2016 março at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para março, 2016

Indignação

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Tal a voragem de notícias que só resta o atordoamento diante de tanta confusão. As coisas mudam a cada instante. Idas e vindas, pronunciamentos, revelações, novas versões, nesta “Terra do tudo pode” onde os freios acionados parecem não ter forças para conter tanta corrupção. A TV da sala converteu-se em nada mais que um esgoto de onde brotam conteúdos cujos odores são insuportáveis. Já não se aguenta mais tudo isso.

Mas, existe o outro lado. Existe a vida comum, a trajetória do cidadão desconhecido, aquele que rala todo dia pra levar para casa pelo menos o mínimo necessário a si e aos seus. É o caso desse motorista de táxi com quem o passageiro se encontra ,fortuitamente, e dele ouve histórias que poderiam pertencer a qualquer cidadão.

O táxi é velho, o homem ao volante parece dirigi-lo com raiva. É um homem alto, de meia idade, atento ao trânsito contra o qual, vez ou outra, pragueja baixinho. A certa altura, depois da travessia do canal, o telefone toca. O motorista atende, ouve a alguém que fala e praticamente não responde. Antes de desligar avisa que logo estará em casa, vai achar um jeito.

Pelo retrovisor o passageiro vê parte do rosto contraído do homem a quem não conhece. Dá-lhe vontade de puxar conversa, mas o motorista começa primeiro. Fala sobre a saúde da mulher que tem doença grave, mas está em casa porque não se consegue internação em hospital. Explica que até a pouco a família tinha plano médico, mas com a crise tornou-se impossível continuar. Relata que passara a madrugada num Pronto-Socorro com a mulher, esperando por atendimento. Ao amanhecer desistira e voltara para casa: a multidão que aguardava as chamadas era numerosa demais.

Não será preciso repetir os detalhes relatados sobre a precariedade de recursos e a luta pela sobrevivência desse homem que se agarra ao volante como se pudesse dirigir para outro lugar, outro planeta talvez.

Quando a corrida termina o motorista recebe o dinheiro e destrava a porta. Ao se despedir comenta que não consegue entender direito o que se passa. Diz que ouve falar sobre o desvio de milhões e milhões, muito dinheiro que bem usado poderia melhorar a vida de gente como ele e sua família. Não consegue entender como para ele o dinheiro tem que ser conquistado a duras penas, honestamente, enquanto que muita gente o consegue através de roubos e desvios. Nesse momento vira-se e o passageiro se defronta com a face de um homem indignado.

O passageiro desce do carro e para na calçada, observando o homem que se afasta, desaparecendo. Por alguns instantes pesa ao passageiro a dor do outro, mas é só mesmo por alguns instantes, porque a vida segue e nada se pode fazer quando ase vive num país mortalmente ferido pela corrupção.

Lhosa

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Mario Vargas Lhosa faz hoje 80 anos e nós o vemos, entre sério e divertido, olhando-nos da foto em que apoia o braço sobre a cabeça de um leão de concreto ao pé de uma escada. Está ali o premiado escritor a quem tanto admiramos e devemos páginas e páginas de grande literatura. Não por acaso a Academia do Nobel o premiou em 2010: fez-se ali justiça a um incansável trabalhador das letras, dotado de incrível capacidade inventiva e enorme domínio da língua. O Nobel curvou-se a mais um dos poucos sul-americanos que vieram a merecer sua atenção. Basta dizer que o grande Jorge Luís Borges nunca recebeu o prêmio que de direito teria sido seu em várias ocasiões, tal a magnitude de seus escritos.

De Lhosa sempre se fala sobre sua desavença com o até então seu amigo Gabriel Garcia Márques a quem agrediu com um murro na cara. Márques-  que mais tarde também receberia o Nobel - jamais falou sobre o assunto de modo que a razão para a briga permanece insondável aos admiradores dos dois escritores, embora muita fofoca exista sobre o assunto. Aliás, a data como a de hoje nos proporciona a oportunidade de um olhar sobre o homem Lhosa, para além do premiado escritor. O Lhosa sempre combativo se destaca, seja através de seus artigos publicados na imprensa ou em sua incursão na política como candidato à presidência da República do Peru. Naquela ocasião Lhosa foi derrotado por Fujimori. Ainda bem. Perdeu o Peru, ganhamos nós, amantes da literatura.

O primeiro livro que li de Lhosa foi “Pantaleão e as visitadoras”. Lembro-me de que na época um amigo me falou sobre o livro e instou comigo para que o adquirisse. De fato, comprei o livro que li quase sem parar. Fantástico e divertidíssimo. O jovem capitão Pantaleão Pantoja é designado para organizar um bordel em plena selva para atender às necessidades de soldados que, no isolamento da floresta, atacavam mulheres, violentando-as e manchando a reputação do exército. Muito bem treinado, organizado, Pantaleão esmerou-se na sua função. De início solicitou informações com as quais montou um relatório detalhado no qual estabeleceu normas relativas à quantidade de prostitutas, pagamento da cafetina, desempenhos sexuais e assim por diante. A escrita de Lhosa, permeada por diálogos entre os quais se interpõem documentos oficiais do exército, faz a delícia dos leitores.

Vida longa a esse grande escritor que hoje festeja seus 80 anos de idade.

Arte desrrespeitada

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Se bem me lembro do ano foi em 1960 - ou 61 - que, pela primeira vez estive em Minas, tendo oportunidade de visitar Congonhas, Mariana, Ouro Preto e Belo Horizonte. Éramos um grupo de formandos de ginásio e ganháramos do governo estadual a viagem, de ônibus, ao estado vizinho.

Naquela época, bastante jovem, não tinha eu ciência da importância das obras artísticas que visitava. De modo que em Congonhas do Campo talvez mais tenha me impressionado o fato de presenciar uma cirurgia realizada pelo famoso médium Zé Arigó que as monumentais obras do Aleijadinho. De resto, vale lembrar de que pudemos adentrar o interior das capelas dos Passos da Paixão, ficando ao lado das esculturas do grande artista. Hoje em dia - ainda bem - as capelas são fechadas e bem vigiadas dado o perigo da ação de vândalos sempre dispostos a destruir aquilo de que não respeitam, nem entendem.

Lembro-me, também, do momento em que chegamos à Pampulha, em Belo Horizonte, e nos foi apresentada a monumental obra de Oscar Niemayer na qual Cândido Portinari deixou gravada a grandeza e ousadia de sua arte. Na ocasião, um preceptor explicou-nos a natureza dos desenhos de Portinari, destacando o fato de ter colocado um cão ao lado de São Francisco, ao invés do tradicional lobo que sempre acompanha o santo. Como se sabe o arrojo da obra de Niemayer e a obra de Portinari não foram bem aceitas pela comunidade eclesiástica da cidade à época da construção da igreja de São Francisco. Decorreram-se 17 anos até que, pela primeira vez e na presença do então presidente da República Sr. Juscelino Kubitscheck, fosse realizada a primeira consagração na igreja.

De que a formação cultural dos brasileiros infelizmente é deficiente não é segredo para ninguém. A juventude de nosso país em relação às nações europeias confere-nos diferenças inquestionáveis em relação à presença de museus e obras de arte em geral. Em Paris, por exemplo, crianças de baixa idade têm aulas de arte dentro de museus, como o D’orsay , recebendo explicações sobre pintores e quadros originais ali expostos. Talvez por isso por aqui não se valorizem tanto obras de arte por mais importantes e reconhecidas que venham a ser.

Não sei se o raciocínio acima é correto, mas talvez sirva para pelo menos explicar a ação do vândalo que ousou pichar a capela de São Francisco na Pampulha, imprimindo traços negros sobre os desenhos de Cândido Portinari. Certamente, o elemento desconheceria a importância e valor da obra que em poucos minutos maculou com seus tristes rabiscos. Ao ser identificado declarou o vândalo que fizera aquilo como protesto à recente inundação provocada pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana…

A restauração do painel pintado por Portinari é possível. Ainda bem. Mas, resiste essa sensação de inconformismo contra um ato não só de desrespeito a um patrimônio cultural do país como produto de tão grande imbecilidade.

Tintim degolado

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Assassinatos são comemorados. Alegram-se seus executores, comemorando com distribuição de doces. O Estado Islâmico (EI) comemora o ataque terrorista realizado em Bruxelas, no qual mais de 30 pessoas morreram e cerca de 100 foram feridas. Na chamada internet profunda pululam mensagens de regozijo e promessas de novos ataques. Enquanto na internet de superfície lamenta-se mais esse ato desumano, nas profundezas a tônica dos comentários é outra.

Há poucos dias, justamente em Bruxelas, foi preso um dos mandantes do terrível atentado ocorrido em Paris no qual pereceram inúmeras pessoas. Esse terrorista tinha a missão de explodir bombas em seu próprio corpo, mas, arrependeu-se e desistiu do suicídio.

A verdade é que não se sabe como colocar fim a essa série de atentados. Combate-se um tipo de extremismo no qual os terroristas tratam a própria vida com descaso. O homem-bomba aceita seu sacrifício como missão e espera sua recompensa após a morte. A partir daí orgulha-se por levar consigo o máximo número de pessoas que conseguir atingir. O regozijo é tanto maior quanto mais vítimas se conseguirem num atentado.

Entre as imagens divulgadas pelos terroristas em sua celebração pelo último atentado destaca-se a do personagem Tintim degolado. Tintim, como se sabe, é belga daí ter sido lembrado pelos terroristas que cortaram o seu pescoço.

De nada valeram as manobras do repórter Tintim junto a seu inseparável cão, Milu, com quem há mais de 70 anos enfrenta situações complexas e perigosas. Nem mesmo amigo de Tintim, o capitão Haddock, marinheiro beberrão e rabugento, mas de bom coração, parece ter sido bastante para evitar a degola.

Ficam assim os fãs da personagem dos quadrinhos - habituados às conquistas de Tintim - estarrecidos. Nem o pequeno herói imaginário foi poupado pelas hostes do EI.

Depressão

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Dizem que não há como fugir dela pelo menos uma vez na vida. Mesmo os mais descolados podem enfrentar situações inesperadas que os levem a um surto depressivo. A perda de alguém muito querido e a ausência “para sempre” podem funcionar como gatilho para prolongada depressão.

Confesso que ao longo da vida sempre tive meus altos e baixos, ainda assim nunca me considerei propenso à depressão. Também confesso que, como todo mundo, já tive lá meus momentos de baixa e fiquei um pouco deprimido. Mas, não a ponto de ser jurado como um sujeito depressivo.

O problema é que a minha opinião sobre mim não conta com a concordância dos entendidos. Na última vez que fui ao médico ele me comunicou, solenemente, a necessidade de cuidar da minha depressão. Em vão protestei. Terminou com o médico me receitando um antidepressivo, embora avisando quanto a alguns detalhes de adaptação ao medicamento.

Não sei se você já tomou algum remédio desse tipo. O fato é que não se usa o tal impunemente. Para mim o efeito pareceu o de tomar algum veneno. Os efeitos colaterais foram terríveis. De nada adiantou mudar o medicamento, outro antidepressivo. Depois de alguns dias a mesma repercussão horrível, a náusea permanente, a sensação de estar num barquinho sendo jogado para todo lado durante tempestade em alto mar, ao sabor de ondas gigantescas.

Falo sobre esse assunto porque leio notícia sobre a tal “depressão de quartos”. Trata-se de um mal que sucede a pessoas que viajam muito a trabalho e passam noites e noites em hotéis. Nessas situações o quarto de hotel torna-se barreira a ser vencida. Ao abrir a porta do quarto o viajante sente o cheiro de coisa guardada e passa a enfrentar a solidão de um lugar que raramente parece a ele familiar.

Certa época passei alguns meses viajando a trabalho pelo Brasil. Achava interessante estar sempre em aeroportos, embarcar, desembarcar etc.  Com o tempo fui perdendo o interesse pela novidade. Lembro-me de que os quartos de hotéis foram se tornando cada vez menos convidativos, por melhores que fossem. Até que certa noite, se não me engano num hotel do Mato Grosso, bateu-me o desespero de achar que aquela “interessantíssima” aventura não teria fim. Veio a necessidade de estar em casa, junto da família, perto das crianças.

Era já madrugada quando capitulei. Liguei para a minha casa, acordei todo mundo e só depois de ouvir a voz de cada um deles, todos mortinhos de sono, consegui me deitar e descansar um pouco.

Mas, não sou um cara depressivo….

Escrito por Ayrton Marcondes

23 março, 2016 às 3:15 pm

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No calor da hora

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Mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em São Paulo, pedindo o fim do governo. Menos de 100 mil manifestaram-se contrários à mudança de governo. Nos jornais, diariamente, aparecem opiniões divergentes. Há favoráveis e contrários ao fim do atual governo.

Em ambos os lados se destacam radicalismos. Conheço um petista capaz de dar a vida por Lula se preciso for. Para ele tudo não passa de armação das tais “elites” que de modo algum podem aceitar a ascensão das classes mais baixas. A situação atual teria sido gerada por acordo entre os membros da classe dominante que não suportam conviver com o povão nos aviões, em shoppings etc. Cada um no seu lugar…. Sem esquecer a perseguição da imprensa.

Também conheço gente que já não tolera os erros do governo, as mentiras, as ações confusas e o “salve-se a qualquer custo” para se manter no poder. Dedo em riste um conhecido acusa o governo e seu partido de terem roubado escandalosamente, sendo o ex-presidente nada mais que vulgar chefe de quadrilha.

Esse o espírito do momento que desperta tão apaixonadas e acaloradas discussões. Enquanto isso, o país naufraga sem que seja possível qualquer tipo de acordo. O “nós contra eles” infelizmente tem sido estimulado e as consequências são imprevisíveis.

Pois é, as consequências. É do que menos se fala no calor da hora. Todo mundo sabe do perigo das paixões escancaradas. Casais se matam por paixão, isso acontece todo dia. Paixões são sempre perigosas. Pois não será demais dizermos que estamos a um fio de que tudo isso se torne uma convulsão incontrolável. Pode-se até mesmo dizer que o pavio da bomba está aceso.

Todo mundo sabe muito bem sobre tudo isso que está escrito acima. Entretanto, as coisas caminham como se estivéssemos num lindo parque verdejante, com muito sol e passarinhos cantando. Pois é sobre esse jardim mais feliz do mundo que alguém, dias atrás, estranhando o silêncio das forças armadas, perguntou: quando é que os militares vão entrar em cena?

Nossa!

Pinheiro Machado

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O famoso advogado Leopoldo Heitor morreu em 2001 e levou consigo a solução do mistério sobre Dana de Teffé. Dana era tcheca de origem judia e se casara com o embaixador brasileiro Manuel de Teffé von Hoonholtz.  Riquíssima, após separar-se do embaixador contratou Leopoldo Heitor como seu advogado. Numa viagem pela via Dutra em companhia de Heitor, Dana de Teffé desapareceu. Leopoldo Heitor explicou o desaparecimento, dizendo que Dana De Teffé fora vítima de sequestro. Acusado de assassinato Heitor foi preso. O rumoroso caso atraiu a atenção dos brasileiros no início dos anos 60 do século passado.

Mais tarde Leopoldo Heitor participou de programa de TV no qual entrevistou Manso de Paiva, assassino do senador Pinheiro Machado. Perguntado se tinha algum arrependimento pelo crime cometido Manso disse que não. Matara Pinheiro Machado pelo bem do Brasil, para extirpar o mal que o senador representava para o país.

Pinheiro Machado era considerado como o Condestável da República. Gaúcho que lutara contra as hostes de Gumercindo Saraiva durante a Revolução Federalista elegera-se senador e exercera poderes excepcionais durante o quadriênio do Marechal Hermes da Fonseca na presidência da República. Em 1915 Pinheiro era combatido pelos adversários e jornais que o criticavam. Mas, era homem forte e valente. Certa ocasião, logo após a posse de Hermes, quase foi linchado por uma multidão que o aguardava nas portas do senado. Sua resposta ao cocheiro que perguntou o que deveria fazer para saírem dali é famosa: “Nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo!”

No dia 8 de setembro de 1915 Pinheiro Machado, vindo do Senado, adentrava o saguão do Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro quando foi surpreendido pelo ataque de Manso de Paiva que o apunhalou pelas costas. Relata-se que, após o assassinato, Manso sentou-se e esperou a chegada da polícia, entregando-se.

Nunca se soube se Manso de Paiva agira a mando de interessados no desaparecimento de Pinheiro Machado. Aliás, Manso jamais mudou sua primeira versão: agira por conta própria e para o bem do país.

Nos últimos dias temos presenciado a progressão de um clima de tensão no país. Em meio a ânimos exaltados proliferam radicalismos e tudo pode acontecer. Não será nenhuma surpresa se elementos radicais se aproveitarem da situação para perpetrar ações destemperadas. A expulsão de conhecidos políticos, durante recente manifestação, serve como termômetro da situação atual. Como no tempo de Pinheiro Machado o perigo é iminente.

Num país desconhecido

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O Simonal cantava: “moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, que beleza”. A letra da música está errada: a palavra “tropical” deve ser substituída por “desconhecido”.

Não sei bem onde vivo. E me justifico: cara, que diabo de situação é essa? Como é possível que a cada dia mais e mais desmandos sejam revelados? De uma coisa sabemos: amanhã será pior que hoje. Novas bombas explodirão. Personagens entrarão nas nossas casas com discursos da mais completa desfaçatez. Farão isso como quem conta histórias de carochinha a crianças. Ou a adultos muito burros, incapazes de perceber as verdadeiras intenções de quem fala.

Amo o meu país, mas sinto-me constrangido em ser brasileiro. Envergonhado. Inaceitável que homens públicos se permitam performances tão lamentáveis. Agem fazendo-nos pagar o altíssimo custo decorrente de seus atos. O Brasil é um barco que desce o rio ao sabor das correntes. Barco sem capitão. Do salve-se quem puder. Da primazia pelos interesses menores.

Triste época essa que atravessamos e parece não ter fim. Você jura que amanhã não dará atenção aos noticiários porque já não aguenta tanta desordem e má fé. Mas, é impossível fugir. Aliás, como ontem quando fomos brindados com uma belíssima lição de solidariedade humana. Socorrer a quem necessita, sem outro interesse que não o de ajudar. Trazer no cerne da alma o belo sentimento de socorrer a quem precisa de apoio. Não abandonar o próximo e seus familiares à própria sorte.

Que bela lição. Tão edificante.

As pessoas morrem

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Nem sempre nos lembramos, mas as pessoas morrem. Não sei se você faz isso, mas costumo ler obituários de jornais. Meu tio, há muito falecido, lia obituários e, vez ou outra dizia: olhe, morreu fulano de tal etc.  Falava em tom de aviso sobre o passamento de alguém conhecido. Na verdade, não fazia ideia de quem se tratava. Era apenas mais uma deserção. Os homens são desertores natos. De repente saem de circulação, desaparecem. Seus passados aos poucos se apagam. Decorridos anos restam as inscrições em lápides. Nada mais.

Obituários nos servem como termômetro para deserções. Tem-se ideia da média de idade dos que se foram. Alguns são lembrados pelas missas de 30º dia, outras pelas de 1 ano. Há quem chore eternamente a perda do seus. Lembro-me de uma mulher que visitava diariamente o túmulo do marido. E já se haviam passado dois anos desde a morte dele. Cada um conhece a dimensão da própria dor.

O obituário de ontem trouxe notícia sobre a morte do Hildebrando. Quem era o Hildebrando? Ah, esse eu conheci. Fui aluno dele. Ensinava português naquelas classes de cursinhos onde o ouviam quase 200 alunos. Eu era um desses rapazotes, pedido no meio da turba naqueles idos do final dos anos 60.

O professor Hildebrando era ótimo, tornava a sintaxe gramatical inteligível. Raramente falava sobre si. Certa manhã abriu exceção: contou-nos que se metera na política em cidade do interior. Se bem me lembro foi candidato ou chegou a ser prefeito. Depois largou tudo e veio para a capital para ensinar português.

Li no obituário que em casa Hildebrando era quieto, fechado. O filho relata que ao assistir à aula do pai pensou: mas, esse não pode ser o meu pai…. De fato, no tablado o mestre era descontraído.

O professor Hildebrando deixa atrás de si livros escritos e muita gente que se valeu de suas aulas e palestras. Permanecerá nas nossas memórias enquanto não chegar a nossa vez de desertarmos.

Saudades, caro professor.

A face da derrota

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Há faces e faces. Algumas alegres, outras tristes. Há a face que chora e a que exulta. A que sorri e a fechada. Pela face imaginamos o que se vai na alma das pessoas. O rosto mal dormido, pungente. O rosto iluminado dos vencedores. A expressão incógnita do distraído. Os olhos húmidos dos emocionados. A face contraída da dúvida. O rosto transido do medo. A face é espelho que não mente. Mesmo os grandes atores correm o risco de trair-se. A moça que desiste do casamento ao entrar na igreja leva na face a imagem do desengano que a ela é impossível de evitar.

Ontem a presidente da República apareceu na TV para dizer: não tenho cara de quem vai renunciar. Foi traída pela face. As palavras que saíam da boca não combinavam com a expressão cansada, talvez torturada. Isolada politicamente, maltratada pela mídia, responsabilizada pela crise, tinha o rosto de uma mulher sozinha, no limite de suas forças.  De mulher firme, disposta a resistir, mas vencida.

Ao ver a figura da presidente veio-me à memória a primeira estrofe do poema “Retrato” da grande Cecília Meireles:

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.