2010 dezembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para dezembro, 2010

30 de dezembro

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Um pombo voando baixo, estradas apinhadas, notícia de um afogado, mulheres fazendo comida. A geladeira que ameaça implodir, tantas as garrafas para serem tomadas num gole contínuo, único, universal.

E os fogos. Bombas de todo tipo, estopins, rojões, morteiros.

O mundo se prepara para a virada. O telefone toca, são amigos que convidam para a ceia juntos, veremos a queima de fogos na praia, depois comeremos e beberemos juntos. Ah, sim, os abraços, as felicitações, os embebedados desejos de muitas felicidades, aquela moça que olha comprido, mas não se decide porque não pode se decidir.

A atmosfera da véspera só se abala com a previsão de que talvez possa chover só um pouquinho, não na hora dos fogos, por favor. É verão. Praias lotadas, carros sem estacionamento, falta de víveres, bandidos roubando porque bandido é bandido até na véspera, também na virada.

No meio disso tudo um desejo mal expresso de solidão, de quietude, de veneração pelo ano vindouro, de agradecimento ao que termina, por que não? Afinal estamos e estaremos vivos, exceto se algo excepcional impedir que as rotinas da vida e da virada sejam alteradas.

Quero ver os fogos, desde menino luzes no céu me fascinaram. Amo os brilhos efêmeros, os grandes ruídos que cessam de repente, o encantamento que atordoa, o vazio do depois da festa, as pessoas que voltam para casa, passo a passo nas ruas, deixando a orla, retornando devagar à realidade.

Amo e detesto as comemorações impostas, as pessoas que pouco me dizem, a fraternidade de só um minuto, as lágrimas que secam depressa, os abraços que não se completam, os desejos não consumados.

Quero flores brancas e amarelas, foguetes, perfumes, esquecer-me e lembrara-me, viver, simplesmente.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 dezembro, 2010 às 10:20 pm

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Botando a vida em dia

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- Fim de ano é sempre assim: a gente tenta botar em ordem as coisas para começar zerado o novo ano. O calendário governa a vida, o senhor não acha?

Esse japonês, o da banca de frutas, sempre tem tiradas filosóficas. Conhece os ensinamentos de Buda, mas não é budista. Às vezes eu o acho um tanto fatalista, observador cansado de um mundo sem remédio onde se deve buscar refúgio na espiritualidade.

Tempos atrás perguntei a ele se gostava do que fazia. Ele sorriu e disse acreditar que a vida apresenta a cada pessoa um leque de possibilidades. Entretanto, o livre arbítrio não existe porque cada ser humano é condicionado por circunstâncias que influem no direcionamento de sua vida. Ocorre, assim, uma redução do conjunto de probabilidades que se apresentam a cada pessoa. A ele sucedeu ser filho de imigrantes e crescer num meio um tanto adverso. O peso das circunstâncias, enfim as necessidades, o impediram de estudar além do curso primário. Gostaria muito de ter continuado nos estudos, mas não foi possível. A certa altura o comércio de frutas pareceu-lhe boa opção e a isso se entregou. Deu para cuidar da família, estudar os filhos, e isso não é pouco. Então, seria absurdo reclamar de algo trabalhoso, mas que deu a ele sustento. O corolário disso tudo é que ele gosta do que faz e se sente feliz por fazê-lo.

Mas, o calendário governa as vidas? Voltei da feira pensando no assunto. O fato é que somos presos a ciclos, todos eles ligados ao calendário. Veja aí a data de aniversário. A vida de cada um consiste num ciclo de anos datados pela ocasião do nascimento. A obviedade desse fato não nega a sua importância: adaptamo-nos da melhor maneira possível ao tempo decorrido de vida, contabilizado em anos. Há nisso encanto e algo de funesto: sabemos que o relógio do tempo avança e jamais retrocede por isso o envelhecimento é inevitável. Ocorre que a cada faixa de idade que se galga são inerentes complicações possíveis, as de saúde por exemplo. Em torno disso desenvolvem-se várias estatísticas muito úteis para previsão e doenças etc.

De todo modo – e aqui entro no assunto que me chama a atenção – nesta época do ano há um frenesi de fechar a conta, quitar débitos, deixar para trás problemas mal resolvidos ou simplesmente solucioná-los.  As pessoas parecem querer renascer no momento da virada do ano, esperançosas de um novo tempo de realizações. À falta de outros meios, a humanidade busca se renovar na passagem de ano. Talvez por essa razão muita gente fale sobre a escravização ao calendário. Esses dias mesmo li um artigo em jornal de alguém que perguntava por que diabos a mudança de ano tem que ser acompanhada da busca de renovação. Em que momento fixou-se que o  31 de dezembro seria um marco de fim de um período e início de outro se a vida é continua e tudo, absolutamente tudo, poderá ser como antes amanhã?

Não sei. Confesso que adoro a passagem de ano. O 31 de dezembro sempre funcionou para mim como ponto de inflexão, correção de rota ou o que seja ligado à ideia de renovação. Durante o mês de dezembro estabeleço verdadeira correria para liquidar coisas pendentes e entrar no novo ano com as coisas em ordem, como disse o japonês da feira. Olhe que por trás desse comportamento existem até rotinas ritualísticas como me livrar de papéis que já não importam, limpar gavetas e mandar para o lixo coisas que já não me servem. Se tudo isso é pura bobagem, não sei. O fato é que sempre chego ao dia 31 pelo menos achando que fiz o possível para botar a vida em ordem. Pode ser bobagem, mas isso dá a esperança de um ano melhor.

Uma pequena história para terminar: há cerca de vinte anos passei por um período complicado. Acontece a todo mundo, aconteceu comigo: o mundo virou de cabeça para baixo, desenganei-me dos meus valores, enfim, me danei. Naquele final de ano, com as coisas mal paradas como estavam, decidi ir sozinho para o Rio, passar a virada na Praia de Copacabana. Como não estava bem, imaginei que aquela multidão toda geraria um momento de energia positiva. Bobagem, mas que fazer? O ano tinha sido desastroso e lá estava eu, na praia, em meio à multidão, pensando que, em poucos mintos, um novo ciclo teria início e tudo daria certo, logo adeus ano infeliz.

Foi assim: nos últimos segundos do ano, quando a multidão iniciou a contagem regressiva, dez, nove, oito, eu estava vibrando como se estivesse passando uma borracha no passado. Vieram o sete, o seis, o cinco, o quatro e o três. Pronto, adeus ano ruim. Mas, foi aí que aprendi que não se deve irritar um ano péssimo que termina: no dois um cara mandou para frente um coco enorme, com muita força. Não era possível saber quem atirou o coco em meio a uma multidão como aquela. Mas, posso dizer em quem acertou: foi bem na minha cabeça.

Assim terminou um ano que fez questão de me dar porrada até o último instante.  No ano seguinte as coisas melhoraram, por isso acredito em ciclos, calendários ou o que seja.

Do WikiLeaks para você

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No fim das contas acho que devemos ser muito gratos ao WikiLeaks. A verdade é que o ano ameaçava terminar num grande marasmo, sem grandes coisas para discutir e comentar. Aí apareceu o Julian  Assange, figurinha difícil, que nos fez o favor de distribuir na praça meia tonelada de informações secretas, a maioria delas, convenhamos, totalmente inútil.

Assange só não cobra direitos pelos dados que expõe porque são roubados. De outro modo, o sueco poderia até pensar no caso dado que forneceu à imprensa mundial e a todos os escribas de plantão inesgotável material para análises, comentários etc. No mínimo, passa a existir uma enorme dívida de gratidão em relação a esse sueco sobre o qual pouco se sabe, exceto que publica dados roubados e não gosta de usar camisinha em suas relações carnais.

Como não poderia deixar de ser, dois blocos antagônicos se formaram em relação ao WikiLeaks, ambos sem deixar de fazer uso gratuito do material fornecido por Assange. De um dos blocos fazem parte os críticos do WikiLeaks, gente que professa a divulgação responsável de informações, achando que pagam-se enormes dividendos em relação à porralouquice informativa. Nada a ver com censura, dizem, mas com responsabilidade. Essa turma é a mesma que admite a existência de um órgão de controle da mídia que a organize embora temam o uso indevido do mesmo órgão pelo governo que será empossado no início do ano. Por uso indevido entenda-se a censura e a ingerência nos meios de imprensa livres esse, aliás, velho sonho de uma linha stalinista infiltrada na cúpula do atual partido de situação.

O segundo bloco é formado pelos que aplaudem toda e qualquer divulgação de dados. Defendem eles o direito do público à informação, doa ela a quem doer. São refratários a todo tipo de censura e não admitem a criação de órgão de controle sobre a imprensa. Para eles Julian Assange é um herói, fazendo jus ao título de homem do ano que recebeu no exterior.

No meio disso há toda sorte de penetras que coabitam um ou outro grupo conforme interesses pessoais. Destacam-se, entre eles os antiamericanistas que babam de alegria pelo ataque ao império do norte. Pessoas que jamais se pronunciaram contra os descalabros cometidos contra a imprensa em países como Cuba e Venezuela de repente manifestam-se como arautos da liberdade de imprensa e saúdam o WikiLeaks. Entre eles está o presidente da República do Brasil: ele, mais que depressa, embarcou no grupo que professa liberdade total e irrestrita dos meios de comunicação.

Outra divisão interessante diz respeito aos efeitos provocados pelas informações até agora divulgadas pelo WikiLeaks. Há quem não veja nada de novo nelas, dado que refletem o submundo mais que esperado das relações internacionais. Para esses, o que se divulga fica a nível de fofocas, nada influindo nas relações entre países. Outros discordam desse ponto de vista, realçando o valor das informações que, na opinião deles, põe a nu o modo de gerir o mundo. Como exemplo citam o que teria sido a divulgação dos passos norte-americanos durante a Guerra do Iraque: certamente o conhecimento público de ações norte-americanas evitaria muitas tragédias acontecidas naquele país.

Disso tudo apenas uma coisa é absolutamente certa: as informações existem e estão sendo divulgas, independentemente do juízo que se faça delas. Mais: Assange promete a divulgação de documentos mais bombásticos em futuro próximo. Enquanto isso veja aí se você se enquadra em algum grupo de opinião sobre o WikiLeaks. Caso tenha dívidas sobre os modos de pensar a respeito do assunto, leia os jornais, os de hoje por exemplo. Tudo isso que está escrito acima está, de uma ou outra forma, dito em textos diferentes ditados pela opinião dos articulistas. Aliás, esta é uma boa ocasião para se constatar o favor que Assange está prestando à imprensa, qual seja o de municiá-la com informações que sirvam à produção de textos, isso a perder de vista.

Escrito por Ayrton Marcondes

26 dezembro, 2010 às 12:32 pm

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Papai Noel

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O bom velhinho passou ontem à noite por aqui. Segundo me disseram vizinhos que o viram, ele teve grandes dificuldades em parar na minha casa: parece que as renas estavam apressadas, senão rebeladas. No mundo dos jogos sem controle remoto, talvez fosse melhor o Papai Noel deixar de lado o trenó e as renas e optar por um meio de transporte mais moderno. Imagino o que seja vestir a roupa vermelha, atrelar as renas ao trenó e se mandar do Polo Norte numa longa viagem cujo destino é o de passar pela casa de todo mundo, deixando presentes. Decorre daí a pressa, os inevitáveis atrasos e até omissões. Muita gente se aborrece com isso, há crianças que vão dormir desencantadas, tudo porque, em pleno século XXI, não se modernizou o sistema de distribuição de presentes do Papai Noel.

Pois é. Creio que, por todos esses problemas, o Papai Noel não atendeu aos meus pedidos de Natal deste ano. Vieram, sim, umas coisas, entre elas um foninho de ouvido muito bom para andar e correr na paria – quando dá tempo. Mas, as muitas outras coisas que pedi – na verdade implorei – Papai Noel não as trouxe. Tá bom, eu sei que eram presentes difíceis, mais elaborados, mas não é para isso mesmo que existe o papai Noel? Não é para a nossa alegria e felicidade que todo ano ele empreende essa viagem maluca de trenó, correndo o mundo todo, atendendo aos pedidos de ricos e pobres?

O meu pedido de natal ao Papai Noel foi feito por carta que enviei, com antecedência, ao Polo Norte. Escrevi tudo direitinho e com boa letra para que ele pudesse me atender com muita calma e sem erros. Na verdade fiz uma listinha das minhas pretensões, mas, no rodapé, escrevi que se pelo dois dos meus pedidos fossem atendidos agora eu já me daria por satisfeito: os demais ficariam para o ano que vem – a cada ano um pouco - assim estaria muito bom para mim.

O que pedi? Bem, não vou aborrecer ninguém com a lista das minhas pretensões de natal. Ficarei, portanto, em dois ou três, apenas para exemplificar. O primeiro deles foi o de que houvesse paz e a violência desaparecesse. Expliquei ao Papai Noel o quanto fico aflito quando os meus filhos não se comunicam, atarefados que são eles. Há tanta violência, são tantas as vítimas de crimes bestiais que a gente morre de medo do que possa acontecer às pessoas a quem amamos. Mais um pedido? Ah, sim, como eu gostaria de que no meu país a desfaçatez dos governantes desaparecesse e os homens públicos cuidassem verdadeiramente dos interesses da população. Chega de tanta bazófia, manipulação e impunidade, o Papai Noel bem que poderia cuidar disso. Pedi também que o papai Noel desse como presente às pessoas um pouquinho de educação e respeito ao próximo. Justifiquei lembrando-o dos folgados que fazem tanto barulho, dos jovens que sentam em locais reservados a doentes, grávidas e deficientes, das mocinhas que nos atendem nos balcões mascando chicletes, dos que furam filas, dos que nos ofendem sem necessidade, dos radicais que tacam em grupos, dos alucinados do trânsito, entre eles aqueles caras de motocicleta que chutam as portas dos nosso carros só por birra. E por aí afora.

Aí chega a hora de você me perguntar: não estarei sendo injusto com o Papai Noel? Olhe que ainda é Natal e tudo isso ainda pode vir a acontecer.

Rapaz não sei não. O fato é que o Papai Noel passou pela minha casa ontem à noite e, como disse, ele tinha muita pressa. Não deixou nenhum bilhete, nenhum recado, nada que pudesse me tranquilizar quanto ao atendimento dos meus pedidos. Depois, meu caro, hoje eu me levantei cedo e assisti aos noticiários da manhã. Acredite, o mundo entrou no novo dia do jeito de sempre, sem que nada houvesse mudado: acidentes, crimes, atentados e outras barbaridades aconteceram, ignorando o natal.

Mas, não perco as esperanças. O papai Noel terá lá os seus problemas, afinal ele é um só e nós somos muitos, todos pedindo coisas e coisas a ele. Quem sabe no ano que vem ele possa priorizar mais pediosos semelhantes aos meus os quais, tenho certeza, são feitos por muita gente.

Feliz Natal!

Ho, ho, ho.

Escrito por Ayrton Marcondes

25 dezembro, 2010 às 12:45 pm

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24 de dezembro

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Nem adianta prometer que o dia será de comedimento em relação a comidas e bebidas. Você acorda mais tarde e faz um acordo consigo mesmo: deixará os problemas de lado. Passará o dia em plena paz enquanto espera a chegada da noite, da ceia, dos abraços, dos presentes, do carinho retribuído pelas pessoas a quem ama.

Num dia desses o melhor é nem ligar a televisão, não assistir a nenhum noticiário, isolar-se o quanto possível da rotina a que está habituado.

Ainda não é hora do almoço quando liga o primeiro dos amigos: ele mora longe, no interior, mas não pode deixar passar em branco uma ocasião como essa. Vocês conversam, trocam confidências e se desejam, mutuamente, muitas felicidades. Quando você desliga fica com a sensação de elo perdido porque distante, de vida calhorda porque não o deixa estar com os amigos nesse dia em que o melhor seria a companhia de pessoas espiritualmente ligadas a você, tal como o amigo com quem falou há pouco.

Durante o café da manhã você acaba ligando a televisão, justamente num noticiário, e fica sabendo que o presidente da República pronunciou-se na noite de ontem, ele que está para sair do governo. Um comentarista destaca a dificuldade do presidente em afastar-se dos holofotes, dando a entender que ele incensa a si mesmo. Outro comenta que em sua fala o presidente inflou dados estatísticos, coisa que sempre faz para vangloriar-se.

O fato é que presidente da República está a dançar a valsa da despedida. Ele roda pelo salão, abraçado consigo mesmo, observando-se numa galeria de espelhos. Há nos passos do presidente sinais de ruptura incompleta. Ele valseia como os velhos que se recusam a envelhecer e os doentes terminais que não aceitam a morte. Experimenta o presidente o desencanto dos artistas que insistem em ficar na ribalta, ainda quando o espetáculo terminou e o público já se recolheu. Isso tudo é muito dele, não se pode tirar do homem o que ele é em essência, o que nasceu para ser e fazer. Dói para ele a despedida, talvez mais que para outros, menos apegados, quando deixaram o cargo. Mas, não há como evitar que seja assim, a vida não passa de uma coleção de realizações efêmeras, cada uma delas com fim mais ou menos previsto.

Outra notícia chama a atenção: aos 72 anos, Orestes Quércia morreu. Ex-governador e senador, antigo radialista, Quércia fez parte do jogo político brasileiro, ainda quando não ocupando cargos eletivos. Recentemente desistiu de sua candidatura ao Senado: já a doença, câncer de próstata, avançava irreversivelmente. De todo modo a noticia, em dia como hoje, soa como despedida precoce realçando a sempre desinteressante constatação da brevidade da vida e das coisas.

Mas, é véspera de natal. Em poucas horas as famílias estarão reunidas, fazendo força para não reativar velhas discussões que poderão acontecer, novamente, depois de uns goles. Aquele seu cunhado, o cara que adora os seus bons vinhos e é exigente, estará mais que inspirado na noite de hoje. Com sorte ele não puxará aqueles assuntos que provocam constrangimento.

Mas, não se apoquente. O importante é que todos estarão juntos e há que se aproveitar esses momentos porque tudo é efêmero, a vida também, lembra-se?

Então, esqueça as recomendações médicas e aproveite o dia comendo, bebendo, fazendo  o que lhe der na telha porque existem amanhãs para fazer regime. Afinal é véspera de natal e só por estarmos vivos temos muito a comemorar com aqueles a quem amamos.

Morte no mar

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Leio que um rapaz caiu no mar e morreu. Ele participava de um cruzeiro marítimo pela costa brasileira. Na região de Ilhabela o rapaz sentou-se no corrimão do navio, desequilibrou-se, e caiu do 14º andar. Amigos presentes tentaram salvá-lo atirando boias ao mar. Inutilmente. Embora resgatado, o rapaz não resistiu aos ferimentos e morreu.

A memória é uma caixa de surpresas. Por alguma razão a morte desse rapaz devolveu-me outra, acontecida nos meus tempos de menino. Morávamos em pequena cidade da Serra da Mantiqueira. Meu pai era um sujeito voluntarioso que não desdenhava de oportunidades de ação e participação em aventuras. Certa noite parou em minha casa um grupo de rapazes, vindos do Vale do Paraíba. Intencionavam participar de uma festa, não me lembro onde. Como não sabiam o caminho, pediram a ajuda de meu pai.

Partiram num caminhão, os rapazes na carroceria, cantando, talvez bebendo. Meu pai seguiu na cabine, junto com outro homem e o motorista. Dessas imagens não me recordo tão nitidamente: na ocasião eu era um menino de cerca de 7 anos de idade .

Do que bem me lembro: fomos acordados, em meio à madrugada, pela chegada de meu pai. Vinha ele apressado, falando alto, chamando por minha mãe. Eu e meus irmãos saltamos da cama a ver o que estava acontecendo. Meu pai, muito nervoso, contou a minha mãe que, no trajeto de volta, um dos rapazes caíra do caminhão e morrera.

A essa altura, corremos em direção à porta. O caminhão estava parado em frente à casa e, na carroceria, podia-se ver o corpo ensanguentado de um rapaz. As pessoas falavam depressa, nervosas, dizendo que ele bebera muito e por isso caíra.

Daquela madrugada guardei no fundo memória o corpo jovem, estendido na carroceria de um caminhão. Das faces que acompanhavam o rapaz, das vozes e coisas que disseram nada restou exceto a notícia da bebedeira e da queda.

Esse fato, longínquo e perdido, esteve soterrado na minha memória por décadas, até esta outra noite em que li sobre um rapaz que morreu em Ilhabela. De repente, eis que a noite do passado retorna com toda intensidade, trazendo a imagem de meu pai e do menino que fui.  Não me é possível fugir do impacto da morte que presenciei e se renova, da vida que escapa deixando um corpo inerte, imerso em sangue, fato incompreensível para o menino de então, algo rotineiro para o homem de hoje, ainda assim fato deplorável e absurdo.

Presentes de natal

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Aproxima-se o natal e as cenas se repetem. Como em todos os anos pessoas correm ao comércio a comprar presentes para os seus próximos. Há um frenesi de compras, reina a alegria que antecede a surpresa e, imposta ou não, a felicidade se estampa nas faces sorridentes. Quem divida ou não concorda com essas observações que se arrisque a um shopping para comprovar que, não importando o ano, as pessoas se entregam aos mesmos hábitos, afazeres e preparativos, comportando-se como se tudo fora novo e o natal uma invenção recente. Aliás, eu também, embora a minha preguiça de sempre de misturar-me à multidão de consumidores de última hora, aqueles que só vão atrás de presentes quando não tem mais jeito.

Ei, não sou contra o natal, muito menos contra a tradição de presentear pessoas nessa ocasião. Aborrece-me – esse é bem o termo – a imposição de presentear por hábito, quando não por obrigação. Entendo que presente é uma coisa tremendamente pessoal, algo que se encontra ao acaso e justamente nos dá o prazer de adquirir para dar a alguém de quem gostamos. Há nisso, segundo penso, muito de prazer, surpresa, aproximação entre pessoas, carinho e tudo o mais. Você dá algo de que gostou, a pessoa recebe um presente inesperado que a faz feliz.

Não é assim no natal. Por outro lado, o hábito e a tradição nos condicionam a receber e dar presentes. Isso está de tal modo arraigado em nossas naturezas que não proceder assim pode gerar ressentimento, senão tristeza. Trata-se, portanto, da famosa sinuca de bico: ou agimos de modo padronizado, ou corremos o risco de provocar desencanto em pessoas a quem queremos tanto.

Mas, nada disso é tão importante, o que vale é a noite de natal quando, afinal, esquecemo-nos de tudo e trocamos presentes, assim como fizeram os que vieram antes de nós e farão as próximas gerações, isso para a alegria geral da nação e de todo o comércio.

Escrevo sobre esse assunto após conversa com um amigo, ele indignado com os preços e a obrigação de dar presentes a tanta gente. Semana passada foi o amigo a um shopping fazer as suas compras. Para isso escolheu o horário das nove da noite o qual, segundo esperava, fosse de pouco movimento. Segundo me contou as agruras dele começaram já no estacionamento onde praticamente inexistiam vagas para deixar o carro. O resto das lamurias do meu amigo concentraram-se em lojas cheias, correria, muita falta de educação, mau humor e, finalmente, na gastança de dinheiro, segundo ele, imposta e desnecessária. Irritado, estendeu-se o meu amigo em críticas às datas inventadas pelo comércio, passando pelos dias de pais, mães, avós, namorados, natal, que nada mais são – segundo as palavras dele – momentos de pico de vendas urdidos pela gente de marketing, gente essa sempre pronta a criar ocasiões propícias à gastança.

Em vão ponderei sobre o outro lado das coisas, afinal datas como essas servem ao congraçamento de familiares e amigos que não ocorreriam de outra forma dada a correria da vida. Mas, nenhum argumento contribuiu para amenizar o mau humor do meu amigo, ainda às voltas com os eflúvios de uma noitada de compras de natal.

O fato é que não adianta espernear. A vida é assim, somos assim. Depois, na noite de 24 para 25, as coisas se passarão como sempre, haverá a ceia e a troca de presentes. Nessa ocasião provavelmente todas as atribulações serão esquecidas e a alegria daqueles que receberão os presentes que dermos a eles dará por bem pago algum esforço dispendido para comprá-los.

Feliz natal.

Escrito por Ayrton Marcondes

21 dezembro, 2010 às 7:52 am

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O bom ladrão

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Acontece na Bíblia, acontece na vida: existe o bom ladrão. O bom ladrão bíblico tornou-se santo, canonizado que foi pelo próprio Jesus Cristo. Estava ele na cruz, ao lado do Crucificado, quando professou sua fé. Ante a profissão de fé do bom ladrão Jesus disse: hoje estarás comigo no Paraíso.

Foi assim quem o bom ladrão ganhou o céu e tornou-se santo, sendo conhecido como São Dimas. Existem controvérsias entre os historiadores da Igreja em relação ao nome do bom ladrão, mas de modo geral Dimas é aceito. O que se sabe é que esse Dimas foi um tremendo bandido que atuou na Judéia, daí ter sido condenado à morte na cruz. Por acaso, sorte ou predestinação Dimas foi crucificado juntamente com Jesus Cristo e teve a oportunidade se se arrepender de seus malfeitos justamente diante do filho de Deus. Redimiu-se em boa hora, tornou-se santo, padroeiro dos agentes funerários e de paróquias em todo mundo. Em São José dos Campos existe uma catedral dedicada a São Dimas.

Mas, o importante é que o bom ladrão fez escola. Como se sabe, sinos foram roubados de igrejas na região do Vale do Paraíba, um deles da igreja matriz de Santo Antônio do Pinhal. Dias depois o ladrão arrependeu-se e devolveu o sino, deixando-o na beira da estrada que liga aquela cidade ao Vale do Paraíba. O bom ladrão deixou um bilhete, rogando a quem encontrasse o sino que o devolvesse à igreja de onde ele foi surrupiado. A razão? No bilhete o bom ladrão justificou-se, dizendo ser devoto de Santo Antônio, daí o seu arrependimento.

Não sei se Santo Antônio perdoou o ladrão pela falta, isso é coisa a ser resolvida em esferas superiores. Mas fica o exemplo, mais um exemplo de humanidade de ladrões.

Ladrões têm alma, sim senhor. E fé, também.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 dezembro, 2010 às 2:22 pm

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Por quem dobram os sinos?

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Assim como o poeta fui criado ao som dos sinos. Tinham eles papel preponderante na vida da comunidade, funcionando como marca-passo a ditar o ritmo dos dias. Havia o toque de acordar das seis da manhã, o chamado para as missas das oito e das dez aos domingos, a hora do Ângelus às seis da tarde, o toque fúnebre e pausado que anunciava o réquiem dos mortos, o repique agudo e corrido das festas dos santos. A todos eles atendiam fiéis, chamados que eram às práticas religiosas.

Hoje em dia, em muitos lugares, os sinos já não dobram como antigamente. Na minha cidade um padre moderno substituiu os repiques da minha infância pelo som gravado de carrilhões das grandes catedrais. Assim, os fiéis são alertados pelo som de sinos não ligados às suas tradições e que não lhes dizem respeito.

Mas, isso não é o pior. Recentemente os bons de velhos sinos das igrejas tornaram-se objeto de desejo de ladrões: nos últimos dias foram roubados sinos de algumas igrejas do Vale do Paraíba. Para dizer a verdade, não imagino como possa ser a ação de uma quadrilha de rouba sinos. Acontece que sinos são grandes e pesados, como, então, podem ser subtraídos das torres, trazidos ao chão e levados sem que ninguém se dê conta do crime? Nenhuma testemunha? Não sabem esses desalmados ladrões que, mais que os próprios sinos, estão levando as memórias de várias gerações que deixaram-se guiar pelas badaladas das igrejas?

Roubaram o sino da minha cidade. Não sei para onde o levaram. Pois parte da minha vida está ligada a esse sino desaparecido. Ele era talvez, uma das últimas ligações materiais que eu tinha com a minha mãe, falecida há tantos anos. Era o repique dos sinos que nos levava, juntos a igreja, como se fôssemos atraídos por um tipo de código que nos unia e aos demais que acorriam às missas.

Mas, não é só isso. Notícia recente nos dá conta de que, finalmente, consertaram os sinos da Catedral da Sé, em São Paulo. A partir de agora o carrilhão, composto por 61 sinos, será acionado por um sistema digital. Então, depois de cinco anos quietos, os sinos voltarão a badalar na capital, mas não diretamente pelas mãos de alguém, embora também possam ser acionados manualmente ou através de um órgão.

Nunca pensei que sinos e tecnologia se dessem bem. De algum modo esse acionamento digital desmistifica toda uma escola de sineiros que ensinavam uns aos outros a arte dos diversos tipos de toque, adequados para cada ocasião. Era assim que, de geração em geração, mantinha-se a tradição. Mas, os tempos são outros, os tempos são outros.

Disse um padre da Sé que o som dos sinos representa a voz dos anjos chamando os fiéis para a igreja, lembrando-os da existência do Senhor. A partir de agora, na Sé, a voz dos anjos será acionada eletronicamente. Quem sabe um dia a tecnologia chegue ao ponto de abrir as portas do céu.

Chuva

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Não para de chover. A temperatura caiu e, no sul, os dias simulam inverno, com direito a geadas e tudo mais. Frente fria avançando em dezembro, ventos fortes derrubando árvores em São Paulo… A loucura é tanta que em Ipatinga, Minas Gerais, uma vaca caiu no telhado de uma casa, sendo necessário guincho para retirá-la.

Dirão que a vaca no telhado nada tem a ver com alterações atmosféricas. Discordo: tempos loucos são tempos loucos e todos os acontecimentos estão interligados, embora eventualmente não saibamos como.

Desde pequeno fui um camarada preocupado com o futuro. Há alguns anos assisti ao filme “Blade Runner” cuja ação se passa na cidade de Los Angeles, em 2019. Juro que fiquei preocupado. Não foram os aspectos futuristas de Los Angeles que me preocuparam: chovia muito em 2019. Desde então liguei a imagem do futuro à de muita chuva e trânsito caótico sob vendavais.

Bem, estamos praticamente em 2011 e chove muito. Ainda não foi iniciada a colonização espacial e não são produzidos seres alterados geneticamente, os replicantes, para trabalhar nas colônias. Entretanto, se pensarmos nas alterações atmosféricas, nos problemas ecológicos, na evolução da engenharia genética e nos projetos espaciais – no momento a sonda norte-americana Voyager1, lançada há 33 anos, está atravessando a fronteira do sistema solar – talvez possamos admitir  que o futuro proposto em “Blade Runner” está muito próximo.

Na prática o mundo continua o mesmo, com ou sem chuvas. Ontem, deputados e senadores deram-se um aumento salarial de 62%. A imprensa caiu de pau taxando o aumento de imoral de vez que, no caso do presidente da República e do vice, o aumento será de 133,9%. Não se ignora que existem salários defasados, mas critica-se a falta de escalonamento.

Aqui do outro lado, na Terra dos mortais comuns, os chamados contribuintes, tudo isso soa mal. Os aumentos foram votados por maioria de congressistas e numa rapidez de fazer inveja a projetos importantes que não progridem de forma alguma no Congresso.

Dinheiro na mão é vendaval. A ver se essa turma fará jus aos salários que receberão. Infelizmente, o passado não nos dá muita esperança de que isso aconteça.

Seis da tarde. Continua chovendo. Não seremos todos replicantes?