2015 janeiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para janeiro, 2015

Fatalidades

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Elas acontecem. Inesperadamente.  O cidadão está dirigindo seu carro numa rua da capital. Chove torrencialmente. Trovões, raios, ventania. Tanto vento que uma enorme árvore cai sobre o carro e mata o motorista. Ele estava dentro do carro, dirigindo, naquela rua, passando sob a árvore no exato instante em que ela caiu. A árvore estava ali, firme, altaneira há décadas. Despencou naquele dia. Ele morreu. Fatalidade.

Estar no lugar errado, na hora errada, parece ser o código de startup das fatalidades. Há sempre o ingrediente do inesperado. Vidas são ceifadas assim, misteriosamente. Fatalidades são mais que acidentes: trata-se de acidentes que parecem programados com algo a mais, como se um diretor montasse cuidadosamente a cena para filmá-la no exato instante da ocorrência.

Fatalidades impressionam, chamam a atenção.  Na Baixada Santista existe a ponte do Mar Pequeno que consiste de dois conjuntos de pistas para o vai-e-vem dos carros. Entre os dois conjuntos, protegidos por guard rails há um vão sob o qual está o mar. Ontem duas motocicletas se chocaram na ponte. Um dos motociclistas foi jogado de sua moto e eu corpo lançado justamente no vão entre os conjuntos de pistas. Caindo no mar o motociclista desapareceu e até agora seu corpo não foi localizado. Houve um acidente acompanhado de fatalidade.

De meu tempos de menino me lembro de uma jardineira que circulava pelas estradas de terra entre cidadezinhas do interior. Certo dia estava na jardineira um rapaz, trabalhador da roça, para quem a viagem figurava-se como excursão de reconhecimento de um mundo distante. Tão distraído ia, metendo a cabeça para fora da janela a fim de observar tudo, que não reparou num poste de rua. Assim, a cabeça colidiu com o poste sendo quase toda arrancada do corpo. Aconteceu defronte à minha casa. Alguém começou a gritar: fatalidade.

Cheguei a ver o corpo do rapaz sem cabeça, cena que me aterrorizou durante muito tempo. Fragmentos do cérebro dele espalhavam-se na rua causando péssima impressão.

Havia um poste no caminho da alegria do rapaz.

Ninguém está a salvo de fatalidades.

As máscaras

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De repente me pergunto sobre o intuito de quem usa máscaras de carnaval. Além do aspecto lúdico em si, será que o folião que decide sair à rua com máscara reproduzindo a face de alguém identifica-se com a tal pessoa, admira-a ou simplesmente quer tirar sarro dela?

Não tenho resposta para isso, embora prefira acreditar que a razão penda mais para o lado da avacalhação. Então pergunto: fosse você folião que gosta de máscaras, usaria uma da Graça Foster ou a do Nestor Cerveró?

Se acha a pergunta estranha é porque talvez não saiba que foliões estão pedindo e fábricas produzindo máscaras de gente relacionada à Petrobrás e ao escândalo que ronda a petroleira.  A coisa chega ao ponto de que por falta de tempo não serão produzidas as máscaras do Cerveró. As da Graça Foster estão em andamento.

Já usei fantasias e máscaras. Sai à rua em bloco com máscara para não ser reconhecido. A máscara confere a quem a usa liberdades extras. Rapaz mexe como mocinhas de quem a timidez o impediria de se aproximar. Segredos e convites inconfessáveis podem ser ditos ao pé do ouvido pelo autor escondido atrás da máscara. O Juliano aproximou-se da futura mulher dele num baile de carnaval, dançando com ela na noite de terça-feira gorda sem jamais mostrar o rosto. Na quarta-feira foi procura-la, apresentando-se e deu no que deu. Anos depois ela me confidenciaria que jamais dissera a ele que o reconhecera desde o primeiro minuto…

Não quero me aprofundar no assunto, mas vale lembrar de que hoje em dia máscaras tem sido usadas para o mal, a ponto de serem proibidas em manifestações. Radicais surgem em meio a passeatas reivindicatórias e, protegidos por máscaras, depredam, arrebentam com o que encontram pela frente.

Mas, caro amigo, máscaras são artefatos eternamente ligados ao carnaval. Pena que nesses tempos violentos os blocos que saiam às ruas nas cidades desse imenso Brasil estejam rareando. Assim o carnaval vai perdendo sua mística e toda a mágica da folia é comprometida.

Ficam na memória os velhos carnavais como aquele em que meu primo conseguiu uma “Rodouro” que deu o que falar. Mas, éramos jovens, os tempos eram outros e o carnaval uma grande festa para a qual nos preparávamos meses antes.

Então pense e responda: você usaria a máscara da Graça Foster ou uma do Nestor Cerveró?

Extermínio

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Nunca fui visitar Auschwitz nem pretendo fazê-lo. Entrar num lugar onde 1,6 mi de pessoas foram assassinadas brutalmente é coisa para além das minhas forças. Crematórios, câmaras de gás, alojamentos… A mote paira em Auschwitz, assim me descreveu o lugar um amigo que lá esteve. Contou-me que de tal forma se impressionou que, durante alguns dias, enfrentou dificuldades para conciliar o sono.

Não se pode relegar ao esquecimento um lugar onde o homem se revelou capaz de tamanhas atrocidades. A memória de Auschwitz deve ser mantida para que nunca mais o que lá se passou se repita, mas…

No dia de ontem completaram-se 70 anos desde o dia em que tropas soviéticas libertaram Auschwitz. Na mídia sobreviventes da chacina nazista relataram os horrores praticados e o milagre de terem sobrevivido. São eles hoje pessoas idosas, muitas delas únicos sobreviventes de famílias inteiras dizimadas. Trazem consigo uma dor incontornável. Fizeram vida depois da guerra, emigraram, casaram-se, tiveram filhos e pode-se dizer que a seu modo foram felizes. Certamente não lograram cicatrizar completamente a ferida que trouxeram da guerra.

Nos meus tempo de menino, anos cinquenta, ouvia dizer que “alemão é gente ruim”.  Certa ocasião mudou-se para casa próxima à nossa um alemão. No começo eu tinha medo daquele homem alto e claro, sempre sério. Mas, era um sujeito boníssimo. Tornei-me amigo do filho dele de quem ainda hoje me recordo com muita saudade.

O nazismo foi o que foi, não há como saber a quantidade do que se escreveu sobre Hitler e sua política de extermínio. Para nós que vivemos na América do Sul no fim das contas tudo parece não passar de história, nada mais que isso. Meu pai vez ou outra lembrava que gente como eu tinha muita sorte por ter nascido depois da guerra. Para meu pai a Guerra Fria não era lá muita coisa diante do passado horrível dos embates na Europa.

Mas, Auschwitz de modo algum pode ser encarado como simplesmente um detalhe da Segunda Guerra. Quem duvida que se arrisque a digitar “Google imagens” a palavra “Auschwitz”. Verá a tela do computador se encher de imagens retratando cenas horríveis nas quais corpos humanos são empilhados em valas comuns e por aí afora. E fotos de militares nazistas conversando, sorridentes, aparentemente desligados da chacina ao seu redor.

Não cheguei a ver todas as fotografias. Parei no meio. Aquilo não é fantasia, não é montagem. Aquilo é o horror em seu estado mais puro. Horror realizado por seres humanos bestializados contra seres humanos.

interestelar

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Confesso que logo após assistir ao filme não resisti à tentação de saber o que a turma tinha achado da produção do diretor Christopher Nolan. Afinal o homem era o respinsável pela trilogia Batman e aventurara-se naqule estranho “A Origem” que punha a gente para pensar aum bocado. E agora vinha esse “Interestelar” com toda pompa de grande produção, duas horas e cinquenta de duração, atores como Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Michael Caine e Matt Demon. Diretor e atores pra ninguém botar defeito, superprodução etc e tal.

Bem não vi nenhuma crítica realmente elogiosa, nem aqui, nem nos EUA. Aquela coisa, o filme é bom etc, mas… Esse “mas” se refere ao excesso de diálogos, à necessidade de explicar os fenômenos físicos relacionados à física quântica, à questão da passagem do tempo, à gravidade e à abertura do buraco negro que permitiria encurtar o tempo de viagens espaciais transportando o homem a regiões longínquas do universo, distantes milhares de anos- luz do nosso planeta.

Creio que interessar-se mai ou menos pelo filme - não me refiro a simplesmente gostar ou não - dependerá muito do interesse do espectador pela situação atual de nosso planeta e do que está para acontecer num futuro não muito distante. No filme a Terra agoniza. Esgotado pela ação do homem e sucumbindo à ação de pragas o planeta tem seus dias contados, fim evidenciado pela carestia e nuvens de poeIra que tudo encobrem. Nesse planeta arrasado só uma solução se apresenta como recurso para a continuidade da espécie: sair do planeta, transportar os terráqueos a um planeta similar que ofereça condIções para a continuidade da vida como a conhecemos.

É nessa missão - a de encontrar uma nova morada - que o capitão Cooper (Mattheu) se aventura. O enredo do filme consiste nessa louca aventura por espaços  desconhecidos em busca de um mundo que possa abrIgar a espécie humana antes da grande catástrofe que colocará fim a ela.

Realmente há excesso de diálogos e explicações que visam dar ao espectador a medida exata do que se passa na tela. Infelizmente tais explicações são necessárias de vez que não se espera que espectadores comuns estejam famíliarizados com as linguagens da física e da alta tecnologia. Entretanto, não se pode dizer que isso diminua o valor do filme que na verdade propõe uma séria discussão a respeito do destino do homem. De fato o planeta vem dando sinais de cansaço diante dos abusos praticados pelo homem e hoje em dia fala-se muito sobre a necessidade de exploração do espaço como via de acesso para formação de colônias humanas Nesse sentido não há como negar a atualidade do filme que se insere em questão, queira-se ou não, em aberto.

De modo que se de um lado tem-se seres humanos imersos em suas disputas nas quais não faltam mesquinharias, se ainda perduram valores como o amor e a proteção dos filhos, por outro há a necessidades superior de salvar o homem e dar continuidade à espécie. O filme de Nolan aventura-se nesse difícil caldo de contradições e sai-se muito bem ao permitir que a inteligência humana se sobreponha às dificuldades.

“Interestelar” é um bom filme que prende o espectador porque o que está em jogo na tela éo o futuro do homem e seu destino.

A culpa é do piloto

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Conheço gente que não entra em avião nem que a vaca tussa. Dias atrás, durante entrevista, conhecida atriz declarou seu pavor em relação a viagens aéreas. Relatou fixar os pés no chão das aeronaves porque só assim se sente segura. Enfim, impede que o avião despenque do céu segurando-o com os pés.

Tenho um amigo que se casou recentemente e a noiva queria porque queria conhecer o Chile na lua de mel. O problema é que ele era inimigo jurado de aviões nos quais não viajaria de jeito nenhum. Acabou cedendo. Cruzou os Andes sem sufoco, adorou o Chile e agora já fala em outras viagens.

Quando entramos num avião raramente pensamos sobre a possibilidade de ocorrências de problemas técnicos ou falhas do piloto. Pilotos são pessoas sem face, desconhecidas, nas quais confiamos totalmente. Eles têm nas mãos o poder de conduzir vivas inúmeras pessoas, entregando-as perfeitas em seus destinos de viagem. Para isso contam com treinamento, aprendizado, capacidades pessoal, bom senso etc. Devem ser capazes de escolher a medida correta em situações de emergência e mesmo realizar manobras que incluem até aterrisagens forçadas. Quando um avião atravessa regiões de grande turbulência é no piloto que depositamos a nossa confiança.

Acaba de ser divulgada notícia na qual se atribui ao piloto a responsabilidade sobre o acidente aéreo que vitimou o então candidato à presidência Eduardo Campos. Como se sabe o avião em que o candidato viajava caiu em Santos minutos depois de abortar a aterrisagem. O que se divulga é que o piloto teria perdido a orientação espacial, tanto que mergulhou no solo em alta velocidade. Corrobora essa tese o fato de não se terem encontrado sinais de problemas mecânicos no avião que estaria em perfeitas condições.

Divulgada a notícia vieram protestos, a começar pelo testemunho quanto ao treinamento e experiência do piloto. Essa discussão vai longe, infelizmente não se podendo devolver à vida a juventude política de Eduardo Campos.

No fim de dezembro caiu no mar um avião da Air Asia provocando a morte de 162 pessoas. Resgatadas partes do avião das águas marinhas noticia-se que no momento do acidente o avião voava em velocidade excessiva, daí ter parado e caído. Falha do piloto, portanto.

Como sempre acontece o erro dá mais notícia e chama mais atenção que os acertos. Aliás são milhares de acertos que se repetem a cada dia em voos muito bem sucedidos nas rotas aéreas de todo o planeta.

Quanto a mim, por mais que tenha viajado em aviões, ainda tenho receio deles. Dizer que faço as viagens totalmente tranquilo seria exagero. Tranquilidade mesmo só quando a nave está parada no solo e é dado o sinal, autorizando-se o desembarque.

Tiro no peito

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Não creio que pena de morte funcione no sentido de coibir crimes. Criminosos não deixariam de cometer crimes apenas pelo medo de serem pegos e condenados à morte. Discutível, não? Não me lembro em que país o roubo é punido decepando-se a mão do ladrão. Nem por isso deixam de existir os ladrões e roubos seguem acontecendo.

Execuções sempre impressionam. Há o longo período em que o condenado vegeta no corredor da morte. Datas de execução marcadas, adiamentos, recursos jurídicos e até mudanças de data nos últimos instantes fazem parte de um sistema do qual se ocupam a mídia e o interesse da população. A decretação do fim da vida e o ato de encerrá-la leva-nos a ponderar sobre até onde vai o poder dos homens que decidem o destino reservado a uma pessoa.

Semana passada foi fuzilado na Indonésia um brasileiro, o primeiro da nacionalidade a ser condenado e executado. O fato de ele ser brasileiro obviamente atraiu a atenção do país e provocou ações do governo no sentido de interceder pela suspensão da execução. A própria presidente da República chegou a falar com o presidente da Indonésia pedindo a ele a suspensão da execução. Infelizmente as ações diplomáticas não deram o resultado esperado.

Talvez porque o condenado fosse brasileiro pudemos acompanhar passo-a-passo todo o encadeamento de fatos que cercaram a execução. Ficamos sabendo, por exemplo, sobre o desespero do condenado que até a véspera não acreditava que viria a ser executado. Falou-se sobre o medo, o choro e o desespero dos últimos momentos. Nos jornais publicaram-se esquemas nos quais eram detalhadas as fases da execução, chegando-se ao momento em que o condenado, amarrado a um poste, seria submetido a um grupo de homens armados dos quais apenas três teriam em suas armas projéteis capazes de matar.

Os policiais da Indonésia seguiram à risca o ritual programado. O brasileiro foi fuzilado no dia e hora previstos e faleceu com um tiro em seu peito. Impossível imaginar o que terá se passado na cabeça desse homem em seus últimos instantes. O terror de saber-se à mercê de um pelotão de fuzilamento, a irreversibilidade de sua condição e o mergulho no desconhecido terão impactado sua mente e, talvez, num único segundo, o levado a raciocinar sobre a extensão de seu crime.

Um tiro no peito. A dor súbita e a morte. Punição rigorosa e de eficácia discutível.

Liberdade de consciência

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Saiu o novo número do Charlie Hebdo, o primeiro após o ataque terrorista à redação que resultou na morte de oito jornalistas. Na capa da edição uma charge do profeta Maomé que, como esperado, despertou reações furiosas no mundo islâmico. Pessoas morreram em protestos e ameaças de novos atos terroristas surgiram.

Aos enterros dos cartunistas mortos no atentado compareceram inúmeros simpatizantes, havendo comoção. Num deles discursou um cartunista do Charlie, homenageando o colega morto. Era um homem moreno que lia seu discurso e balançava o tórax continuamente.  Emocionado, despedia-se do amigo, transmitindo aos presentes toda a extensão de sua dor.

Consta que o cartunista do discurso foi o autor da nova capa do Charlie que tantas reações negativas despertou entre os islâmicos. Não pude deixar de pensar sobre o que se passaria na consciência desse homem porque, direito de liberdade de expressão à parte, o fato é que seu novo desenho irremediavelmente alavancará atentados e mortes. Não se trata aqui de se discutir entre o certo e o errado, liberdade de expressão e censura, etc. O que se pergunta é: você, sujeito isolado, sentado à mesa de trabalho, sentir-se-ia bem desenhando algo cujas consequências trágicas seriam mais que previsíveis? Desenharia o profeta logo depois de um ato tão terrível, alimentado ainda mais ódios e despertando reações que colocarão em risco a segurança de seus próprios compatriotas?

Tenho lido que não será meia dúzia de radicais enlouquecidos que conseguirão calar aqueles que fazem uso do inalienável direito de livre expressão. Mas, sinceramente, não sei o que se passaria em minha consciência caso fosse o cartunista responsável pela capa do recente número do Charlie Hebdo.

Terrorismo

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Quase 4 milhões de pessoas saíram às ruas de Paris numa gigantesca manifestação contra o terrorismo. Os dois terroristas que invadiram e mataram os cartunistas do jornal Charlie Hebdo foram caçados pela polícia, encontrados e mortos. O terrorista que invadiu um mercado e matou quatro reféns também está morto. A Al Qaida assume a responsabilidade pelas ações e promete mais. O mundo ocidental queda-se estarrecido. O islamismo é visto pela extrema direita como o grande inimigo. Teóricos apressam-se em separar o islamismo de ações terroristas executadas em nome dessa religião. A frase “Eu sou Charlie Hebdo” é repetida no mundo como sinônimo de repulsa aos ataques e defesa da liberdade de expressão. Surgem os “Eu não sou Charlie” dizendo-se contrários ao ato terrorista, mas lembrando que os cartunistas abusaram nas ofensas a Maomé e ao Islã. Comentaristas em vários países escrevem que nenhum jornal dos EUA, por exemplo, publicaria as charges do Charlie Hebdo. Um professor universitário escreve que o episódio ocorrido em Paris dá oportunidade a retrógrados da universidade saírem da toca, favoráveis que seriam ao ataque. Cartunistas em todo o mundo publicam charges em homenagem aos colegas chacinados. O que nem todo mundo confessa pode ser expresso numa só palavra: medo.

Há quem se lembre de citar o fato de que em países europeus estrangeiros não são benvistos. Muçulmanos pronunciam-se para lembrar que mesmo nascidos na França não recebem tratamento igual ao dispensado aos demais franceses. Na TV conhecido jornalista relata ter vivido 15 anos na Alemanha e explica o significado de ser estrangeiro naquele país. Um professor universitário lembra que os países europeus sempre trataram com violência suas colônias e cita como exemplo o caso da Argélia que pertenceu à França.

Nada justifica o ato terrorista contra os jornalistas do Charlie Hebdo. A ocasião, entretanto, desperta lembranças em relação à posição de estrangeiros no velho continente. Na primeira vez que fui a Paris, logo depois de desembarcar em Orly, saí do hotel para ver a cidade. No metrô comprei várias passagens que enfiei no bolso do paletó. Depois de passar pela catraca de uma estação, joguei fora a passagem usada. Minutos depois desembarquei em estação próxima à Torre Eifell. Já na rua fui abordado por policiais que me pediram a passagem do metrô. Em vão expliquei em inglês que a jogara fora. Ato contínuo fui colocado com o rosto voltado para uma parede onde permaneci, braços abertos, por mais de uma hora. Finalmente uma oficial mais graduada concedeu falar comigo em inglês. Ela me propôs ou ser preso ou pagar multa de 100 dólares. Paguei e, já liberado, li nos avisos do metrô sobre a obrigatoriedade de manter a passagem usada para comprovar não ter pulado a catraca. Mas, eu vinha de São Paulo onde as passagens usadas não serviam para nada, coisa que absolutamente não interessaria aos gendarmes.

Um relato como o que acabo de fazer nada tem a ver com os tristes episódios agora ocorridos na França. Entretanto, de algum modo me fazem pensar que talvez a relação com os estrangeiros naquele país deva ser repensada. Quando muçulmanos franceses saem de seu país para serem treinados por terroristas e depois retornam para cometer barbáries, algo está errado e precisa ser revisto. Atribuir atos de terroristas à irracionalidade, radicalismo religioso e mesmo lavagens cerebrais realizadas pela Al Qaida ida ou o Estado Islâmico talvez signifique olhar apenas para um dos lados do problema.

As pragas

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Vejo pessoas prometendo-se coisas, mudanças, para o ano que começa. Na TV mulheres se reúnem para promessas em relação ao ano que começa. Uma delas confessa atração irresistível pelo consumismo. Relata morar num apartamento enorme, com muitos e muitos armários, todos eles abarrotados de roupas, sapatos etc. Ainda assim ela sofre de necessidades urgentes de sair para comprar coisas, sendo que na verdade, não sabe direito o que tem em casa. Aconteceu a ela pagar fortuna num vestido e, depois, descobrir um no guarda-roupa, mesmo tecido, mesma cor, mesmo corte. Idênticos.

Outra mulher do grupo fala de seu fascínio pelo mundo do entretenimento. Ela não consegue ficar uma noite sequer em casa, precisa sair para um jantar, o cinema, o teatro ou algo que a distraia. Desde que ela se separou a cerca de um ano a vida se tornou um porre de diversões continuadas que começa cedo, logo depois de acordar, com a busca na internet sobre o que há para se fazer. Dinheiro para tais aventuras certamente não falta a ela.

A terceira é vitimada pelo vício da gula que é um perigo porque faz engordar. Daí que ela se submete a todo tipo de regimes alimentares, afora passar algumas horas do dia numa academia, fazendo exercícios. Ela morre de fome, mas traz a geladeira vazia para resistir às tentações. É louca por doces, qualquer doce, mas a preferência é por chocolate. Na véspera tomou em casa de uma amiga um bolo-sorvete de chocolate admirável, coisa caída dos céus. Uma loucura!

Do grupo a mais quietinha é a quarta mulher que ouve as amigas sem dizer palavra. Na vez dela começa perguntando o que, afinal, as outras fariam no ano que começaria. Ouviu da primeira a intenção de reduzir o consumo, da segunda a promessa de ficar mais em casa curtindo a família, da terceira o juramento de passar a se alimentar como pessoa normal. Só então a quarta disse às amigas que no novo ano pretendia fazer tudo o que nunca fizera porque sempre fora contida e recentemente concluíra que a vida era curta demais para tantos nãos a si mesma. A partir de agora seria pela primeira vez consumista, procuraria todo tipo de entretenimento e comeria o que lhe desse na telha.

Quando a quarta mulher se cala as outras três se entreolham. Ficam mudas até que a primeira, aquela do consumo, diz que pensando bem a última tinha razão, daqui a pouco estarão velhas e de que terá adiantado tanto sacrifício.

O mais provável é que, durante o ano, as mulheres continuem a ser como sempre foram. Pelo que um filósofo que também assistiu ao programa depois comentou que as pragas do mudo vieram para ficar, enraizadas que são na alma das pessoas. Mas, houve quem discordasse dele, começando pelo fato de que como homem tende a ser machista daí não compreender bem as necessidades das mulheres.

O valor da vida

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Existia, sim, algum respeito, mas os tempos são outros. Estampada nos meios de comunicação as fotos de dois rapazes tentando roubar os ocupantes de um carro durante congestionamento em rodovia. Um deles abre a porta do passageiro e tenta arrancar na marra a pessoa para fora do carro. Do outro lado o segundo exibe o revólver com o qual ameaça. Mas, o trânsito anda e o motorista arranca com o carro, deixando os bandidos para trás. As fotos impressionam. Transmitem o desespero, a impotência diante de situação anômala na qual vidas podem ser roubadas ao acaso de um tiro irresponsável. Os dois bandidos claramente não têm nada a perder. O crime é a profissão desses dois para quem a vida vale menos que uma banana.

Na passagem de ano uma mulher tirava fotos dos fogos numa praia quando um bandido tentou levar o celular dela. Nesse momento ela distanciou-se do marido. Encontrou-o um minuto depois, deitado na areia, sangrando. Levara um tiro no pescoço e morreu, bestamente. Mal inaugurou o ano novo levado que foi pela ação de um bandido para quem a vida não vale nada.

O fato é que a vida está em baixa no mercado de valores humanos. Mata-se por matar. Ou não se mata porque não se quer matar, talvez por distração. É grande a degradação moral. Ontem dois trens bateram em ferrovia no subúrbio do Rio. Mais de 100 pessoas feridas, algumas delas deitadas na plataforma de uma estação, esperando por socorro. Pessoas deitadas sem capacidade de qualquer reação: prato feito para bandidos que pularam as cercas e passaram a roubá-las. Os bandidos levavam bolsas, enfiavam as mãos nos bolso dos feridos e retiravam dinheiro, carteiras e celulares. Como perder oportunidade tão rara e sem risco?

Por sorte ninguém foi baleado e morto entre os passageiros. Puro acaso porque nesses tempos em que o valor da vida despencou num precipício que parece não ter fundo é até estranha a ausência de vítimas fatais.