2016 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2016

Encontros com George Shearing

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Encontrei-me poucas vezes com George Shearing.  Na primeira, creio que em 1985, havia descido de um ônibus na Serra da Mantiqueira e me aventurado nos pouco mais de 4 km, percorridos a pé até Santo Antônio. Noite escura, fria, vento cortante, afora a passagem na estrada diante de um sítio cujo proprietário deixava livre um enorme cachorro que vigiava sua propriedade. Era seguir por ali, silenciosamente, torcendo para que o cão dormisse e não me atacasse.

Pouco antes de chegar a casa descera forte neblina. Acendi as luzes, abri um vinho e liguei o som. Lá fora não se via nada, exceto a nuvem que envolvia tudo, dando-me a sensação de estar fora do mundo, isolado, como se a casa flutuasse acima de tudo. George Shearing tocava “Here, there and eveywhwere” música que ouvi várias vezes. Assim, o som do piano plasmou-se às imagens daquela madrugada inesquecível.

Meu segundo encontro com Shearing  aconteceu no Teatro Municipal, São Paulo. Apresentava-se ele com um trio. O pianista cego entrou no palco conduzido por um rapaz que o levou ao piano. Não disse palavra e começou a tocar, enchendo o teatro com encanto invulgar de sua música. Éramos poucos na plateia naquela noite e pudemos fruir da arte de um pianista notável.

Na terceira vez dei com Shearing acomodado numa banqueta no Birdland, em New York.  Havia se apresentado naquela noite e aguardava que o levassem até o carro. Sentei-me ao lado dele e, em vão, ensaiei dizer alguma coisa. Venceu-me a timidez. Tinha ao meu lado o grande pianista do be-bop que incendiara casas noturnas dos EUA nas décadas de 40 e 50. Lembrei-me das palavras de Jack Kerouack no livro “On the road”. Dean e Sal, personagens do livro, tinham visto Shearing apresentando-se em New York. Desde então Dean referia-se a Shearing  como “Deus”. Assim Sal descreve a entrada de Shearing para tocar em Chicago:

“‘Sal, Deus acaba de chegar - diz Dean. Olhei. E, como sempre, ele estava com a cabeça cega apoiada na mão pálida, ouvidos bem abertos como orelhas de elefante, ouvindo os sons americanos e traduzindo-os para seu uso de uma noite de verão inglesa.”

Meu quarto encontro com George Shearing  ocorreu,  inesperadamente, nesta manhã quando ouvi, pelo Spotify, o pianista executando “ Here, there and everywhwre”. Há 40 anos eu não ouvia esta gravação que me devolveu àquela noite na qual a casa nas montanhas fora envolvida pela nuvem de neblina. De repente estava eu outra vez naquele lugar, isolado do mundo, tomando um gole de vinho, ouvindo Shearing tocar. Longe do mundo, imerso na noite de neblina. Era eu, quarenta anos mais jovem, saboreando o milagre operado pela arte dos dedos de Shearing sobre o teclado.

Carlos Alberto

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Impossível dissociar a imagem do “Capita” do momento em que se celebrizou, beijando e erguendo a Taça Jules Rimet. Eram os dias do governo Médici e viviam-se os temores da repressão. A instabilidade gerada pelas ações de extremistas ganhava corpo com sequestros como o do cônsul japonês só libertado após a soltura de cinco presos políticos. Movimentos como o da Vanguarda Popular Revolucionária agiam, pretendendo a instalação de um governo socialista no Brasil.

A atmosfera do país era de fato pesada. Aí surgiu a seleção. Incialmente sob o comando técnico do conhecido jornalista João Saldanha a seleção não contava com a confiança popular e da imprensa. A desconfiança tinha razão de ser: após vencer as copas de 58 e 62 o Brasil fracassara, melancolicamente, na Copa de 66. Saldanha criou um mote: seus jogadores seriam “11 feras” com as quais iria até o fim, para a vitória ou o buraco. Depois de Saldanha ser substituído por Zagalo formou-se o time que jogaria no México e se tornaria campeão.

Tudo o que está escrito acima é de conhecimento geral. O que se pretende é falar sobre as impressões de quem viveu aquele momento. Num Brasil ainda sobre regime ditatorial a seleção acabou se transformando numa válvula de escape que, naquele momento, resgatou a alegria natural dos brasileiros. De repente fomos envolvidos por uma onda de Brasil, Brasil, Brasil que nos fez lembrar de nossa condição de povo de um país.

Lembro-me bem do primeiro jogo, contra a Tchecoslováquia. Estava em casa de um amigo com os olhos grudados na telinha. De repente 1 X 0 para os tchecos. Desceu sobre nós a imagem de mais uma derrota. Que durou até o empate através do petardo do fabuloso Rivellino. Daí para a frente percebemos a enormidade de craques que tínhamos na seleção. No gol de Rivellino eu e meu amigo saímos à porta da casa: ouvíramos o espocar de alguns foguetes coisa estranha num tempo de silêncios.

A maior seleção nacional que o país já teve contava com craques como Pelé, Gerson, Tostão, Jairzinho, Rivellino, Clodoaldo e Carlos Alberto. Era um time infernal que venceu a Itália no jogo final com o memorável quarto gol de Carlos Alberto. Foi o grande lateral Carlos Alberto quem perdemos ontem, levado pela morte aos 72 anos. Como jogava Carlos Alberto. Que raça. Que amor à camisa. Homem de opinião enfrentou com galhardia disputas dentro e fora do campo. Deixa saudades. Com o desaparecimento de Carlos Alberto abre-se um buraco com a sensação de cada vez maior distanciamento do tempo que se foi, da glória vivida, de um hiato de alegria que nos envolveu num tempo sombrio. Grande vazio nos deixa o passamento do “Capita”.

Da seleção de 70 me recordo do dia do retorno dos craques ao Brasil. A cidade de São Paulo parou para recebê-los. Vinham em veículo aberto pela Av 23 de maio. Eu era um dos milhares de brasileiros agrupados nas encostas da avenida, esperando-os. Então eu os vi, aquela geração gloriosa do nosso futebol. Gritávamos, saudando-os. Ainda me emociono ao me lembrar daquele dia.

Escrito por Ayrton Marcondes

27 outubro, 2016 às 12:52 pm

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Cuidado com as cinzas

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Não me lembro, em décadas passadas, de tantas incinerações de cadáveres. O sujeito morria, realizava-se o velório e terra encima dele. “Foi pro caixa-prego” era um modo de dizer que o sujeito estava preso dentro de um caixão e para sempre.

Hoje em dia cremações são muito comuns. Não tenho certeza, mas devem ser menos custosas em dinheiro que os enterros formais. Há cidades em que não se encontram vagas nos cemitérios mais conhecidos. Velórios, túmulos e lóculos em cemitérios verticais são caros. Obviamente, existem opções mais em conta. Nesse caso trata-se de cemitérios mais distantes e de alguma simplicidade.

No passado a Igreja proibia a cremação. Justificava-se a proibição através da ressureição dos corpos prevista pelo credo religioso. A permissão só veio a acontecer em 1963 embora os enterros fossem preconizados como forma de respeito ao corpo.

Hoje em dia a cremação é rotineira. Há quem deixe o desejo expresso de ser cremado. Em muitos casos a cremação é opção da família. Há pouco tempo na morte de pessoa conhecida a família decidiu cremar o corpo. Por conhecer a falecida e seus princípios pareceu-me que fosse ela a decidir teria sido enterrada. Passados uns dias da cremação houve o momento da entrega das cinzas. Levadas para a casa da falecida abriu-se a questão do fim que se daria a elas. Como a falecida gostava muito de propriedade em região marítima decidiu-se espalharam-se as cinzas naquele lugar: parte na casa onde às vezes ficava, parte no mar.

Meu irmão mais velho dizia-me que quando morresse queria suas cinzas espalhadas nos altos da Serra da Mantiqueira. Ele amava a região e desejava passar a eternidade entre os cumes montanhosos. Aconteceu a ele a morte inesperada em lugar onde não se cremavam cadáveres. Acabou sendo enterrado. Hoje seus despojos são identificados pela lápide na qual estão inscritos o nome dele e as datas de nascimento e morte.

Agora a Igreja divulga normas para o destino das cinzas obtidas pelas cremações. Não poderão permanecer nas residências, exceto em situações mais que especiais. Nem deverão ser lançadas na natureza ou divididas entre familiares. Por respeito aos mortos as cinzas serão colocadas em túmulos ou em locais sagrados. Segundo as novas regras do Vaticano um funeral cristão poderá ser negado caso a intenção seja de espalhar as cinzas.

Quando mais jovem gostava de cemitérios. Hoje em dia confesso que me esquivo deles talvez pela possibilidade não tão distante de vir a ocupar um lóculo num deles. A proximidade da morte não passa de uma questão de aritmética simples. Aos 70 não se pode imaginar que se tenham pela frente mais uns trinta.

Compareci a dois funerais nos quais os falecidos seriam cremados. A cerimônia da despedida dos parentes e amigos não deixa de ser algo teatral. O esquife é colocado num palco e os presentes sentam-se na plateia. Músicas suaves ou que eram do gosto do falecido são tocadas. Dependendo do credo alguém inicia uma oração seguida pelos presentes. Depois o caixão começa a ser baixado, lentamente, até que desparece. Então os presentes se levantam, despedem-se e saem. Lá fora a vida os espera. Do morto apenas lembranças cada vez mais esporádicas.

A Guerra Fria

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Ouvi de um conhecido que pouco nos importam as eleições presidenciais norte-americanas. Segundo ele ganhe um ou outro vão nos ferrar do mesmo jeito. Americano é incontrolável, tem sede de dinheiro. Americano é um cara que só olha para o próprio umbigo.  Os americanos são ricos às custas de explorarem o restante do mundo…

Trata-se do conhecido discurso dos que veem nos EUA o diabo que aferroa os pobres do mundo. Derrubam governos segundo seus interesses, deixam seguir guerras com grande mortandade coisa que um país líder do mundo tem obrigação de intervir. E por aí vai.

Trump dá medo? Diga-se o que se quiser sobre Hilary, mas o melhor é que ela seja eleita. Trump não inspira confiança. O cara não parece mesmo ser do bem. Ele confunde fronteira para impedir a entrada de imigrantes ilegais com o desejo de explulsar outras etnias. Não há meio termo no que diz. Ataca mulheres. Digamos que um presidente assim, caso venha a ser eleito, em nada contribuirá com a América abaixo do Equador.

O pior é que nessa confusão vai-se ressuscitando a Guerra Fria. Putin é um político esperto e sabe usar suas armas. Seu país não tem a força de ontem, mas ele age como se ainda tivesse. Não se sabe como as coisas seguirão depois da eleição norte-americana disputada por dois candidatos que só fazem falar um sobre os podres do outro.

Os mais jovens não viveram no mundo da Guerra Fria. Não conheceram a divisão em dois blocos e suas consequências ideológicas e práticas. Não sabem o que significa a possibilidade real de uma guerra com armas nucleares utilizadas por ambos os lados. A crise dos mísseis, em 1962, foi momento em que a tensão entre os EUA e União Soviética atingiu o máximo grau. Nunca o mundo esteve tão à beira de uma guerra nuclear. Aquele outubro tornou-se um pesadelo para o mundo. Aluno de ginásio na época lembro-me bem do que se dizia. Aproximava-se o fim do mundo e da civilização e nada poderia evitar que isso acontecesse. O sufoco terminou com acordos entre as grandes potências. Os soviéticos retiraram seus mísseis de Cuba e os EUA desmontaram seus mísseis na Turquia. O mundo pode respirar aliviado.

Verdadeira ou não a hipótese de Putin influenciar as próximas eleições nos EUA é um mau sinal. A Guerra Fria está enterrada, não há o menor sentido em ressuscitá-la. Além do que hoje o mundo é outro. As forças que se antagonizam mantêm algum equilíbrio. Entretanto, seria muito bom se EUA e Rússia se entendessem para acabar com as terríveis guerras em curso no Oriente Médio. O mundo precisa de paz. Sempre precisou.

Cara de palhaço

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Espalha-se pelo mundo a onda de palhaços assustadores. Trata-se de gente que se veste como palhaços e usa máscaras aterrorizantes. A partir daí os novos palhaços passam a praticar toda sorte de ações. A mais simples delas é a de assustar pessoas com quem se encontram ao acaso. Mas, infelizmente, criminosos aderiram à onda. Daí virem acontecendo crimes praticados pelos fantasiados que, protegidos pelo disfarce, acabam escapando da polícia.

Há dois dias numa pequena cidade do Amazonas dois adolescentes saíram às ruas fantasiados de palhaços e portando machados. Lograram assustar muita gente até serem localizados. Depois declararam que a intenção era apenas de assustar crianças. Em Belo Horizonte têm ocorrido ataques de “palhaços macabros”. O mesmo acontece em várias cidades do país e do mundo.

O surgimento de “palhaços macabros” contribui para embaralhar ainda mais o discernimento entre o bem e o mal. Palhaços sempre foram criaturas do bem. Crianças adoram palhaços que os divertem com suas traquinices. Nos circos os palhaços dão o tom das brincadeiras, arrancando gargalhas do público. Subitamente, os palhaços mudam de status. Agora assustam. Agora cometem crimes. Agora matam.

Seria interessante saber-se como anda hoje em dia o perfil dos palhaços segundo a perspectiva das crianças. Diante do noticiário sobre ações negativas praticadas por palhaços terá mudado a visão do mundo infantil sobre eles?

No imaginário das crianças os palhaços desfrutam de lugar de destaque. São associados à descontração, à alegria de viver. A todo custo é preciso preservar esse modo de ver e entender seres tão cativantes.

A Terra em perigo

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O assunto é fascinante daí com frequência tornamos a ele. A questão da existência de vida fora da Terra é instigante, mas por vezes assusta. O fato é que sempre imaginamos os alienígenas – caso existam - como seres amigáveis que - caso apareçam - trarão enormes contribuições aos terráqueos. Partindo do pressuposto de que por terem chegado aqui serão, necessariamente, mais evoluídos, certamente terão muito a nos ensinar. É comum pensarmos nos alienígenas como seres que conquistaram notáveis avanços no campo da tecnologia, a começar pelas estupendas naves com as quais percorreriam longas distâncias para chegar ao nosso planeta.

Enfim, receberíamos de braços abertos esses irmãos distantes que, finalmente, vieram até nós. Verdade que nos filmes nem sempre as coisas se passam sem disputas. Temos visto nas telas alienígenas ferozes cuja única intenção é de dominar, quando não exterminar, a população terrestre. Batalhas sangrentas tem sido travadas entre humanos e alienígenas, sendo que, no fim, o homem acaba vencendo embora as perdas e destruições até de cidades inteiras.

Agora o astrofísico britânico Stephen Hawking, conhecido pelas suas grandes contribuições à ciência, vem a público para nos advertir sobre o perigo de uma invasão alienígena. Empenhado numa vasta pesquisa visando encontrar vida fora da Terra, Hawking tem como certa não só a existência de alienígenas como o fato de que certamente um dia aparecerão por aqui. Mais: teme o astrofísico que na ocasião o encontro não venha ser pacífico. Devido aos notáveis avanços das civilizações alienígenas poderá acontecer algo semelhante ao encontro de Cristóvão Colombo com os índios. É bom lembrar de que a chegada dos europeus à América não foi nada boa para os índios.

Hawking aconselha-nos a não tentar contato imediato com alienígenas ao serem eles descobertos. Em contrapartida fazem-se necessários preparativos para defesa do planeta em caso de chegada de alienígenas. De todo modo, avisa o astrofísico, tudo isso acabará acontecendo algum dia.

A convicção de pessoa notável como Stephen Hawking sobre a existência de vida extraterrestre e os perigos de contato de humanos com civilizações mais avançadas pode parecer exagero à primeira vista, enredo nada mais que ficcional. Entretanto, não se pode descartar a hipótese de que um dia venhamos a receber visitantes vindos do espaço. Se e quando isso acontecerá é assunto para futurólogos. De minha parte prefiro que as coisas continuem como estão com a velha e boa Terra livre de ataques contra os quais talvez não tenhamos meios para nos defender.

Naqueles anos

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Naqueles anos Dona Isabel morava sozinha numa casa estreita e meia-parede. Entrando-se pela porta alta de madeira encontrava-se a escadinha que dava para o corredor onde existiam outras duas portas: a do lado esquerdo pela qual se chegava à sala/quarto; e a do fundo que servia de limite para a cozinha. Na sala/quarto Dona Isabel possuía a mesa redonda e, perto da janela que dava par a rua, a cama de solteiro onde ela dormia.

A casa de Dona Isabel fazia parte de um conjunto de edificações antigas numa das quais funcionava a cadeia do lugarejo. Que não se pense em cadeia nos moldes de hoje. Na verdade, tratava-se de um cômodo de paredes de pau-a-pique cuja janela fora obstruída por uma grade de madeira. Sabe-se lá porque a parede e a janela tinham sido pintadas de um vermelho que se desbotara com o tempo.

Também não se imagine que a cadeia servisse à prisão de marginais perigosos, meliantes conhecidos etc. Ali o único soldado responsável pela segurança local trancafiava pessoas embebedadas que, em geral, eram devolvidas à rua logo ao amanhecer. Passado o fogo, recuperada a razão, era hora de tornar aos afazeres do dia. Aliás, bom que se diga, a cadeia não era lá lugar provido de resistência, tanto que certa ocasião um preso desferiu forte golpe com o qual abriu parte da parede e pode dormir em casa.

Dona Isabel era mulher corpulenta e não consta que tenha se casado, daí o viver sozinha. Para se sustentar ajudava na alfabetização de crianças que frequentavam o Grupo Escolar do governo. Mães de alguma posse encaminhavam seus pequenos a Dona Isabel que os punha sentadinhos junto à mesa da sala/quarto e os ensinava as primeiras letras e continhas.

Assim passavam-se os dias de Dona Isabel que, certa manhã, saiu à rua, ainda de camisola, gritando por socorro: uma raposa que subira ao telhado urinara sobre ela que ainda dormia…

Não sei dizer o que terá acontecido a Dona Isabel. Certamente terá falecido em sua casa e conduzida ao cemitério pelos vizinhos. Imagino que o pequeno féretro terá passado pela igreja para as recomendações do padre antes do corpo baixar à cova.

Hoje em dia a casa de Dona Isabel não mais existe. Tempos atrás passei pelo lugar e lembrei-me do tempo em que minha mãe me enviava à professora para que me ensinasse a melhorar meus garranchos. Aliás, além de mim, creio que ninguém mais se lembre da casa e da mulher que nela vivia.

1969

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- Pegaram o Marighela.

Era o que se falava na manhã seguinte quando a notícia se espalhou. Anos mais tarde um conhecido me disse que pegaram Marighela quando quiseram porque sabiam o tempo todo por onde ele andava. Esse conhecido servira o exército na época e trabalhava junto a um coronel nas dependências do DOI-CODI. Teria, portanto, acesso a informações privilegiadas.

Nunca acreditei no relato do meu conhecido. Até porque ele pertenceria ao baixo escalão e dificilmente teria acesso a informações relevantes. O ano era 1969 e a repressão promovida pela ditadura terrível. Em São Paulo a turma do delegado Fleury fazia e acontecia. O Esquadrão da Morte não perdoava.

Somos pessoas diferentes em cada época da vida. Não sou capaz de recompor o rapazote que fui em 1969. Vivia em São Paulo, cursando o primeiro ano da faculdade. Lembro-me bem do dia em que passava, dentro de um ônibus, pelo Largo de São Francisco e, de repente, vi a praça entrar em guerra. Das Arcadas saíram estudantes portando cartazes de protesto. Entretanto, forças policiais estavam a postos para reprimir a manifestação. O confronto foi imediato. Estudantes viraram um carro ao qual atearam fogo. A polícia lançava bombas de efeito moral. Um estudante entrou no ônibus, gritando sobre liberdade. Houve um momento em que os passageiros se jogaram no chão pelo medo de serem atingidos. Mas, a confusão não demorou. Estrondos por toda parte e os estudantes se recolheram sob a proteção da faculdade. Só então o trânsito fluiu.

Era um tempo de silêncios. O melhor era não se falar em política em lugar público. Em outubro Médici assumiu a presidência iniciando-se período turvo da história nacional no qual a repressão e a censura atingiram graus elevados. No início de novembro Marighela foi morto em São Paulo por agentes do DOPS.

Até hoje persistem dúvidas sobre as circunstâncias da morte de Marighela.  Passados 47 anos do desparecimento do líder da ALN o Ministério Público Federal decide investigar a morte do guerrilheiro. Consta que foi atraído a um encontro com dois frades que o esperavam num carro. Não sabia ele que os frades na verdade já estavam presos e seriam usados como isca. Ao se aproximar do carro, desarmado, Marighela foi morto a tiros. É a versão corrente.

Os desaparecidos

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Dizia-se dos que deixam este mundo: “foi pro caixa-prego”. Ou: “bateu as botas”. E outros ditos. O estranhamento diante da morte é inevitável. De um minuto para outro tudo para, tudo cessa. O homem que até aquele instante pensava e agia simplesmente apaga-se. No deixar de existir talvez a razão maior do estranhamento em relação a morte. Aquela pessoa que ainda agora…

Moro no 9º andar. Até poucos anos, ao acordar e abrir a janela do meu quarto dava com um casal de velhos na janela do prédio situado no outro lado da rua. Era um predinho de poucos andares, mas quando abria a minha janela, atraídos pelo ruido, os dois levantavam suas cabeças e me olhavam. Nunca reparei nas faces dos velhos nenhuma mudança de fisionomia. Pareciam ter olhares fixos, mecânicos. Observavam tudo o que acontecia na rua e talvez isso fosse um tipo de diversão para eles. Quando eu saia para o trabalho eles já tinham abandonado o posto de observação. Encontrava-os, no mesmo lugar, no fim do dia, quando tornava à casa. Estavam ali, quase imóveis, sem trocar palavras, absortos na vida que corria fora de sua janela.

Estranhei quando, certo dia, ao abrir a janela não os encontrei. Eles cumpriam rigorosamente seus horários. E a janela esteve fechada por quase um mês até, certa manhã, a mulher reassumir seu posto. Séria, parecia ainda mais envelhecida. Supus que naquele período não tivessem vindo à janela por alguma doença. Foi quando decidi perguntar ao porteiro do meu prédio sobre o que teria acontecido ao casal. E ele me respondeu:

- O velho morreu. Desapareceu.

Foi a palavra “desapareceu” que me intrigou. Desapareceu de onde? Ora, da janela. Da vida! Da paisagem. Só então percebi que havia tomado o casal de idosos como uma espécie de figurantes de um teatro da realidade. Havia-os incorporado ao meu cotidiano como se fossem autômatos cuja presença seria obrigatória a cada vez que eu abrisse a janela do meu quarto, após me levantar.

Somos seres que fazem parte da paisagem cotidiana. Desaparecemos sem aviso prévio, deixando lacunas que logo serão preenchidas. A velha da janela também não demorou a desaparecer. Como aconteceu em relação ao marido, a janela permaneceu fechada durante algum tempo. Até que certa manhã a vi aberta e um homem com um pincel na mão a coloria com tons alegres. Dias depois percebi que agora, no apartamento, viviam dois jovens que só vez ou outra se aproximavam da janela. Talvez, nessas ocasiões me vissem. Então, compreendi que eu seria incorporado à paisagem deles. Até que eu viesse a desaparecer, certamente antes deles tão mais jovens que eu.

É a ansiedade de chegar ao dia do meu inesperado desaparecimento o que tem me incomodado tanto.

O perde-ganha

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As fotos de políticos vencedores nas eleições ocupam primeiros planos nos meios de comunicação. Faces iluminadas por largos sorrisos retratam a alegria da vitória. Expandem-se as almas que se projetam em promessas de futuras realizações. Mar calmo na superfície, como serão as ondas nas profundidades? Mas, não há que se pensar nisso. A vitória empolga. O vitorioso se transcende. Tudo azul em céu de brigadeiro.

Nas sombras transitam os derrotados. Semblantes tensos, cabeças baixas, economia de declarações. Não há o que dizer quando a rejeição do eleitorado se revela. Análise de erros, autocrítica? Seguir adiante ou desistir? Quem sabe. Nada como um dia após o outro. O ferro que fere também poderá servir como arma no futuro. Se houver futuro.

A classe política está em baixa. Mas políticos são políticos e deles tudo se espera. É como se o ser político se diferenciasse do homem comum do dia-a-dia. O cidadão que discursa no palanque comporta-se de outro modo quando se despe da condição de político. Parece que na política tudo se justifica. Em casa a moral pode ser outra.

Dirão que nem sempre é assim. Verdade. É preciso separar os bons dos maus. Também verdade. Há gente séria e honesta militando nas hostes partidárias. Claro que sim. Mas, então, por que parece ser tão difícil identificá-los?

Entretanto, existem personagens políticas que permanecem nas memórias. Nem sempre são os melhores, mas o carisma natural que possuem contribui para seu sucesso.

Lembro-me de relatos sobre um controvertido político do passado que foi governador de São Paulo. O Sr. Adhemar de Barros notabilizou-se por seu estilo inconfundível. Um antigo juiz, na época em atividade numa comarca do interior, relatou-me de seu encontro com o então governador que passava pela sua cidade. Por obrigação o juiz foi visitar o governador no hotel onde se hospedava. Conduzido por um assessor o juiz foi levado ao quarto onde estava o governador. Ao entrar deu com o governador inteiramente nu. Após o que se sentaram e seguiu-se a conversa protocolar. O juiz metido num terno, o governador nu. Até a despedida.

Minha tia me contou sobre a passagem de Adhemar pela cidade onde ela morava. Moça na ocasião, minha tia teve a oportunidade de apertar a mão do conhecido político. Depois disso relatou-me ela não ter lavado a mão por uma semana… Eram outros tempos.

Políticos e seus seguidores…