2017 janeiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para janeiro, 2017

Aposentados

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Não via o Juarez há não sei quantos anos. Apareceu de repente, sem avisar, bem de seu jeito de ser. Socialista de carteirinha hoje em dia tem suas paixões políticas amenizadas, fruto da idade, talvez. O tempo ameniza arroubos. Certa manhã acorda-se e compreende-se que já passou a hora de sacar a espada para desafiar o mundo.

Conversamos longamente. O Juarez tem emprego público e conta nos dedos o tempo que falta para a aposentadoria. Espera chegar a recebê-la, mas teme as maldades anunciadas pelo governo. O Estado brasileiro está quebrado, as contas não fecham. Pior para os aposentados.

Em 1986, um ano depois do retorno de governos democráticos, frequentei reuniões de um pessoal de esquerda. Na verdade, andava meio perdido naquela época e um amigo sempre me convidava às reuniões a pretexto de preencher o tempo. Os encontros aconteciam uma vez em cada mês num restaurante. O problema era ter que assinar uma lista de presença na qual figuravam esquerdistas conhecidos. Menos de um ano nos separava do regime ditatorial com suas prisões e torturas em quem pensava diferente do código vigente. Eu temia por uma reviravolta com os militares de novo no poder. Então, fazer parte de uma lista daquelas…

Certa ocasião fez palestra num desses encontros conhecido economista, mais tarde ministro de governo federal. Chegara ele há pouco da Europa onde participara de reuniões sobre sistemas previdenciários. Explicou-nos que o sistema em uso no país resultaria em falência. Na exposição do economista não faltaram dados, gráficos e projeções sobre um futuro alarmante. Ficava claro que o Estado chegaria à situação em que hoje nos encontramos.

Disse isso ao Juarez. Conclui afirmando que chegou-se ao estado atual por descaso de governos que não peitaram de frente um problema que se agrava ao longo dos anos. Enfim, restaram as maldades.

O Juarez ouviu a minha arenga e disse que, entretanto, se sentia injustiçado. Lembrou-me de que só os de baixo pagam a conta no país. Algumas categorias têm mantido seus privilégios. Mais: muita gente recebe valores acima do teto previsto em lei. Que se apliquem as tais maldades, mas para todo mundo - completou.

Nos últimos tempos muita gente tem corrido ai INSS para acertar as aposentadorias, antes que a legislação venha a ser mudada. O corre-corre se justifica: não se confia nos homens públicos, os desvios de somas astronômicas de dinheiro prosseguem e categorias com privilégios permanecem intocáveis.

Se governos tivessem agido em prol do interesse comum… Mas isso já é outra história.

Novos tempos

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Ouvi de entrevistado na TV que os tempos atuais são incompreensíveis. Disse ele que vivemos período em que todos estão contra todos. Paciência, solidariedade, generosidade e outros atributos estão em queda. É o salve-se quem puder.

De crise em crise vai-se sobrevivendo. Mas, até o relógio do mundo foi adiantado. Estaríamos perto do fim de tudo. Numa situação em que o entendimento entre os homens torna-se escasso tudo parece possível. Inclusive o apocalipse.

O mundo que conhecemos já esteve em situações de perigo. A crise dos mísseis na década de 1960, governo John Kennedy, sempre é citada como ponto fora da curva. Americanos e russos estiveram a um passo de acionar seus arsenais nucleares. Felizmente não o fizeram. Mas, as armas ainda existem apesar de acordos de não proliferação das mesmas. São como aquela faca do conto de Borges, usada para matar no passado, mas que aguarda dentro de uma gaveta por novo momento de ação.

Trump é o novo presidente dos EUA e o mundo treme diante de sua arrogância. Quer humilhar o México, desfazer acordos, bloquear fronteiras, impedir a entrada de imigrantes, etc. Adepto do nacionalismo parece pouco se importar com os reflexos de seus decretos. O que importa é a América, América forte.

Espalha-se por aí uma onda de desassossego. De repente extrai-se do baralho uma carta inesperada. Trump pode ser o cavaleiro do apocalipse. Instala-se na Casa Branca com poder de movimentar o mundo a seu modo perigoso de agir. Ressuscita nos “estrangeiros” o velho antiamericanismo. Quem não se lembra de nosso sentimento de revolta em relação aos norte-americanos pelas interferências nos países sul-americanos? E dos governos militares em nosso continente fomentados pela política externa dos EUA?

Pois. Com o retorno da democracia fomos nos habituando às marchas e contramarchas do capitalismo. Os americanos do norte foram institivamente meio que perdoados, suas intervenções amenizadas nas memórias. Agora as ações do novo presidente dos EUA perigam ressuscitar adormecidas broncas em relação aos EUA.  Entretanto, ao que parece grande parte dos irmãos do norte não estão nem aí para isso.

Um homem feio

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O sujeito mais feio que já tínhamos visto era um tipo alto, barriguinha já pronunciada, feio pra mais de metro. Certo dia descera da jardineira que fazia o transporte de passageiros da estação de bondes até o lugarejo onde morávamos. Não demorou para que as pessoas passassem a comentar sobre a feiura do gajo, coisa de arrepiar. Mesmo as moçoilas já passadas da idade comum para casamentos não se entusiasmaram com a novidade. Casar-se com um tipo assim nem pensar.

O feioso era cunhado do Juca. Viera passar uns dias na casa da irmã, isso era tudo o que se sabia. Mas, havia que se esclarecer a razão de tanta feiura. Espalhou-se então que o gajo sofrera uma congestão. Fora tomar banho depois de comer muito e “virara a boca”. Foi desse modo que passou a ser conhecido como “o boca virada”.

Cresci com medo de banhos após as refeições. Temia a congestão e suas consequências. Creio que até os dias atuais a crença do perigo de banhos após refeições prevaleça. Mas, tem ela algum sentido?

De fato, não convém fazer exercícios após refeições copiosas. No momento da digestão o estômago sequestra bastante sangue para o seu funcionamento. Atividades físicas exigem trabalho muscular e deslocamento de sangue para os músculos. Com isso a digestão pode ser comprometida, daí a sensação de mal-estar ou até consequências mais sérias para o organismo. Portanto, não se recomenda a natação após refeições. Ficar parado dentro das águas de uma piscina não tem problema. Nadar não: recomenda-se a espera de pelo menos duas horas para a realização de exercícios mais intensos. Quanto a banhos não consta que ofereçam perigo.

Gostaria muito de ver uma foto do “boca virada” para me certificar se ele era realmente tão feio. Naquela época ele nos parecia horrível. Ainda meninos não estávamos habituados à visão de semblantes incomuns. Anos de estrada puseram-me à frente todo tipo de gente de modo que deixei para trás as estranhezas dos tempos de menino.

Mas, não posso deixar de dizer que o cunhado do Juca era um muito bom sujeito. Extremamente educado, muito cortes, diferenciava-se pelo bom trato que conferia às pessoas. Desde muito habituara-se a olhares que mediam sua feiura. Aliás, não dava sinais de se incomodar com a opinião alheia. Era o que era e apresentava-se como ser humano muito bem resolvido.

Sonhos

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Estava numa floresta, correndo. Vi-me nu no meio de um matagal por onde passavam animais estranhos, muitos deles enormes. Mas, o corpo não era o meu. Não imagino como seria meu rosto. Confortava-me conhecer - e bem - o lugar. Eu pertencia àquele mundo.

Entretanto, meu raciocínio era o que tenho hoje. Reconheci que fora transportado a um tempo anterior ao início da civilização humana. Aquele seria um estágio no qual o Homo sapiens estaria em seus primórdios

As situações de perigo eram permanentes. Seres dos mais diversos, hoje inexistentes, espreitavam-se, atacavam-se. O vale tudo por alimentos era a regra num ambiente hostil.

De repente surgiu perto de mim um animal grande e feroz. Seria eu uma presa fácil para ele. Sem pestanejar saí a correr com minhas pernas poderosas e pés habituados ao solo pedregoso e íngreme.

Aproximava-me de uma gruta onde poderia me safar do perseguidor quando fui alcançado. No momento em que senti os dentes dele cravarem na minha pele gritei - na verdade grunhi – e tudo desapareceu.

Acordei sentado em minha cama, suando muito e ainda sob a impressão daquele animal medonho que me perseguira. Pela minha memória passaram imagens de filmes ambientados em passado remoto, mas nenhum deles com características semelhantes aos lugares que vi no sonho.

Para Freud o conteúdo dos sonhos relaciona-se com realização dos desejos. Para o pai da psicanálise o conteúdo manifesto dos sonhos são os elementos dele que nos lembramos após acordar. Esse conteúdo manifesto serve para disfarçar os desejos inconscientes, ou seja, o conteúdo latente do sonho.

A interpretação do significado de um sonho como o que tive talvez seja obra para profissional especializado. Entretanto, a montagem de uma história com enredo tão elaborado, calcado em coisas tão incomuns de fato impressiona. Onde teria eu ido buscar sonho de tal natureza, tão vívido como se estivesse de fato acontecendo?

Naquela madrugada pensei sobre o fato de o cérebro humano armazenar informações sobre as quais não temos o menor controle. Estudos demonstram que existe um registro em nosso organismo que retém dados o desenvolvimento e evolução da humanidade, provavelmente desde os reinos inferiores até o estágio humano. Guardaríamos a memória acontecimentos da vida de nossos pais, avôs, bisavôs e assim por diante. Desse modo componentes memoriais armazenados ao longo de gerações e soterrados nas camadas mais profundas da memória poderiam vir à tona inexplicavelmente. Talvez a memória vivida de algum ancestral remoto tivesse se materializado naquela noite em meu sonho. Ou não.

Gentes do sertão

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Na última década do século passado internei-me por um mês no sertão, região de Canudos. Experiência difícil e dolorosa a começar pela escassez de água. Desde então a minha experiência com torneiras nunca mais foi a mesma. Refiro-me ao fato de passar tempo em lugares onde a água, que jorra facilmente pelas nossas torneiras, quase ser um produto de luxo. Vi pessoas caminharem longas distâncias, sob o sol inclemente, para buscar a água que caminhões de prefeituras traziam, uma vez por semana.

Mas, não pretendo me alongar sobre aqueles dias que por si resultariam num texto talvez vasto. O que me move agora é uma questão que desde aquela época para mim continua mal respondida. Afinal, por que pessoas nascidas naqueles lugares permanecem ali mesmo sob condições precárias de sobrevivência?

A resposta óbvia de que a pobreza, o analfabetismo, a fome, o abandono secular pelos governos e outros fatores do mesmo gênero são as causas da permanência não nos convence totalmente. Está claro que ao homem daquelas paragens pesa o temor da migração a centros maiores nos quais a sobrevivência seria ainda mais difícil dado o despreparo para a inserção em qualquer setor do mercado de trabalho. Nesse sentido somos conscientes do desespero de famílias de repente desembarcadas em cidades nas quais não têm moradia e não encontram nem mesmo o que comer. Os velhos centros de imigração constituem-se num rico manancial de tristes histórias das gentes sofridas do Brasil.

Então, por que? Por tudo o que foi citado anteriormente, mas, também, pela ligação ao único universo que conhecem e por onde circulam com naturalidade. Jamais me esquecerei do dia em que, após longa jornada nos caminhos da caatinga, chegamos a uma fazenda, sendo recebidos com alegria pelo proprietário. Era um fim de tarde. Acomodamo–nos na varanda de onde avistávamos a paisagem de cactáceas a perder de vista. Mais perto, dentro do cercado que circundava a casa, bodes se alimentavam das cactáceas conhecidas como palmas. Paisagem para mim desoladora. Exceto aqueles animais, nada se movia sob o calor infernal e a ausência de vento. E não é que a certa altura o proprietário da fazenda na qual não existia uma só árvore se voltou para nós e disse: adoro a beleza desse lugar. Isso tudo é lindo. Não sei como vocês podem viver em cidades.

Naqueles ermos tentei revisar o conceito de beleza. Talvez o homem que nos falara sobre a beleza de um vasto terreno de cactos sobre um solo pobre tivesse outra opinião, diferente, sobre o belo. Mas, ele era dali, nascera naquele lugar, de seus pés emergiam raízes que o prendiam ao mundo que conhecia.

Por puro acaso dias atrás estive com uma mulher vinda da região que eu visitara no passado. Ela e os irmãos haviam imigrado para o interior de São Paulo há alguns anos onde se estabeleceram. Contou-me que mês passado estivera em sua cidadezinha natal, distante 300 km de Salvador. Fora visitar parentes. Encontrara-os bem. Reclamara do terrível calor durante o dia, porém compensado pelas noites de temperatura agradável. Perguntei a ela sobre o modo de vida no lugar. Respondeu-me que, como sempre, as pessoas continuavam bebendo. Arregalou os olhos e afirmou:

- As mulheres bebem muito. Já perdi duas tias com cirrose. Minha irmã que mora lá vai pelo mesmo caminho. O povo de lá gosta de tomar a cachaça Pitu, com caju. Todo mundo toma isso.

Perguntei sobre trabalho e a resposta foi a de que, em sua maioria, as pessoas não fazem nada. Alguns se deslocam para cidades maiores em busca de ocupação.

Não é difícil se imaginar uma cidade com cerca de 20 mil almas, distante da capital do Estado, lugar onde raramente chove e os sol brilha sem cessar. A igreja é o único prédio da comunidade. Em torno dela ruas com fileiras de casas com fachadas mais ou menos iguais. Dentro das casas a vida de sempre.

Perguntei à mulher por que viera para o interior de São Paulo. Em busca de emprego - respondeu. Lá não tinha o que fazer. Ficasse lá hoje estaria na Pitu.

Fotografia

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Não adianta: o que vale em fotografia é o “olhar”. Todo mundo tem celular com câmera de modo que a coisa mais comum é fotografar tudo o que se vê pela frente. Sem falar nos selfies.

As pessoas publicam fotos nas redes sociais, enviam aos amigos pelos celulares. Daí que o mundo está inundado por fotos. O pior é que os fotógrafos em ação raramente selecionam as fotos que enviam. Houvesse algum espírito crítico dos emissores e seríamos poupados de cenas tantas vezes desagradáveis. Mas, o que importa é fotografar, fazer parte.

Acontece também com os meios de comunicação. Bem que poderiam nos poupar de fotos e vídeos estarrecedores. A imagem daquele embaixador russo assassinado a sangue-frio na Turquia não me sai da cabeça. O homem falava ao microfone e foi alvejado pelas costas. A contração dos músculos do rosto do embaixador, a cena do momento em que está inesperadamente morrendo tudo isso é terrível demais. Mas, há que se informar, matar a cobra e mostrar o pau, como se diz.

Que dizer sobre as fotos dos corpos empilhados após a chacina no presídio de Manaus? E aquele sujeito segurando a cabeça que acabara de decepar de outro detento? Correm na internet fotos e vídeos que atestam a animalidade dos homens. Somos a eles expostos sem qualquer cerimônia. E não custa confessar que somos atraídos por essas cenas grotescas. Certo grau de curiosidade mórbida nos atrai a esses nichos que não queremos ver, mas algo nos impele a ver.

Entretanto, não é o caso de se falar mal da fotografia. Produzidas com engenho e arte pelos bons fotógrafos as fotos fazem delícia para nossos olhos. Mesmo nossas fotos pessoais: os arquivos de família que nos permitem dialogar com pessoas desaparecidas a quem amamos; o retrato de nossa filha quando pequena ela que agora é mulher e mãe; tudo isso nos leva à gratidão pelos engenhos que nos permitem fixar momentos de nossas vidas.

Ocorre que a não muito tempo as coisas eram bem diferentes. Lá pelos anos 60 do século passado em nossa cidadezinha o único fotógrafo era o Zé Braz. Tinha ela uma câmera e sabia revelar filmes fotográficos. Seus serviços não passavam da produção das famosas 3×4 muito úteis em documentos. Eu mesmo ainda tenho umas duas fotos minhas daquele tempo tiradas pelo Zé. De todo modo o Zé prestava serviço indispensável à comunidade.

Soube que o Zé Braz morreu há alguns meses. Morreu de velho. Chegara quase aos 100 anos de idade, mas mantinha-se firme. Ao chegar em casa procurei pela caixa onde guardo fotos antigas. Estavam lá as minhas tiradas pelo Zé. Nelas as únicas imagens que tenho dos meus 14 anos.

Escrito por Ayrton Marcondes

13 janeiro, 2017 às 1:23 pm

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Até depois do dia 20

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A grande atriz Maryl Streep utilizou seis minutos no palco do “Globo de Ouro” para criticar o presidente eleito Donald Trump. Não o perdoou por ter imitado um jornalista sem braço durante discurso que fez ao tempo da campanha. Como sempre Trump respondeu com os 120 caracteres do Twitter. Respondeu dizendo que a atriz não passa de uma puxa-saco de Hillary Clinton a quem ele derrotou nas eleições. Acrescentou que Streep é um das atrizes mais sobrevalorizadas de Hollywood.

Enquanto isso o sempre presente Putin se disse cansado das acusações de interferência russa nas eleições norte-americanas. E a China não aceita que Trump  tenha entrado em contato com Taiwan. Já as grandes empresas sediadas nos EUA foram ameaçadas de ter que pagar altas taxas de impostos nos produtos que produzirem no exterior.

O eixo sempre oscilante do mundo parece balançar de modo caótico à espera do início da era Trump. Nos EUA políticos se arregimentam para a oposição ao novo presidente. Os democratas não pretendem deixa-lo governar. Aliás, trata-se de retribuição ao que os republicanos fizeram em relação ao governo de Obama.

Num mundo cambaleante no qual todos os problemas parecem insolúveis por falta de entendimento a chegada de Trump é aguardada com receio. Teme-se o que o magnata poderá fazer ao interferir em delicados equilíbrios como as situações entre países do Oriente Médio. Até agora Trump não deu o menor sinal de compreender como se passa o delicado jogo internacional.

Diante de tantas incertezas e informações controvertidas resta-nos saber o que pensa o povo sobre tudo isso. Vale lembrar que, como sempre, as opiniões são mediadas pelos discursos proferidos nos noticiários. A formatação das cabeças é inevitável, infelizmente. Mas, vamos lá.

O homem que vende batatas na feira-livre sempre diz que as suas são as melhores. Segundo ele não adianta comprar o quilo a preços mais baixos. Na hora de fritar as batatas ficam moles, vergonha para as donas de casa ao servi-las a uma visita. Trump? Ora, é como batata de segunda. Não vai bem à mesa. O cara não sabe o que está falando. Se é um perigo? Ah, depende. É louco, mas não é burro. Rico como é não vai acabar com tudo pondo em risco a própria fortuna.

A moça da banca de verduras logo vai dizendo que não se interessa por política. Quem levanta às 4 da manhã não tem tempo a perder. Diz mal saber quem é esse tal de Trump. Além do que político é tudo igual. Não importa se americano, brasileiro, russo: todos da mesma laia.

O rapaz das frutas comanda meia dúzia de empregados e vive reclamando da crise. Diz ter medo de que esse Trump bote fogo no mundo. Se ele mexer com o coreano lá de cima, aquele gordinho que tem mísseis, os EUA poderão ser surpreendidos com um ataque.

O Jonas da banca de bananas ri quando se fala de Trump. Um senhora que pede uma dúzia da branca conta que reza todo dia pela paz no  mundo. O Jonas diz que Trump é assim porque não come bananas. Trouxessem o homem aqui na banca, comesse ele uma banana das boas e  tudo se acertaria. E ri.

Pois é vai-se indo. Depois do dia 20 veremos como as coisas começarão a andar. Ou não.

A parenta

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A parenta casou-se quando já não acreditava mais fosse possível. Beirava os 50 quando conheceu o sujeito falante pelo qual logo se derreteu. Era um tipo espigado, entrado nos sessenta, cabelos ralos e muita energia. Militar aposentado gastava o tempo em sua casa, ouvindo música, ou em visitas no interior. Mas, morava na capital de onde dizia que não se mudaria de jeito nenhum.

O apartamento em que moravam ficava no quinto nadar de um prédio localizado na esquina de rua movimentada, Naquela época ainda circulavam os bondes na cidade. O problema era o ruído do trânsito. Ainda mais porque, nas madrugadas, os bondes continuavam a dobrar a esquina. A parenta reclamava. Não conseguia dormir. O marido explicava que nada se poderia fazer dado que os trilhos eram fixos e por eles seguiam os bondes.

Mas, o tipo espigado, o falante, o marido, bom sujeito, tinha lá suas esquisitices. A parenta casara-se sem saber que o tipo era nudista. Tamanha aversão tinha a roupas que de modo algum se vestia quando em casa. Sempre peladão com a mão no bolso - era como ela o descrevia.

Certa ocasião fui visitá-los, na verdade para entregar a ela encomenda enviada pela minha avó. No quinto andar, diante da porta, apertei a campainha. Logo o marido a abriu, recebendo-me com um largo sorriso. Estava completamente nu. Convidou-me à sala, sentamo-nos e logo veio a parenta. Dizer que estávamos constrangidos é pouco. Eu, então rapazote, estranhava ter diante de mim aquele homem nu. A parenta parecia envergonhada. Ainda assim conversamos o suficiente e logo me despedi. Confesso que me senti aliviado quando alcancei a rua.

Mais tarde soube que os dois não foram muito felizes. A parenta de modo algum concordava com ele sobre frequentar campos de nudismo. Mulher nascida na primeira metade do século 20 e filha de pai austero causava-lhe espanto o nudismo. Longe dela a naturalidade com o que o marido encarava o assunto. E frequentar praias de nudismo era tudo para ele.

Outro dia passei pela rua onde moraram. Lembrei-me de nosso encontro quando fui entregar a encomenda enviada pela minha avó. Veio-me a imagem daquele homem completamente nu sentado à minha frente. Já não me constrange.

Escrito por Ayrton Marcondes

8 janeiro, 2017 às 9:05 pm

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Sob o domínio da morte

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Nossa familiaridade com a morte aumenta de modo preocupante. Recebemos com naturalidade notícias sobre chacinas como se não tivessem nada a ver conosco. No fundo fingimos que não nos importamos. O mecanismo de defesa se impõe até para evitar crises depressivas. Porque não há como não fugir à depressão ao encarar de frente a morte de dezenas de pessoas sacrificadas pelos motivos mais vis. Mortes e mortes, chacinas absurdas se repetem como se isso fosse coisa normal, parte de um enredo fantástico e irreal.

Mas, a vida não é um filme. Aliás, nem mesmo o mais imaginativo diretor de cinema conseguiria se aproximar da realização das cenas de horror observadas nas penitenciárias do país. Impossível reproduzir o horror do homem acuado que espera ser degolado e seu corpo desmembrado como se nada mais fosse que um boneco. No mundo dos prisioneiros os homens são tratados como bonecos expostos aos desígnios de facções criminosas que se digladiam pelo poder.

Daí que o melhor é olhar para as fotos de cenas medonhas que correm pela internet e toma-las por irreais, peças fabricadas que não pertencem à realidade em que vivemos. Aconteceu, mas não pode ter acontecido eis a questão para a qual não há solução.

As mulheres que choram do lado de fora dos presídios. Terão seus entes queridos sido poupados? Aquela cabeça que um presidiário exibe como troféu não pertencerá ela a alguém amado por outro alguém que em desespero espera?

Quanta dor. As redes televisivas transmitem as imagens da tragédia justificando-se pelo dever de informar. A mídia em todo o mundo não esconde o espanto diante das tragédias que o presidente da República classifica como “acidentes”. Organizações de direitos humanos protestam. Governos federal e estaduais negam suas parcelas de culpa. O transe do horror afugenta culpados que se escondem sob as mais variadas desculpas.

Resta-nos desligar televisores e rádios, não ler jornais e revistas. Ignorar os noticiários. Fingir que a vida é sempre bela. Mas, que ninguém se engane: é a caveira portando sua macabra foice quem agora está no comando, acima das vontades dos homens. Estamos sob o domínio da morte.

Calor

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No Rio de Janeiro no início do século 20 intelectuais escreviam sobre a quase impossibilidade de escrever sob o grande calor na cidade. O verão do Rio é terrível.  Dias atrás noticiou-se sobre temperaturas de 44º e se sensação térmica na casa dos 50º.

No vasto território brasileiro encontra-se de tudo em termos de temperatura ambiente. No Sul o inverno é rigoroso. Em geral neva em Santa Catarina enquanto no Nordeste o inverno se passa sob o sol forte e temperaturas em torno de 30º.

Há quem ame o calor. Não me refiro ao verão: é ao calor mesmo. Agora mesmo circulei pela cidade acompanhado por um mestre de obras. Sol forte e muito calor, garantindo suores em bicas. A certa altura perguntei ao mestre se gostava do calor. Respondeu-me que não sabia viver sem ele. Amava esses dias muito quentes, sol a pino. Acrescentou que nesse clima está a razão maior da alegria dos brasileiros. Calor e descontração andam de mãos dadas. Não por acaso as gentes dos países frios são menos expansivas. Semblantes sérios, casacos sobre casacos, corpos presos a vestimentas sóbrias e tristes. Pessoas enfrentando nevascas. Inexiste a beleza do ambiente tropical. Foi o que me garantiu o mestre de obras.

Há muitos anos conheci um português, professor universitário, trabalhando no Canadá. Falo-me sobre os longos meses de frio, o isolamento dele e a mulher, a vida fechada que levava tanta gente ao suicídio. Saudades tinha de Lisboa, cidade com vida noturna.

Enfim, cada lugar, cada ambiente tem suas vantagens e restrições. Talvez o mais importante seja o hábito. Para um russo nascido na Sibéria o ambiente gelado é natural. Para um carioca da gema o calorão passa por normal, existe a praia, a cerveja, a beleza dos fins de tarde.

Sempre fui um turista acidental. Pior: dado a pequenos voos. Não conheço a maior parte do mundo. Mas, sou dado a ambientes mais frios. Frios amenos - entenda-se. Para mim as amenidades climáticas – nem frio ou calor excessivos – são ideais.

Cada um com suas manias e querências.

Escrito por Ayrton Marcondes

5 janeiro, 2017 às 3:43 pm

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