2013 dezembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para dezembro, 2013

Fim de ano

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Nessas últimas horas que nos separam do início de um novo ano o melhor seria não se lembrar de nada. Apagar da memória os acontecimentos do ano que termina e sonhar com um ano novo de céu de brigadeiro. Mas, como se esquecer de um ano que mal começado mostrou logo a que vinha com aquele terrível incêndio numa boate de Santa Maria?

Da espionagem dos EUA até sobre seus parceiros ao encolhimento da economia brasileira 2013 não terá sido ano de deixar saudades. Isso sem falar na abominável guerra da Síria sobre a qual nem mesmo os mais otimistas se arriscam a fazer qualquer prognóstico. E aí está o comércio a reclamar das vendas inferiores realizadas neste natal, fato atribuído à desconfiança do povo em relação às notícias maquiadas pelo governo em relação à economia.

Entretanto, em 2013 duas personalidades dominantes fizeram reacender as nossas esperanças no gênero humano. A primeira delas foi a desse surpreendente argentino que se tonou o novo papa. Esse Francisco é homem despido da vaidade comum dos homens e mostra coragem ao tocar em temas tabus para a igreja. Como se diz por aí, o cara é da hora. Mostra a cara que tem sem subterfúgios, não se escondendo atrás dos véus do Vaticano. Não é preciso ser católico para admirá-lo. Confesso que torci para que um cardeal brasileiro viesse a substituir Bento 16. A princípio a notícia de um papa justamente argentino não desceu bem goela abaixo. Mas, que boa sensação nos trouxe a notícia logo que o novo papa apareceu em público, carismático, líder natural, homem de bom senso o qual, aliás, está em falta no mundo.

A segunda personalidade é a de um homem que nos deixou, sendo reverenciado em todas as partes do mundo. De Mandela pode-se dizer que sua vida foi uma trajetória de constante superação. Quem se der ao trabalho de entender em maior profundidade o regime de apartheid na África do Sul poderá avaliar a real dimensão da obra do Madiba. Um homem que passa 27 anos preso e sai da prisão para quebrar a espinha dorsal do racismo contra os negros, esse homem não é qualquer. Trata-se de um eleito pelos deuses que o fizeram escolhendo a melhor massa possível. Sua vida - e a morte – deixa-nos um grande exemplo o qual deveria pelo menos em parte ser imitado pelos homens que detêm em suas mãos responsabilidades de governo.

Dirão que no Brasil 2013 foi o ano em que a turma do mensalão finalmente foi parar atrás das grades. De modo que a tal história de que a lei só existe para os pobres foi de fato balançada. Mas, ainda há muita coisa por vir e o melhor que se tem a fazer é aguardar para ver se de algum modo a corrupção no país pelo menos será contida. Do que não se tem muita esperança, vejam-se os problemas relacionados às obras para a realização da Copa.

2013 foi o ano em que a roupa suja do Brasil foi lavada em público, exibida aos olhos de muitos países. De repente a corrupção, as mortes de operários em obras, os protestos e muita coisa mais, atravessaram as fronteiras do país e desnudaram-se diante do mundo.

Batendo pênaltis

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Você se lembra do jogo do Brasil com a França na Copa de 86? Jogaram em quartas-de-final e o Brasil acabou sendo derrotado nos pênaltis. Pois revi esse jogo ontem na TV. Desde o começo sabia o resultado e, ainda assim, fiquei nervoso. Jogo dramático, nervoso, sofrido, danado, de triste memória para a torcida brasileira. No tempo regulamentar empate de 1 a 1. Nos pênaltis o grande Sócrates errou e por sorte o não menor Platini também perdeu, ficando no empate de 4 a 4. Haja coração. Aí o Júlio Cesar bateu e meteu a bola na trave; em seguida o centroavante francês fez o gol e o Brasil foi eliminado, apesar da grande seleção que tinha.

Revendo o jogo pude recuperar grande parte das emoções vividas em 1986. Naquela ocasião eu não me conformava com a passividade de Sócrates ao bater o pênalti nem com o azar do goleiro Carlos em cujas costas a bola bateu depois de colidir na trave. Bateu nas costas do goleiro e voltou para dentro do gol! Tinha que ser não era o dia. Futebol tem dessas coisas. Deve existir um Deus encarregado, exclusivamente, de cuidar do futebol. É ele quem decide o resultado dos jogos de todas as divisões, inclusive os das Copas do Mundo. Naquele jogo de 1986 o Deus do futebol anotara na sua caderneta a vitória da França, por isso perdemos.

Desde aquela época fico trêmulo no momento de batimento de pênaltis.  E fico possesso quando um jogador erra um pênalti, chutando de tão perto, numa situação entre ele e o goleiro. Jogadores profissionais dizem que o gol se torna muito pequeno na hora do pênalti. Há goleiros que se agigantam nessa hora, mostrando-se muito hábeis em defender.

Penso que todo mistério em torno do batimento de pênaltis se reduz a um sim ou não: ou é bem batido ou é mal batido e ponto final. Daí que não gosto de ver jogadores muito técnicos que acariciam demais a bola no momento da batida. De tanto ver tenho a pretensão de afirmar que pênaltis devem ser cobrados com chutes fortes. Que me desculpem os grandes craques que sabem, cientificamente, onde colocar a bola. Se deixarem de lado os excesso de técnica e baterem forte, dificilmente os goleiros terão impulso, velocidade e tempo para chegar a ela.

Sócrates perdeu o pênalti no jogo de 1986 contra a França justamente porque era um raro craque, jogador de exceção. Fosse ele um pouco menos prendado teria enchido o pé e feito o gol que eliminaria a França naquela copa.

Pichando Drummond

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Pobre poeta que nem depois de morto é poupado. Será que poetas mortos devem ser punidos nas madrugadas de fim-de-ano? Que relação tácita terá se estabelecido entre a poesia e o mal a ponto do poeta ser condenado a pagar pela eternidade a boa lavra de sua caneta?

Eis que um casal, enviado das profundezas do inferno, surge para profanar a memória do grande poeta. Os dois se aproximam da estátua do localizada na orla de Copacabana e, um após o outro, cobrem a face e o corpo do poeta com tinta. São meliantes, hábeis em disfarçar a ação que perpetram. Com curtos passos movem-se naquele jeito de quem não quer nada, um vigiando enquanto o outro picha. Assim, estupidamente, escancaradamente, profanam uma imagem que é uma das atrações públicas do Rio de Janeiro.

Carlos Drummond de Andrade certamente não previu que seria uma pedra no caminho desses dois pichadores. Quando escreveu seu célebre poema não imaginava que poderia se voltar contra ele e de modo tão infame.

Mas, os dois pichadores não imaginavam que sua ação pudesse ser gravada e vista por toda gente. Eis que foram flagrados por uma câmera de segurança. O vídeo da ação está na internet e a essa altura já se sabe quem são os pichadores. O que será que os espera nesse país onde de tudo se pode pelo menos um pouco?

Acho que se pudesse Carlos Drummond de Andrade abriria mão da homenagem que a ele fizeram na orla de Copacabana. Poetas também têm direito a descansar em paz, longe do mal do mundo, serenamente adormecidos. Aos quiserem procurá-los que se deixem perder nos seus versos, os mesmos versos mágicos que nos encantam a ponto de os dizermos de cor.

Vida longa aos poemas de Drummond e uma eternidade de paz ao poeta.

Natal

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Acredite, há quem não goste do natal. Mas, nem de trocar presentes, da ceia na noite de véspera, da reunião familiar? Pois é!

Confesso que nunca fui muito chegado ao cerimonial do natal. Isso não quer dizer que eu não goste, talvez exista alguma indiferença a embaçar meus sentimentos natalinos. Depois de tantos natais, grande parte deles cercado por pessoas diferentes, acho que a festa periga se tornar cansativa. Verdade que não há ocasião melhor para fazer contato com amigos a quem raramente vemos e de quem gostamos tanto. De repente, na tarde do dia 24, o telefone toca e ouvimos a voz de alguém que acaba de se lembrar da gente e deseja, sinceramente, que sejamos muito felizes. O que nos desperta para fazer o mesmo e ligar para pessoas que nos dizem respeito, próximas de nós apesar de vivermos tão longe.

Na minha meninice não havia natal em que eu não acompanhasse a minha mãe para assistir à missa do galo. Não era como no conto do Machado no qual a personagem quase não vai à missa porque enlevada na conversa com a mulher que ama. Em casa a missa do galo era compromisso familiar: primeiro a missa, depois a ceia. O problema é que naquelas paragens em que vivíamos costumávamos dormir mais cedo, daí que muitas vezes eu cochilasse sentado nos bancos de madeira da igreja matriz.

Ainda hoje me lembro das imagens de fé estampadas nas faces das pessoas simples que assistiam à missa do galo. Havia entre os fiéis e a religião um pacto estabelecido no qual imperava a verdade. Nada ali parecia falso, nem mesmo as faces de arrependimento das pessoas que saiam dos confessionários e ajoelhavam-se para rezar os padre-nossos e as ave-marias determinadas pelo padre. Seriam os meus olhos de menino que viam com brandura os meus iguais, bem antes do enfrentamento com esse mundo convulso que nos leva a endurecer os sentimentos?

Que não se pense que estou a criticar o natal. Parece-me, sim, que há certa hipocrisia num sem número de cumprimentos que recebemos ou fazemos. Há algo de inverdade nesse padronizado “feliz natal” que nos sai da boca como a cumprir uma obrigação quando nos encontramos com algum desconhecido no elevador do prédio onde moramos. Mas, não se podem esquecer os abraços fraternos, os desejos sinceros muitas vezes não expressos diretamente por pessoas que realmente nos amam.

Do natal guardo imagens fugidias, simples trocas de olhares, sem nenhuma palavra, que guardavam tantos significados. Muitos desses olhares já desapareceram, deixando-me apenas lembranças de pessoas queridas que já se foram.

Mas, diga-se o que se quiser, o fato é que hoje é natal e não há como se passar por essa data sem liga-la às nossas origens e às pessoas que nos acompanham e acompanharam.  Daí que o natal sempre foi e será uma ocasião benvinda, independentemente de nossas opiniões. O natal sobrevive pelo que há de realmente humano em nossas carcaças.

No mundo da música

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Sempre tive o relógio atrasado em termos de gosto musical. Quero dizer que muitas vezes passei a gostar - e entender - determinado gênero quando ele já saíra de moda. Isso sem falar em apresentações às quais compareci e que passaram em branco para só mais tarde vir a ter consciência da grandeza daquilo a que assistira. Daria tudo, por exemplo, para que outra vez pudesse estar na plateia do Teatro Municipal de São Paulo, assistindo a uma apresentação do saxofonista Stan Getz. Confesso que só muito tempo depois daquela noite me dei conta do raro momento musical que presenciara, ou seja, cheguei aos solos de Getz mais tarde. Também confesso que acompanhei à ascensão dos Beatles sem me dar conta da importância do conjunto. Um parente adorava o grupo inglês e tocava seus discos o tempo todo. Eu ouvia com algum distanciamento. Só anos depois me aproximei das músicas dos Beatles e observei a beleza de algumas das composições de Lennon e MacCartney.

Não sou afeito à música sertaneja e não sei dizer se nisso também estou atrasado. Quem sabe dentro de algum tempo eu passe a gostar dela. Na minha infância morei num lugarejo. Do outro lado da rua defronte a minha casa, havia o bar de um japonês no qual, aos domingos, compareciam violeiros que passavam horas cantando. A “moda de viola” era a música padrão do local e todo mundo gostava dela. Talvez porque eu fosse submetido a horas daquela música - não havia como não ouvir, exceto saindo de casa - cansei-me dela. Não sei dizer se isso é correto, mas creio que a “moda de viola” faça parte das raízes da atual música sertaneja.

Nos anos 1980 trabalhei num jornal de grande emissora de rádio em São Paulo. Entrávamos no ar nas manhãs e me cabia comentar assuntos ligados à área de saúde.  Não sei se ainda é assim, mas os estúdios de rádio eram um primor de organização montado dentro de espaços restritos. Um contrarregra que só não fazia chover, um locutor e repórteres espalhados pela cidade geravam uma atmosfera informativa de enorme alcance. O interessante é que, com frequência, artistas renomados visitavam os estúdios das rádios, obviamente visando uma política de boa vizinhança para que suas músicas fossem lembradas e incluídas na programação.

Foi numa dessas visitas que conheci o cantor Wando, falecido há pouco tempo. Era ele um dos grandes do gênero brega romântico, adorado, famoso por jogar calcinhas para as fãs durante os seus shows. Sujeito envolvente o Wando, habituado à celebridade, fazendo da fama o uso conveniente sem apelar para o estrelismo. Na ocasião, abraçou uma a uma das pessoas que trabalhavam no estúdio e nunca me esquecerei do modo educado como se dirigiu a mim.

Hoje se noticia a morte de Reginaldo Rossi um dos grandes do gênero brega. Pertencia ele à velha-guarda de cantores da música romântica popular e sempre assumiu ser mesmo “brega”, embora as conotações negativas muitas vezes emprestadas ao termo.  Reginaldo era conhecido como “Rei do Brega” e sua  morte comove sua grande legião de fãs.

Descobrindo a América

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Não sei se ainda se usa a expressão “descobriu a América”.  Quando alguém chega a uma conclusão óbvia diz-se que ele descobriu a América. Enfim, para descobrir a América bastava justamente ter pensado naquilo. Entretanto, à margem da expressão pode-se dizer que muita gente descobriu a América após o feito de Colombo em 1492. E não devemos nos esquecer de descobridores mais específicos como esses que se contentaram em descobrir apenas o Brasil o que nos leva a concluir que Cabral não está sozinho na glória de seu descobrimento.

Um dos descobridores do Brasil foi esse inglês chamado Ronald Biggs que morreu ontem aos 84 anos de idade. Biggs tornou-se celebridade - popular em outros termos - por justamente agir de modo contrário ao exigido de todos os cidadãos. Em 1963 ele participou de um espetacular assalto a um trem pagador na Inglaterra. A quadrilha logrou parar o trem durante a madrugada e roubar 120 sacos cheinhos de libras esterlinas. Depois, esconderam- se numa fazenda mas, deixaram tantas pistas que acabaram sendo presos. Biggs conseguiu escapar da prisão, mandou-se para alguns países incluindo a Austrália. Só depois disso veio aportar na terra verde-amarela em que tudo dá.

O descobrimento do Brasil por Ronald Biggs se deu de forma muito simples: aqui ele se casou com uma brasileira que deu a ele um filho. Com isso passou a não poder ser extraditado, vivendo livre, leve e solto no país dentro dos conformes da lei. Tornou-se famoso, muito conhecido, quiçá admirado pelo golpe que deu e pela sua sagacidade. Assim, Biggs viveu uma boa vida no Brasil até que a poucos anos decidiu voltar à Inglaterra onde foi imediatamente preso. Mas, por ter adoecido acabou sendo libertado de modo que morreu na condição de homem livre.

Biggs é noticia. Hoje a notícia da morte dele é dada com destaque nos meios de comunicação. Eis aí um caso de ladrão que deu certo. Mas, o lado curioso dessa história toda é que, ao que se saiba, o dinheiro do assalto ao trem pagador nunca foi encontrado. Será?

Não custa lembrar de que o filme “Assalto ao trem pagador” do diretor Roberto Farias não tem nada a ver com essa história. Realizado em 1962 o filme brasileiro recebeu vários prêmios e representou o Brasil no Oscar daquele ano.

Peter O’Toole

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Meu pai vez ou outra falava sobre aquilo que chamava de ”baixas na paisagem”. Referia-se ele a um despovoamento de gente do seu tempo, pessoas que desapareciam levadas pela morte. Para ele essas lacunas nunca seriam preenchidas: o mundo que ele conheceu desmoronava e novas pessoas não poderiam ocupar na memória dele os lugares vazios. Desse modo entendia ele que pouco a pouco a paisagem mudava, tornando-se desértica. E não se tratava apenas de pessoas que viviam no mesmo meio que ele: grandes vazios surgiam com a morte de ícones do tempo em que viveu, as personalidades que chamavam a atenção geral e forneciam assunto para as conversas.

Há gente que contribui para a formação do nosso imaginário, algumas delas tornando-se inesquecíveis. Grande papel é exercido por atores que encarnam personagens muitas vezes tão reais que os tomamos como verdadeiros e não nos esquecemos deles. Os grandes atores desfrutam de uma fabulosa capacidade de transformação tanto que nos surpreendem com interpretações na pele de personagens que nada têm a ver um com o outro.

Peter O’Toole que morreu no último sábado pertencia a uma elite capaz de se transfigurar nas telas a ponto de, durante os filmes, levar-nos a esquecer o ator em favor da personagem interpretada. Magro, alto e com olhos de um azul ofuscante O’Toole preenchia o espaço da tela, muitas vezes eclipsando aqueles que com ele atuavam. Deu-nos personagens realmente maravilhosos a começar pelo Lawrence da Arábia que o tornou mundialmente conhecido através de usa magnífica atuação. Depois desse filme, da década de 1960, O’Toole fez de tudo no cinema. Quem não se lembra dele interpretando tramas baseadas na obra de Shakespeare ou, já no final da carreira, dentro da pele daquele maravilhoso Maurice no filme “Venus” que valeu a ele a oitava indicação para o Oscar?

Peter O’Toole morre e deixa um enorme vazio que só mesmo outro alguém como ele poderia preencher. Sendo isso impossível, ficamos com suas imagens para sempre gravadas nos filmes o que de alguma forma nos serve de consolo: poderemos revê-lo e fruir de suas sempre majestosas interpretações.

Ontem participei de uma reunião de negócios e, no meio dela, inesperadamente, alguém lembrou a morte de Peter O’Toole. Creio que se passaram bem uns quinze minutos com pessoas falando sobre este ou aquele personagem interpretado pelo ator. A certa altura um senhor falou sobre um filme no qual O’Toole fez um oficial nazista. Disse ter sido de tal magnitude a interpretação do ator que ele, espectador, foi levado a sentir pena do oficial quando foi punido pelo o exército de Hitler. E, contudo, o oficial era um homem muito mau que não merecia nenhuma consideração. Mas, acrescentou o senhor, o caso era o de que o ator que interpretava o oficial conferia a ele pelo menos um fiapo de humanidade.

Ainda as biografias

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Nos últimos dias a discussão sobre as biografias autorizadas arrefeceu. Seguiu-se a lógica das notícias que envelhecem depressa demais. Novos acontecimentos ocupam espaços nas colunas dos jornais e direcionam a atenção: a morte de Mandela, o crescimento da economia do país aquém das expectativas, a despedida de um ano que se vai sem que saibamos se o novo será melhor ou pior, a incredulidade diante da violência absurda como a acontecida dias trás durante um jogo de futebol.

Mas, o assunto das biografias ainda não esgotado continua a merecer reflexões. Nesse sentido é muito útil reler algumas considerações de Hannah Arendt  que fazem parte de seu ensaio ‘Karl Jaspers: uma laudatio”. Ensina Arendt:

Somos todos pessoas modernas que se movem em público sem confiança e embaraçadamente. Presos em nossos preconceitos modernos, pensamos que apenas a “obra objetiva” separada da pessoa, pertence ao público; que a vida da pessoa por trás dela é assunto privado, e os sentimentos relativos a essas coisas “subjetivas” deixam de ser genuínos e se tornam sentimentais, tão logo  expostos publicamente … Para falar adequadamente, devemos aprender a distinguir não entre subjetividade e objetividade, mas entre o indivíduo e a pessoa. É verdade que é um sujeito individual que oferece alguma obra objetiva ao público, abandona-a ao público. O elemento  subjetivo, digamos o processo criativo que entrou na obra, não concerne de forma alguma ao público. Mas, se essa obra não é apenas acadêmica, mas se é também o resultado de “ter-se demonstrado na vida”, um ato e uma voz vivos acompanham-na; a própria pessoa aparece junto com ela. O que então emerge é desconhecido para quem o revela; não pode controlá-la da mesma forma que não pode controlar a obra que preparou para a publicação… O elemento pessoal está além do controle do sujeito e, portanto, é o exato oposto da mera subjetividade.

Obviamente Arendt referia-se á obras publicadas em livros, mas suas palavras são instigantes. A separação entre o público e o privado ora em curso transcende até mesmo o direito de livre expressão. Em essência o artista abre as comportas de sua própria existência no momento em que propõe uma obra à apreciação geral. Ainda que o incomode não se pode separá-la dele dai o empenho de biógrafos e o interesse público em devassar a vida e as circunstâncias que levaram o artista a produzir sua obra.

O intérprete

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Sempre achei interessante a atividade de intérprete. Em encontros de personalidades como governantes de países que necessitam de ajuda para se comunicar sempre me perguntei o que aconteceria caso o intérprete se enganasse ou mesmo traduzisse de propósito coisas diferentes das faladas. Não é que um intérprete mal intencionado poderia provocar um estranhamento ainda mais profundo entre partes conflitantes?

O caso dos intérpretes que traduzem palavras em gestos para o entendimento de surdos-mudos é interessante. Eles fazem a ponte entre dois mundos por si só incomunicáveis exceto através da gesticulação. Trata-se de um processo complexo. Não imagino o quanto difícil seja, por exemplo, traduzir em gestos o discurso de um orador com toda a riqueza de termos por ele utilizados. Entretanto, existem profissionais altamente qualificados que participam de momentos importantes nos quais a linguagem dos gestos incorpora aos acontecimentos toda a legião daqueles que não tem a capacidade de ouvir.

Há poucos dias faleceu Nelson Mandela o grande líder da África do Sul cuja atuação comoveu o mundo. Com a morte de Mandela líderes mundiais viajaram até a África do Sul para prestar a ele as devidas homenagens. Alguns desses líderes tiveram a oportunidade de se pronunciar publicamente sendo ouvidos pelas multidões presentes e assistidos por milhões de pessoas em todo o mundo através de transmissões televisivas. Como não poderia deixar de ser esses pronunciamentos foram acompanhados da presença de um intérprete que, colocado próximo àqueles que discursavam, traduzia em gestos as suas palavras.

Foi assim que vimos um senhor gesticulando, traduzindo os discursos durante a cerimônia em homenagem a Mandela. Era um homem sério, vestido a caráter para a ocasião, gesticulando naquela linguagem para mim incompreensível.

Eis que agora se divulga que o intérprete que vimos pela TV era um impostor. Traduziu discursos de gente como Bill Clinton com gestos que nada queriam dizer. Gesticulou ao acaso, sem nenhum significado, é o que nos garantem associações de surdos-mudos em todo o mundo, revoltadas como estranho fato.

Mas, o intérprete se defende. Diz ser realmente intérprete e que foi contratado por uma empresa para atuar naquela ocasião. Aconteceu a ele ter ficado nervoso e perder-se durante a prática de seu ofício, daí gesticular a esmo, pois já não sabia o que estava fazendo. Confessa ser esquizofrênico e estar em tratamento da doença.

Mundo louco esse, não? De repente, numa cerimônia daquela pompa, em primeiro plano um esquizofrênico que movia os braços numa linguagem só dele, sem sentido.

O que mais existe para acontecer sob o Sol que nos ilumina?

A morte de Juscelino

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Eu estudava no curso primário quando Juscelino Kubitscheck de Oliveira foi eleito presidente da República. Para as crianças a maior dificuldade era de escrever o nome do presidente, coisa que era ensinada pelas professoras. Aquele “Kubitscheck” era mesmo de amargar para se grafar corretamente. Em todo caso tratava-se do nome de um mineiro muito simpático, sorridente, que diziam ter a fama de realizador. Getúlio Vargas se suicidara em 1954, deixando imenso vazio de lideranças no país. Juscelino vinha para ocupar espaços e o fez com o seu programa “cinquenta anos em cinco” durante o qual, de quebra, construiu Brasília. Aliás, me lembro do tremendo reboliço que foi a mudança da capital federal para o centro do país. O Rio perdia muito de sua sedução sem o desfile dos políticos - e da politicagem - pelo Catete. Biógrafos de Juscelino dizem que a mudança da capital era estratégica porque ele não conseguiria terminar o governo caso permanecesse no Rio e não inventasse Brasília. No Brasil Central, longe da pressão que batia às portas do Catete, os futuros presidentes estariam a salvo para governar com mais serenidade.  Prefiro acreditar que Juscelino tinha dentro do peito o fogo das mudanças: queria romper com o passado e criar um novo país, desse modo sendo lembrado pelas futuras gerações.

Mas, Juscelino terminou seu governo e Jânio Quadros foi eleito para renunciar inesperadamente. Há quem diga que Jânio não teria renunciado caso governasse no Rio. Jânio não teria suportado o isolamento de Brasília, era um homem do povo e precisava de gente por perto.

Em 1976 recebemos a notícia de que Juscelino morrera num acidente de carro na Via Dutra. Na época estava em vigor a Ditadura Militar e Juscelino preparava-se para se candidatar novamente quando o regime democrático voltasse a vigorar. O enterro de Juscelino com o caixão carregado pelo povo cantando o “Peixe Vivo” empolgou o país diante do silêncio do governo de então. Desde aquela época fala-se sobre o acidente ter sido provocado, portanto Juscelino teria sido assassinado. Esse fato nunca teve confirmação, permanecendo no terreno das hipóteses. Entretanto, agora Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo anuncia que pedirá ao STF, à Câmara Federal e à Presidência da República a retificação da causa da morte de Juscelino. Como justificativa a Câmara da Verdade utiliza alguns fatos da época, entre eles a declaração de um médico que teria visto um ferimento à bala na cabeça do motorista de Juscelino que também morreu no acidente.

Há poucos dias os restos mortais do ex-presidente João Goulart foram exumados e submetidos a estudos para comprovar-se ou não a hipótese de que teria sido assassinado durante seu exílio no Uruguai.

Por detrás dos possíveis assassinatos como o de Juscelino estaria a Operação Condor, uma aliança político-militar estabelecida entre os governos do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Paraguai.