir um simples café no aeroporto, conferir o troco e encontrar nos bolsos o bilhete de embarque eram para ele missões quase impossíveis. Note-se que o brilhante escritor provavelmente teria sido reprovado em testes para admissão a empregos e outras coisas que exigissem praticidade. E era um gênio…

Por fim, se o assunto é inteligência vale lembrar que nem sempre a ditadura do QI funciona. Creio que muita gente conhece pessoas de QI alto, fora do normal, e que são umas perfeitas “bestas”. É nesse ponto que inteligência e a boa cultura adquirida se unem. Bons livros, boas leituras, conhecimento adquirido e inteligência explicam porque muitas pessoas se sobressaem nos meios em que atuam.

O sentido de um crime

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- Alô mãe.

-Alô

- Mãe eu fui seqüestrada. Eles querem oito mil reais. A senhora precisa depositar na minha conta, daí eles tiram com o meu cartão. Por favor, mãe.

- Pelo amor de Deus, filha. Quero falar com eles.

- Não tem jeito, mãe. São oito mil ou eles vão me matar.

- Mas eu não tenho. Me deixa falar com eles.

Silêncio. Agora fala uma mulher:

- Alô.

- Alô, aqui é a mãe da Mariana. Por favor, não façam nada com ela. Eu sou uma manicure, não tenho oito mil reais.

- Olha aqui, o prazo vence à uma e meia da tarde. Se até lá o dinheiro não for depositado a sua filha morre.

A sequestradora bate o telefone. Há três dias a filha desapareceu e liga todo dia para a mãe, dessa vez com ultimato dos sequestradores. A manicure desespera-se, não tem o dinheiro e vai à polícia.

Horas depois o crime é solucionado. A polícia prende Mariana que dormia num motel. A moça confessa que simulou o sequestro e a polícia identifica, numa gravação, a voz dela mesma fazendo-se passar pela sequestradora.

A mãe simplesmente não pode acreditar. A polícia descobre que Mariana foi duas vezes ao banco para conferir se o depósito dos oito mil fora realizado.

No fim, o delegado pergunta a Mariana a razão de fazer isso com a própria mãe. Ela faz cara de sentida e responde:

- Eu queria saber se ela gosta de mim.

Um investigador ouve e comenta:

- Eta mundo cão.

Escrito por Ayrton Marcondes

22 outubro, 2009 às 2:02 pm

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