Encontros com George Shearing at Blog Ayrton Marcondes

Encontros com George Shearing

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Encontrei-me poucas vezes com George Shearing.  Na primeira, creio que em 1985, havia descido de um ônibus na Serra da Mantiqueira e me aventurado nos pouco mais de 4 km, percorridos a pé até Santo Antônio. Noite escura, fria, vento cortante, afora a passagem na estrada diante de um sítio cujo proprietário deixava livre um enorme cachorro que vigiava sua propriedade. Era seguir por ali, silenciosamente, torcendo para que o cão dormisse e não me atacasse.

Pouco antes de chegar a casa descera forte neblina. Acendi as luzes, abri um vinho e liguei o som. Lá fora não se via nada, exceto a nuvem que envolvia tudo, dando-me a sensação de estar fora do mundo, isolado, como se a casa flutuasse acima de tudo. George Shearing tocava “Here, there and eveywhwere” música que ouvi várias vezes. Assim, o som do piano plasmou-se às imagens daquela madrugada inesquecível.

Meu segundo encontro com Shearing  aconteceu no Teatro Municipal, São Paulo. Apresentava-se ele com um trio. O pianista cego entrou no palco conduzido por um rapaz que o levou ao piano. Não disse palavra e começou a tocar, enchendo o teatro com encanto invulgar de sua música. Éramos poucos na plateia naquela noite e pudemos fruir da arte de um pianista notável.

Na terceira vez dei com Shearing acomodado numa banqueta no Birdland, em New York.  Havia se apresentado naquela noite e aguardava que o levassem até o carro. Sentei-me ao lado dele e, em vão, ensaiei dizer alguma coisa. Venceu-me a timidez. Tinha ao meu lado o grande pianista do be-bop que incendiara casas noturnas dos EUA nas décadas de 40 e 50. Lembrei-me das palavras de Jack Kerouack no livro “On the road”. Dean e Sal, personagens do livro, tinham visto Shearing apresentando-se em New York. Desde então Dean referia-se a Shearing  como “Deus”. Assim Sal descreve a entrada de Shearing para tocar em Chicago:

“‘Sal, Deus acaba de chegar - diz Dean. Olhei. E, como sempre, ele estava com a cabeça cega apoiada na mão pálida, ouvidos bem abertos como orelhas de elefante, ouvindo os sons americanos e traduzindo-os para seu uso de uma noite de verão inglesa.”

Meu quarto encontro com George Shearing  ocorreu,  inesperadamente, nesta manhã quando ouvi, pelo Spotify, o pianista executando “ Here, there and everywhwre”. Há 40 anos eu não ouvia esta gravação que me devolveu àquela noite na qual a casa nas montanhas fora envolvida pela nuvem de neblina. De repente estava eu outra vez naquele lugar, isolado do mundo, tomando um gole de vinho, ouvindo Shearing tocar. Longe do mundo, imerso na noite de neblina. Era eu, quarenta anos mais jovem, saboreando o milagre operado pela arte dos dedos de Shearing sobre o teclado.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 outubro, 2016 às 8:57 pm

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