2011 fevereiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para fevereiro, 2011

Casos de Febre Maculosa Brasileira em Campinas

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A febre maculosa brasileira é uma doença febril aguda que, em suas formas mais graves pode levar ao óbito.  É causada pela bactéria Rickettsia rickettsii  e, geralmente, adquirida pela picada de carrapatos infectados por esse parasita. Não existe transmissão direta de uma pessoa a outra: os carrapatos adquirem o parasita de animais como o cão, quando infectado, e o transfere aos seres humanos ao picá-los.

Os sintomas da febre maculosa são variáveis. Após um início abrupto com febre, mal estar, vômitos, dor de cabeça e outros sintomas inespecíficos, surgem machas róseas (máculas)  na pele, principalmente nas palmas das mãos e plantas dos pés. Nos casos mais graves a doença evolui com aparecimento de tosse, inchaço dos membros inferiores, aumento dos tamanhos do fígado e do baço e sangramentos. Caso os doentes não sejam tratados precocemente o quadro se agrava com risco de morte.

Dada a forma de transmissão através carrapatos, casos de febre maculosa são mais comuns em áreas rurais e urbanas onde é possível o contato com esses animais. Caso recente e bastante incomum aconteceu na cidade de Campinas , no conhecido Lago do Café, junto ao Parque do Taquaral.  Entre 2001 e 2010 três funcionários do parque morreram de febre maculosa; um quarto funcionário adquiriu a doença, mas sobreviveu.

No Lago do Café atualmente vivem 20 capivaras que estão para ser sacrificadas com autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio  Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis)  e concordância da Sucen (Superintendência do Controle de Epidemias do Estado de São Paulo).  A razão é que cada capivara carrega um grande número de carrapatos, servindo como fonte de infecção a seres humanos. Segundo informações da Vigilância Epidemiológica de Campinas, dez pessoas adquiriram febre maculosa na cidade durante o ano de 2010.

Em 2010 o Ministério da Saúde distribuiu a 8ª edição revista do Guia de Bolso intitulado “Doenças infecciosas e Parasitárias”. Trata-se de um manual prático de grande utilidade para os profissionais da área de saúde. Curiosamente, no que diz respeito à febre maculosa o manual afirma:

“Acredita-se que a capivara (Hydrochaeris hydrochaeris), também pode estar envolvida neste ciclo, mas não existem estudos que comprovem ser esse roedor um reservatório silvestre de Rickettsias”.

Os casos de febre maculosa ocorridos em Campinas, com destaque para a participação das capivaras enquanto reservatórios naturais, sugerem alteração no texto do Guia de Bolso do Ministério da Saúde.

Domingo de Oscar

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Não assisti a todos os filmes que concorrem ao Oscar, mas aposto as minhas fichas no rei gago de “O Discurso do Rei”. Outro dia li uma crítica desfavorável a esse filme. Reclamava o crítico de um jornal do mau uso do contexto histórico em que se apoia “O Discurso do Rei”. A meu ver é justamente aí que entra a tal liberdade de criação, espécie de licença poética quando personagens reais são tomados em contextos mesclados de realidade e ficção. Deve ser óbvio que o rei George do filme não é exatamente igual ao Rei George que ocupou o trono da Inglaterra ao Tempo da Segunda Guerra Mundial.  Em todo caso o que resta é esperar pela premiação e ver no que tudo vai dar.

O grande assunto desse domingo é, como não poderia deixar de ser, a Líbia. Creio que todo mundo torce contra Gaddafi e pela liberdade de um povo que há cerca de quarenta anos aguenta ditador tão imprevisível e capaz de muitas loucuras. Entretanto, não deixa de causar algum asco essa revolta de governos estrangeiros que se juntam aos protestos do povo líbio, pedindo a cabeça de Gaddafi. Basta olhar nos jornais as muitas fotos de Gaddafi ao lado de vários líderes mundiais que mantinham com ele relações muito próximas. Ninguém estava a fim de brigar com um camarada sentado sobre uma enorme produção de petróleo, daí que o aturavam bem, aliás, muito bem. Tanto que Gaddafi e seus filhos têm capitais aplicados pelo mundo, sendo proprietários de parte da FIAT e do time da Juventus, da Itália.

Até agora ninguém havia proposto sanções econômicas contra a Líbia e tudo o mais que pudesse contribuir para a renúncia ou queda de Gaddafi do poder. Em outras palavras, os países acomodaram-se com o modo de operar do governo líbio e, salvo críticas pontuais de gente de imprensa, não se viu muita preocupação com o povo líbio. Entretanto, bastou que esse povo subjugado se erguesse e sofresse repressões sangrentas para que uma corrente democrática se estabelecesse em todo o mundo. Tudo bem que as coisas são assim mesmo, talvez não exista outro modo de ser quando o que conta são os grandes interesses comerciais envolvendo o preço do barril de petróleo. Mas, que é chocante lá isso é.

Em todo caso, que Gaddafi saia do governo e já. Que seja aposentado o tal “Livro Verde” que Gaddafi escreveu a guisa de orientação para o povo da Líbia. O que tem preocupado analistas políticos em todo o mundo é o que virá depois de Gaddafi. É preciso lembrar que a Líbia não tem Constituição e instituições como Parlamento. De tal modo Gaddafi cercou-se de seu jeito único e exclusivo de governar e comandar que, depois dele, espera-se um grande vazio com consequências imprevisíveis.

De todo modo, continuamos assistindo a uma revolução geral no mundo árabe que ninguém previu. É salutar que governos autoritários que não respeitam as liberdades individuais deixem de existir, mas há que se torcer por transições que não sejam dolorosas.

 Como dizia meu pai, o mundo gira, às vezes tanto que deixa as coisas de cabeça para baixo.

São Paulo, velha e nova cidade

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Não o calor estúpido que incomoda, mas o “quente” amansado por discreta brisa de ar mais frio. Calor de pernas quebradas esse de São Paulo, cidade grande que mais parece à deriva com suas gentes de ontem e de hoje, misturadas entre passado e presente, confundindo tudo.

Da janela a verticalização grosseira de prédios desbotados, simulando um quadro impressionista. Do passado as gentes que andaram por aí, noutra cidade que é essa mesma, modificada, mas demasiadamente a mesma. Não foi na esquina da Rua Barão de Itapetininga, junto à Praça da República, que forma mortos os quatro estudantes que deram origem ao MMDC? Meu tio, cujo sangue fervia ao falar da Revolução de 32, exaltava-se repetindo o nome dos heróis: Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo.

- Morreram por São Paulo, contra os interventores do Getúlio Vargas, pela autonomia do Estado – dizia o meu tio.

A esquina da Barão de Itapetininga continua lá, hoje despida das glórias passadas, compondo com as outras ruas um cenário desgastado, invadido por toda sorte de filisteus que se assenhoraram do espaços público. Quanto ao meu tio, também ele é desaparecido, vitimado por um enfarte dentro de um dos trens do metrô. Dias antes me dissera que não era essa a São Paulo que ele conhecera daí nada mais ter a fazer na cidade. Os prédios devem ter ouvido o que ele disse e não o perdoaram, matando-o no interior de um trem de ferro subterrâneo.

Mas, São Paulo continua em pé, tal como esteve antes e estará depois de nós. Mudou muito é verdade, mas ainda é São Paulo. Hoje aterroriza-nos porque o gigantismo dá a ela ares de incontrolável. Aqui tudo pode ser, numa velocidade impressionante, sem que tenhamos tempo para digerir a voragem dos acontecimentos.

Que diriam os homens de ontem caso pudessem visitar a cidade que conhecemos? De todo modo teriam dificuldades para entender toda essa lógica que, no entanto, é ilógica. Disso tenho provas. No início dos anos 80 veio visitar-me um amigo, antigo morador de São Paulo, na ocasião vivendo em cidade do interior. Ele não vinha a São Paulo há cerca de 20 anos, daí que me pediu que o levasse para dar uma olhada na cidade.

Saímos no meu carro e uma das primeiras coisas que fiz foi levá-lo ao centro. Quando passamos pelo hoje famigerado Minhocão, ele perguntou pela Avenida São João e mortificou-se ao imaginar pessoas morando nos prédios junto ao elevado. Na altura da Praça Marechal Deodoro o meu amigo disse:

- Eu morei aqui, perto da Praça. Está muito deteriorado lá embaixo?

Durante todo o trajeto, pelo centro e em alguns bairros próximos, o meu amigo deixou clara a sua estranheza por coisas que viu, tão diferentes. E dizer que haviam se passado apenas 20 anos…

São Paulo é poderosa, imprevisível, gigantesca, apta a metamorfoses. Pode-se dizer que desdenha, pelo menos um pouco, de nós os seus habitantes que a amamos tanto. É que a cidade sabe que somos temporários, outros virão depois de nós e estarão condenados a se apaixonar por ela.

São Paulo é assim.

Livros volumosos e pesados

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Não tenho certeza absoluta, mas creio que foi o Oswald de Andrade quem disse abominar livros com muitas páginas por que seriam obras de quem não tem mais o que fazer. A referência provavelmente era dirigida à gigantesca obra de Balzac que talvez não tivesse mesmo muitas outras obrigações que não a de escrevê-la. Consta que o grande escritor francês escrevia em sua cama e seus personagens se tornaram parte da família, como se fossem seres reais. Nas refeições em casa era comum um parente perguntar sobre a situação de tal e tal personagem dado que, como se sabe, na “Comédia Humana” as mesmas personagens aparecem em vários livros, tomando Balzac o cuidado de respeitar a idade delas e alterar para mais ou para menos a participação de cada uma em obras diferentes.

Sobre Oswald de Andrade também corre que recebeu, das mãos de João Guimarães Rosa, os originais de “Grande Sertão Veredas”. Oswald devolveu-os ao escritor na manhã seguinte, considerando-se verdadeiro prodígio que tenha lido tudo no espaço de uma noite, se é que isso realmente aconteceu.

Hoje em dia - não sei dizer e mais ou menos que antes – alunos de primeiro e segundo graus mostram, quase sem exceção, horror à leitura. Com tanta coisa para fazer somadas aos atrativos de filmes, games, comunidades sociais e tudo o mais, sentar-se a um canto para meter-se com as páginas de um livro parece ser um sacrifício e tanto. Pior, ainda, quando obrigados a ler obras que têm muitas páginas, os tais livros volumosos e pesados, tão assustadores.

Tem-se falado bastante sobre o fim do livro em papel e eu me pergunto, caso isso aconteça, se não será vencida a barreira da má impressão que causam os volumes grandes sobre leitores de ocasião.  Sendo tudo eletrônico e passando diretamente do e-book para os olhos, talvez uma nova forma de comunicação se estabeleça entre a geração que não gosta de ler e o texto dos livros. Seria algo como colocar um comprimido dentro de um pedaço de pão, para facilitar a deglutição.

Desde já deixo clara a minha talvez injustificável aversão a ler livros inteiros em qualquer tipo de mídia eletrônica. Cresci entre livros impressos em papel e pretendo morrer em meio a eles. Não sou contra e-books e desejo a quem se adaptar a eles o melhor dos proveitos. No meu caso trata-se de uma questão de tato, do mistério da página virada com o auxílio das mãos, talvez certa sensação da presença física do escritor aprisionado dentro das capas. A meu ver nada disso é possível quando se trata de mídias eletrônicas.

Mas, o fato é que na vida corrida que se leva hoje em dia os livros volumosos tornam-se mais difíceis de ler e digerir. Leio muita coisa, mas, tal como os alunos dos cursos básicos, dou preferência a obras menos volumosas cuja leitura se faz mais rapidamente. Por essa razão a minha leitura de dois livros que comecei não tem rendido lá grande coisa. Um deles chama-se “A Cultura do Romance”, coleção de ensaios organizada por Franco Moretti. Trata-se do primeiro volume de uma série de cinco, publicado pela COSACNAIF. O livro é de fato avantajado com as suas 1113 páginas as quais pretendo degustar devagarinho.

Outro livro que tenho em mãos, mas no qual avanço devagar, chama-se “As Benevolentes”, de autoria do escritor Jonathan Littell. Esse é um romance de quase 900 páginas, publicado pela ALFAGUARA. O enredo é interessantíssimo: um oficial nazista narra os acontecimentos ocorridos durante a Segunda Guerra. Trata-se do ponto de vista do carrasco, portanto. A premissa do oficial é a de que em épocas de guerra o cidadão perde dois direitos: o de viver e o de não matar:

“Ninguém pede a sua opinião. O homem no alto da vala comum, na maioria dos casos, não pediu para estar ali tanto quanto o homem deitado, morto ou moribundo, no fundo da mesma vala”.

Lógica perversa, mas que não deixa de ser interessante. Falarei mais sobre o livro quando terminar.

As revoluções

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No “Houaiss“ o vocábulo revolução, em sentido político, é definido como “movimento de revolta contra um poder estabelecido, feito por um número significativo de pessoas, em que geralmente se adotam métodos mais ou menos violentos; insurreição, rebelião, sublevação”.

No Brasil a turma dos descontentes costumava descaracterizar a “Revolução de 64”, também conhecida como “A Redentora”, taxando-a de “quartelada”. Movimento incruento, realizado por militares, não seria revolucionário. O poder foi tomado, o presidente João Goulart deixou o país e o resto todo mundo sabe. Quanto a número significativo de pessoas envolvidas e métodos violentos, não há notícia de que tenham sido expressivos naquele 31 de março de 64. A violência viria algum tempo depois, de ambos os lados, e o assunto ainda hoje dá pano para manga. Países vizinhos que viveram situações semelhantes encararam mais de frente o problema envolvendo torturas, desaparecimentos e terrorismo. Por aqui se pretendeu, com a anistia, sepultar memórias e condicionar uma paz de espírito impossível. O resultado é que o assunto continua vivo. Hoje mesmo lê-se nos jornais a notícia de que um procurador militar do Rio quer examinar papel de agentes das Forças Armadas no desaparecimento de quatro militantes ao tempo da ditadura. Para o procurador esses casos não estão prescritos e não aplica, em relação a eles, a Lei de Anistia de 1979.

Cada um terá as suas lembranças sobre o período da ditadura no Brasil. Para mim vários momentos ficaram gravados e talvez mais tarde eu me proponha a recordá-los. Por ora, basta um deles relacionado ao significado do termo revolução. Naquele 31 de março eu era um aluno de primeiro grau, estudando em colégio de cidade do interior de São Paulo.  Acontecido o Golpe de Estado que colocou fim ao governo democrático de Jango seguiu-se prontidão e movimentação de tropas em todo o Brasil. Na cidade em que eu estava existia – e ainda hoje – um quartel. Dele saíram soldados em direção ao Rio de Janeiro, viagem que não se completou devido ao mau estado dos veículos utilizados. De modo, que quando se entendeu irrevogável o Golpe Militar, voltaram os briosos soldados, até então estacionados na Via Dutra, ao quartel de origem.

Ora, naquela época os efeitos da Guerra Fria faziam-se sentir pesadamente no continente dada a liderança inconteste dos Estados Unidos. O receio do avanço do comunismo, a ânsia por desenvolvimento, progresso, paz política e redução da carestia contribuíram para que, num primeiro momento, o Golpe Militar fosse muito bem visto pela população. De modo que, quando os soldados voltaram, entraram na cidade triunfalmente, sendo recebidos com muito carinho e aclamados pelo povo. Voltavam como heróis e com tal carapaça desfilaram pelas ruas.

A isso assisti e testemunhei. Creio que o fato dá ideia das dificuldades de momento para a união de forças no sentido de executar uma verdadeira revolução.

Tudo isso me vem à memória no momento em que ditaduras do norte da África enfrentam movimentos de oposição. Enquanto no Egito o ditador Mubarak viu-se obrigado a renunciar, na Líbia o ditador Muammar Gaddafi declara que só deixará o governo se morto. A desordem toma conta de cidades líbias e a revolta é duramente reprimida pelo governo. Civis são bombardeados e estrangeiros encontram dificuldades para deixar o país.

Revoluções. Longas ditaduras do mundo árabe podem ruir pela força das revoluções.

Vem aí o carnaval

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Vem aí o carnaval com seus rituais de sempre. Na TV exibe-se uma coleção de corpos femininos seminus destinados a dar o tom da folia. Carnaval, sexo e álcool - para não se falar em drogas - são ingredientes ideais para toda sorte de arranjos. É de Ari Barroso a formidável frase que descreve o folião “se acabando num cordão”. “Folião de raça”, diz Ari na letra desse maravilhoso samba que se chama “Camisa Amarela”:

Encontrei o meu pedaço na avenida
De camisa amarela
Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela
Convidei-o a voltar pra casa
Em minha companhia
Exibiu-me um sorriso de ironia
Desapareceu no turbilhão da galeria

Não estava nada bom
O meu pedaço na verdade
Estava bem mamado
Bem chumbado, atravessado
Foi por aí cambaleando
Se acabando num cordão
Com o reco-reco na mão…

 

Impossível melhor descrição do sujeito que decreta a falência do mundo real por quatro dias e se entrega ao frenesi da festa de Momo. A coisa continua sendo assim mesmo nesta época em que nada parece natural. A alegria e descontração foram substituídas por desfiles de rua onde o que conta é a riqueza de aparatos e a organização. Incrível que na festa da desorganização e do acaso justamente a ordem conte pontos. Isso em relação a escolas de samba. Por fora delas corre o carnaval de clubes sempre em vias de extinção, embora resistindo bravamente e quase sempre envolvendo pancadarias.

Confesso que sempre gostei de carnaval, da folia simples e isenta desses estereótipos que a todo custo nos enfiam goela abaixo. Bom carnaval com sambas de impacto cujas letras falam diretamente à alma dos foliões. Carnaval de entrega de corpo, de paixão e aquela louca sensação de liberdade, passageira é verdade, mas que importa? O fato é que, sem qualquer espírito crítico, desde logo assumi que o carnaval está ligado à identidade nacional, ao nosso jeito de ser. Esse mito é combatido por muita gente, mas um tanto difícil de refutar. O folião decreta pelo espaço de quatro ou cinco dias a ausência total de compromissos. Sob o signo de carnaval deixam-se de lado o trabalho, a miséria e deveres. Vive-se uma liberdade utópica, em todo caso liberdade.

Da minha experiência com o carnaval muitas histórias podem ser contadas, algumas talvez inconfessáveis. No meio da confusão o imprevisto torna-se possível, não é assim? Pois creio que muita gente sisuda que anda por aí terá aprontado durante aqueles bailes perdidos na memória.

Se o assunto é carnaval, há do que se lembrar. Daquele meu amigo que bebeu todas no baile da terça-feira e passou mal: coitado, destripou-se todo na privada e perdeu os óculos que foram juntos na descarga. E sempre o caso do camarada que ficou enfeitiçado por uma mulher de beleza incomum e acabou tomando uns sopapos do cara grandão, por acaso o marido dela. Mas, o que vi de mais impressionante em matéria de carnaval foi um baile no Scala do Rio de Janeiro. Não me perguntem como fui parar lá, não serei capaz de explicar. Agora, cara, aquilo era de fato muito, mesmo para olhos mais experimentados.

Quem conhece o Scala sabe que o baile acontece em três salões ligados por escadas. Quando fui, no principal havia uma banda tocando a todo vapor, chamando foliões. Salão cheio, gente dançando, mas grande parte das pessoas nas mesas, bebericando e observando de longe o movimento dos cordões. Isso durava até o momento em que aparecia a turma da televisão para transmissões ao vivo. Então tudo se modificava: rostos cansados transfiguravam-se numa alegria súbita e incontida; pessoas, antes sentadas, ficavam em pé e dançavam, abraçando-se; e mulheres com decotes generosos e pernas de fora subiam nas mesas para pular enquanto o cameraman flagrava-as em seus melhores ângulos. Tudo isso durava até os flashes serem apagados. Então a equipe da TV partia e as pessoas retornavam às posições originais com o mesmíssimo desânimo de antes.

Mas, a grande farra acontecia no salão inferior. Para chegar a ele descia-se pelas escadas, tomando-se o cuidado de desviar de vários casais atracados, exageradamente atracados diga-se a verdade. Mas, valia a pena descer para presenciar um quadro digno das boas festas romanas ao tempo dos césares. Ali a permissividade corria mais solta, em alguns casos exageradamente. Talvez tenha sido essa a primeira vez que vi turistas americanos vestindo a carapuça de “turistas americanos”. Usando roupas extravagantes e esgotando garrafas de uísque, divertiam-se eles com mulatas muito sensuais e seminuas. Quanto ao carnaval, mas que carnaval? Carnaval de gringo é diferente, acreditem.

Creio que as boas histórias sobre carnaval nem sempre podem ser contadas. Daí que se escreve um texto meia bomba, dizendo por alto aquilo que na verdade nem é preciso dizer. Como essa coisa do baile do Scala que não foi feito para iniciantes. Quem não concorda que tente ver com os meus olhos aqueles americanos, uns loirões muito bêbados, cheios de uísque, atacando as mulatas. Cena de filme, inesquecível.

Vida de coveiro

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O coveiro é personagem ao qual nem sempre se dá o devido valor. No mundo da ficção coveiros são frequentemente ligados a algum tipo de malefício envolvendo os desencarnados. Histórias de terror transformam coveiros em personagens lúgubres. Na prática o mundo precisa de coveiros, mas, convenhamos, a profissão não é bem vista. Que eu saiba inexistem cursos preparatórios para coveiros e muita gente acaba trabalhando em cemitérios por falta de outras opções.

De uma coisa podem estar certos: coveiro é um cara que não tem medo de alma do outro mundo. Quantas vezes a noite desce e lá está o coveiro, sozinho, em meio aos túmulos, envolvido pelo grande silêncio da morte. Daí que a profissão tem as suas exigências, entre elas certo sangue frio em relação a corpos, caixões e túmulos.

Tenho um amigo que praticou os ofícios de sacristão e coveiro durante quase toda a sua vida. Trabalhou o meu amigo num cemitério de cidade pequena e era ele quem, à falta de planta do cemitérios, identificava a familiares desesperados o túmulo ou a cova onde estavam os restos mortais de pessoas queridas. Ele explicava que com o avanço da atividade dos saqueadores de túmulos muitos ficavam sem lápides, dificultando a localização, daí a importância de manter na memória um quadro geral do campo santo.

Há algum tempo estive no interior e, por acaso, encontrei o coveiro. Muitos anos haviam se passado desde a última vez em que nos vimos e me surpreendi ao saber que ele ainda trabalhava no cemitério. Surpresa, aliás, justificada porque o homenzinho à minha frente envelhecera muito e andava com alguma dificuldade. Talvez por vê-lo assim me animei a perguntar sobre a aposentadoria dele. Afinal, quando deixaria de ser coveiro, profissão que exige esforço inadequado para um homem já velho?
Ainda agora me recordo da conversa que tivemos e da curiosa explicação do coveiro para manter-se em seu trabalho. Explicou-me ele que há muito tempo procurava por alguém que o substituísse. Entretanto, ninguém queria substituí-lo:

- Alguns pelo desconforto do contato com a morte, outros por puro medo; outros, ainda, desestimulados pelo baixo salário.

- Desse jeito você nunca vai se aposentar – eu disse.

- Pois é. De todo modo não aceito me afastar sem que alguém me substitua. O cemitério não pode ficar sem coveiro. Imagine que eu mesmo venha a morrer: quem fará a minha cova? Não acho justo que eu tenha passado a minha vida enterrando os outros e não tenha quem me enterre.

- Sempre se encontra alguém…

- Não, não, eu preciso ter certeza, enquanto não tiver não me aposentarei.

Era isso. Uma mão lava a outra, não é o que se diz? Para aquele pobre homem a vida perderia o sentido caso a tocha não fosse passada a outra pessoa. Ele mesmo se tornara coveiro, ainda jovem, quando o velho coveiro se aposentara:

- Enterrei o coveiro que me precedeu e o meu sucessor me enterrará. É assim que deve ser.

Lembrei-me dessa conversa ao ler hoje que a cidade de Orindiúva, interior de São Paulo, mantém o cemitério fechado por falta de coveiro. O que acontece aos que morrem? À falta do profissional especializado, os familiares do morto são obrigados a preparar a cova. Isso mesmo: quem não tem dinheiro para contratar pedreiros toma emprestada a chave do cemitério e pega na enxada para abrir a cova. Famílias enterram parentes com as próprias mãos. Várias pessoas entrevistadas mostram-se indignadas com isso.

Quanto ao meu amigo coveiro ele está vivo, aliás, bem vivo. Recentemente eu soube que a prefeitura arranjou um rapaz para substituí-lo. A partir de agora ele poderá se aposentar. E morrer, também, porque o jovem coveiro se encarregará de enterrá-lo, dando continuidade à tradição de que coveiro enterra coveiro.

De Clinton a Berlusconi

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Todo mundo se lembra do forrobodó envolvendo o affaire do então presidente dos EUA, Bill Clinton, e a estagiária da Casa Branca, Monica Lewinski. Os descendentes dos puritanos do May Flower não perdoaram Clinton e saíram a campo exigindo o impeachment do presidente que, mesmo sob juramento, negara o fato. Quando a Lewinski conseguiu a notoriedade que desejava enquanto a hoje Secretária de Estado, Hillary Clinton, arranjou forças não se sabe onde para passar por aquela vergonheira toda.

Algo que na época se disse, alto e bom tom, foi que caso semelhante ao de Clinton, se acontecesse no Brasil, seria motivo de muita piada e mais nada. Lembrem-se do presidente Carlos Menen da Argentina tantas vezes citado como galanteador inveterado. Demais, parece que ao espírito latino certa permissividade dos homens mais acrescenta que subtrai. Embora a época do “homem é assim mesmo” tenha deixado resquícios, certo é que as mulheres deram um jeito de colocar as coisas em seus devidos lugares, rejeitando os excessos do machismo. Isso em teoria é verdade, porque, infelizmente perduram maus tratos a mulheres por parte de machões sem escrúpulos. As delegacias da mulher estão lotadas de casos escabrosos nos quais à quase sempre presente submissão econômica de esposas somam-se espancamentos, quando não ameaças de morte.

Para ser franco ao homem latino a figura do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi aparece como a de um riquíssimo boa vida que se diverte à larga. Parece ser a ele inata um tipo de safadeza tão a gosto da macheza geral; ainda bem que ele tem condições de fazer o que muita gente gostaria, mas, simplesmente, não podem. De modo que Berlusconi surge como uma espécie de sujeito livre, acima das regras, cujo poder permite a ele ser como deseja e ponto final. No mais, sua simpática figura simula rir de tudo e de todos, talvez da época transtornada em que vive na qual as pessoas estão presas a obrigações e necessidades. Para que se tenha ideia disso basta lembrar que, após o escândalo que resultou na separação dele de sua mulher, perguntado em entrevista sobre o seu futuro amoroso, respondeu:

- Tem uma fila de mulheres que querem se casar comigo. Primeiro, porque sou simpático. Depois, porque tenho dinheiro e elas pensam “ele é velho, morre e eu fico com tudo”.

Esse é Berlusconi que, na mesma entrevista, aconselhou as jovens italianas a procurarem maridos ricos.

Até aí tudo bem, muito divertido etecetera e tal. Entretanto, a presença de mulheres italianas protestando e exigindo a saída de Berlusconi do poder impressiona muito mal. O fato é que a relação amorosa entre Berlusconi e uma menor de idade transformou-se num escândalo de proporções maiores. O primeiro-ministro será julgado por um Tribunal de Milão composto por três mulheres o que não parece ser bom sinal para ele. É acusado de ter promovido dezenas de orgias com prostitutas menores de idade. Ruby, uma delas, tem-se destacado: ela foi à televisão para dizer não manteve relações com Berlusconi. Entretanto, o Ministério Público afirma ter provas contundentes que incriminam o primeiro-ministro.

Dessa vez Silvio Berlusconi parece ter entrado numa bola dividida daquelas que estão mais para os adversários. De todo modo o atual escândalo está sendo apontado como uma vergonha para a Itália.

Pedofilia associada a um grande protesto de mulheres em praça pública: nada disso parece engraçado ou pitoresco em nenhum lugar do mundo. A ver como se comportará a justiça italiana e o destino de Silvio Berlusconi.

George Shearing

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Parem tudo porque George Shearing morreu. O grande pianista sai de cena aos 91 anos de idade, após uma longa e brilhante carreira.

Embora seja desde menino um grande fã do jazz, confesso que demorei a ouvir a música de Shearing. Não sei precisar o ano, mas Shearing veio ao Brasil e apresentou-se no Teatro Municipal de São Paulo no período compreendido entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. O pequeno público que compareceu ao Municipal naquela noite rapidamente descobriu-se um grupo de eleitos para presenciar os acordes de um memorável pianista. Foi a partir daí que me interessei pela música de George Shearing, realmente um grande virtuose do piano.

Eu ainda teria a oportunidade de assistir a um show de Shearing no Village Vanguard, em Nova York. Daquela noite retive a simplicidade não só de Shearing, mas de outros músicos de jazz. Apresentando-se em um clube de jazz, sem a magnitude dos grandes palcos que conferem ao show o status de concerto, mostram-se eles mais à vontade, circulando entre o público com a maior naturalidade. A certa altura sentei-me para um drink no barzinho e eis que, ao meu lado, numa banqueta, estava George Shearing em pessoa. Como sempre, usava o seu discretíssimo terno e o inevitável óculos escuros – era cego de nascença.

Shearing era inglês e foi um dos expoentes do bebop. No grande livro que é “On The Road”, obra prima do escritor Jack Kerouac, há a descrição de uma fantástica noite de jazz num clube de uma cidade da costa oeste dos Estados Unidos. Kerouac descreve a apresentação de Shearing como impressionante e termina dizendo: Shearing é o bebop.

George Shearing foi influenciado por grandes pianistas como Teddy Wilson, Fats Waller, Errol Garner e Earl Hines. Durante a sua carreira compôs mais de 300 músicas, entre as quais a famosa “Lullaby of Birdland”. Em 2006 recebeu da rainha Elizabeth 2ª o título de cavaleiro por sua contribuição com a música.

Shearing deixa-nos discografia gravada junto com músicos de renome com os quais atuou. Para mim será sempre eterno um cair de tarde em que, na mais completa solidão, ouvi um dos discos de Shearing. Estava eu numa casa de montanha que, de um momento para outro, foi envolvida por uma nuvem de neblina. Ficamos, assim, eu e o piano de Shearing, momentaneamente apartados do mundo, dando-me a sensação de plenitude que só logramos alcançar em raros momentos da vida.

O real e o imaginário

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Minha avó era filha de italianos, vindos para o Brasil na segunda metade do século XIX. Atendiam os imigrantes a um projeto do Imperador D. Pedro II qual seja o de reproduzir, na Serra da Mantiqueira, culturas de frutas europeias então inexistentes no Brasil. Nos altos da Mantiqueira encontraria a gente italiana clima adequado para o plantio. Foi desse modo que várias famílias de origem italiana chegaram ao país e seus sobrenomes perpetuaram-se nas gerações seguintes, alguns deles bastante conhecidos. A quem interessar o assunto imigração italiana recomenda-se o livro “Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil” de autoria de Angelo Trento, publicação da Editora Nobel.

Minha avó casou-se muito cedo e logo engravidou de modo que meu pai estaria mais para irmão dela que filho. Aconteceu a ela enviuvar e não tornou a se casar. Eu a conheci quando ela já passava dos sessenta anos de idade. Mais tarde acompanhei de perto a evolução do câncer de mama que a mataria. Então estávamos no último quartel dos anos sessenta e a medicina não dispunha dos meios de tratamento hoje conhecidos e utilizados. A mastectomia, seguida de aplicações de radioterapia, proporcionaria à minha avó um sofrimento terrível. Desse tratamento resultou grande queimadura na região do tórax que, devido à destruição de tecidos, jamais cicatrizou, provocando dores lancinantes que perduraram até o óbito dela.

De minha avó algumas coisas ficaram como traços de seu modo de ser. Tinha ela sempre a casa cheia de parentes que apareciam, pontualmente, nos horários das refeições ou à noite para jogar tômbola. Às vezes penso naquelas pessoas sentadas em torno de uma grande mesa retangular, jogando até tarde da noite. Todas elas mortas. Também desapareceu o antigo casarão onde a minha avó morou a maior parte de sua vida, vencido que foi pela especulação imobiliária.  Outro traço interessante refere-se ao fato de que minha avó raramente saia de casa, só o fazendo bem cedo, aos domingos, para ir à missa.

Hoje cedo assistia a um noticiário de televisão quando me lembrei da minha avó. Tinha ela, por hábito, ler, diariamente, o jornal “Última Hora” cujo proprietário era o Samuel Wainer. Não é o caso de me estender sobre a origem daquele jornal getulista e o papel que desempenhou no tempo em que foi publicado. Em todo caso o “Última Hora” notabilizou-se pelo sensacionalismo, sendo que dele se dizia que, caso fosse espremido, escorreria sangue. Aliás, esse comentário não se fazia sem justificativa: o jornal esmerava-se em publicar toda sorte de acontecimentos envolvendo crimes, alguns deles realmente hediondos.

O problema é que ao ler diariamente o “Última Hora” a minha avó acabava tendo uma visão distorcida da realidade que a cercava, compondo-se para ela um imaginário de grandes perigos. Morando em pacata cidade do interior, na época muito segura e com baixíssimo índice de criminalidade, a minha avó preocupava-se com os parentes prevenindo-os contra os perigos de um mundo no qual tantos crimes aconteciam.

Eu fazia a barba hoje de manhã enquanto um bem apessoado apresentador de um dos noticiários passava da notícia de um crime a outra, praticamente sem interrupção: um posto invadido por marginais que espancaram os funcionários, uma linda jovem que desapareceu para, depois, seu corpo ser encontrado num matagal com sinais de estrupo; e assim por diante.

Foi nesse momento que saltei do trágico e violentíssimo mundo real que nos cerca para o dos tempos em que a minha avó viveu. Naqueles idos nem tudo era bondade, o crime existia, mas andava-se por aí sem medo de uma bala perdida ou uma agressão puramente gratuita. Pessoas eram assassinadas, grandes crimes aconteciam, mas a criminalidade não era suficiente para nos fazer descrer da existência do bem.

Os que vieram antes de nós foram mais felizes? Não creio que exista resposta para essa pergunta, ainda que levemos em consideração apenas os períodos sem guerras. Entretanto, posso dizer que o mundo parecia mais leve e a sensação de segurança era um dos mais ricos e fecundos patrimônios que possuíamos, tantas vezes enganosa é verdade, mas presente.

Tenho a impressão de que a minha avó não gostaria do mundo em que vivemos atualmente, real demais mesmo quando comparado aos perigos imaginários sobre os quais ela nos advertia.