Machado de Assis - Exercício de admiração at Blog Ayrton Marcondes

Machado de Assis - Exercício de admiração

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Machado de Assis - Exercício de Admiração

Por que não "Exercício de compreensão"? A admiração leva naturalmente a compreender a pessoa admirada, e é a esta tarefa que se dedica o autor em sua obra.

Metódico, criterioso, agudamente responsável, sempre se interrogando sobre a procedência dos conceitos emitidos, ele estabelece o diálogo com os biógrafos de Machado, confrontando opiniões, discutindo-as, e propondo-se "ir um pouco além da imagem do Machado de Assis oficial". Explica-se o autor: "Entretanto, se conseguirmos ultrapassar um pouco essa superfície e avançarmos na direção ao âmago de sua arte criativa, encontrando em seus passos sinais que nos ajudem a entendê-la, nos daremos por muito bem pagos" (p.34).

Machado é dos escritores que mais gostava de se ocultar. Nele o escritor absorve o homem. Na obra o homem desaparece. Pois o propósito de Ayrton, avançando passo a passo, sempre com máxima cautela, é resgatar o homem que teria deixado de existir debaixo do grande prosador imposto em sua imagem oficial.

Uma floresta
Embora a percepção do crítico sobre o tema avance constantemente, ele nunca está seguro, como quem diz: “Será que estou no caminho certo?” “Será que é mesmo por aí?” Este auto-questionamento sincero e renovado, só engrandece o autor. Não se dá ares doutorais, nunca está dizendo a última palavra, não quer parecer dono da verdade. Apenas indaga, e indagando, encaminha o leitor para se aproximar cada vez mais do autor de “Dom Casmurro”, sabendo que nunca poderemos exclamar, em tom de descoberta definitiva: “Finalmente, eis aqui Machado!” O Bruxo é desses autores que parecem uma floresta. Podemos conhecer cada uma das árvores de que a floresta se compõe, mas jamais conheceremos a floresta como uma totalidade.

Talvez por isso mesmo, toda a admiração que cerca Machado de Assis não impede que ele seja, talvez, o escritor que é menos bem lido em nossa literatura. Até não se sabe se ele é lido como merece; o que se sabe é que é muito mal lido. Foi acusado de tudo, cético, materialista, anti-clerical, ateu, indiferente ao seu País, absenteísta, etc. Tudo falso, tudo mal contado. Da acusação de ceticismo defende-se com veemência:

“Não achareis linha cética nestas minhas conversações dominicais. Se destes com alguma que se possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la” (A Semana, O.C., III, 769)

Da mesma forma sempre repeliu a pecha de materialista. O leitor superficial é incapaz de perceber que a ironia machadiana é maior e superior a todos os “ismos”. Quase todo “ismo” é uma posição dogmática. E o fino escritor novecentista, com seu amor aos matizes e às nuances, foi o avesso de todo e qualquer dogmatismo.

Marcondes cita o trecho da carta a Joaquim Nabuco, na qual Machado, viúvo inconsolável, desmente seu suposto materialismo e ateísmo:

“Aqui fico, por ora, nesta mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará” (ob. cit., p. 125).

Compasso de espera
Neste ponto o comentário ensejado por Ayrton é muito elucidativo:

“Ao tempo da militância contra a crença, terá deixado a fé em compasso de espera até encontrar-se com ela, em diálogo final já próximo da morte, ocasião em que o desconhecido pode tornar-se palpável até mesmo para um racionalista em estado puro” (ob.cit., p.125).

O mais interessante nesta citação é a frase “terá deixado a fé em compasso de espera até encontrar-se com ela”. A expressão “em compasso de espera” encerra um achado de alcance muito mais amplo do que parece. Aplica-se como uma luva ao pretenso ateísmo e materialismo de Machado, mas se aplica também a muitas outras posições de Machado ao longo de sua vida intelectual. Posições firmadas como o anti-nacionalismo, o anticlericalismo, o absenteísmo, e o pessimismo radical sobre a natureza humana.

Machado de Assis funcionava em dois registros simultâneos. O primeiro era explícito, patente, declarado. O segundo era implícito, latente e virtual, “em compasso de espera”. Jamais fechava uma questão, por mais que parecesse proceder assim. Deixava sempre a possibilidade contrária em aberto, à espera da ocasião propícia para se manifestar. Numa de suas crônicas, comentando as revelações de Manuel da Benta Hora, considerado pelos crentes como o emissário de Cristo, na Bahia, registra:

“Não serei eu que chame a isto verdade ou mentira. Podem ser as duas cousas, uma vez que a verdade confine na ilusão, e a mentira na boa-fé” (A Semana, O.C., III, p.729).

Quer dizer, para ele uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, verdade e mentira, dependendo do ponto de vista. Relativismo? Assim julga a opinião mais comum. Eu diria não simples relativismo (assim é se lhe parece), e sim perspectivismo (a paisagem é uma deste lado da montanha, e é outra do lado oposto, e ambas são verdadeiras). Em outras palavras, relativo não é nosso conhecimento das coisas, relativas são as próprias coisas, conforme nossa perspectiva, a qual, segundo Ortega, não deforma a realidade, sim que a constitui, faz parte dela.

Equívocos
Um dos equívocos mais absurdos inventados pelos maus leitores de Machado é o “absenteísmo”, isto é, o suposto distanciamento do contexto histórico, social e político do seu tempo. É acusado de viver dissociado das circunstâncias e do destino da pátria, indiferente a acontecimentos marcantes, como a Abolição e a proclamação da República, por exemplo. A denúncia é vazia e totalmente improcedente, conforme demonstra Marcondes com base em documentação irrefutável. Machado sempre foi, à sua maneira, um brasileiro intensamente participante dos eventos sociais e políticos que se passavam à sua volta, tanto em escala graúda, quanto miúda. Sua obra de cronista reflete a vida cotidiana do Rio de Janeiro em toda a variedade e mobilidade só captadas por um homem que estava presente nas ruas da cidade, e não enclausurada em torre de marfim.

Com toda sua inegável misantropia, Machado sempre foi homem da cidade, ligado às peripécias do contorno urbano, que descrevia com muita graça e humor, e aos imperativos de construção da nossa nacionalidade, que levava muito a sério. Ayrton lembra que ainda quando jovem, em 1858, o iniciante escritor publicou um trabalho crítico, “O passado, o presente e o futuro da literatura”, no qual externa sua preocupação com os destinos do País, ligando-os à formação de uma literatura nacional e à educação popular (ob. cit., p. 89).

Sem incidir no nacionalismo, explica o biógrafo, Machado insiste na geração do sentimento da nacionalidade brasileira e uma literatura brasileira. E esta disposição a manteve ao longo de toda sua vida.

E quando se tratava da defesa do País, Machado sabia “cerrar fileiras”, como deu prova em sua participação na Questão Christie (1862), quando o embaixador inglês no Brasil afrontou a soberania do império, apresando cinco navios brasileiros em represália à ação da polícia aos abusos de alguns marinheiros britânicos. Em suma, desmentindo a falsa acusação de absenteísmo, afirma o autor: “Machado de Assis é um homem de seu tempo, cioso de sua nacionalidade, preocupado com os destinos do Império, atento ao que se passava à sua volta” (ob. cit., p. 143).

Ayrton Marcondes não é um estreante. Publicou outras obras de pulso sobre Canudos, Campos Salles e inclusive sobre Machado, “Por onde andará Machado de Assis?” (2004). Na obra que resenhamos, reafirma suas qualidades de pesquisador sério, analista criterioso, crítico responsável que sabe dar a palavra ao autor criticado para se apresentar, em vez de abafá-lo com sua própria voz em primeiro plano. Assim, nos revela um Machado integrado com seu tempo, seu País, consigo próprio e com seu enigma. Não o Machado fragmentário, discutível, deformado por críticos que ou não sabem ler, ou lêem de maneira parcial e ideológica.

Este livro, “Machado de Assis”, de Ayrton Marcondes, é recomendado para todos os leitores que querem compreender o grande escritor. Para os iniciantes servirá de excelente introdução a Machado. Para os iniciados, de oportunidade para a revisão e ajustamento de seus conceitos.

Machado de Assis - Exercício de Admiração
Ayrton Marcondes
A Girafa
340 págs.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista,
foi colaborador do “Jornal da Tarde” e do “Estado de S. Paulo”.
Dedicado ao ensaio de caráter filosófico, tem vários livros publicados
e um inédito: “O sentido da vida”. gmkuj@terra.com.br

Escrito por Ayrton Marcondes

5 abril, 2009 às 3:42 pm

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Postado em Cotidiano



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