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São Paulo, velha e nova cidade

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Não o calor estúpido que incomoda, mas o “quente” amansado por discreta brisa de ar mais frio. Calor de pernas quebradas esse de São Paulo, cidade grande que mais parece à deriva com suas gentes de ontem e de hoje, misturadas entre passado e presente, confundindo tudo.

Da janela a verticalização grosseira de prédios desbotados, simulando um quadro impressionista. Do passado as gentes que andaram por aí, noutra cidade que é essa mesma, modificada, mas demasiadamente a mesma. Não foi na esquina da Rua Barão de Itapetininga, junto à Praça da República, que forma mortos os quatro estudantes que deram origem ao MMDC? Meu tio, cujo sangue fervia ao falar da Revolução de 32, exaltava-se repetindo o nome dos heróis: Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo.

- Morreram por São Paulo, contra os interventores do Getúlio Vargas, pela autonomia do Estado – dizia o meu tio.

A esquina da Barão de Itapetininga continua lá, hoje despida das glórias passadas, compondo com as outras ruas um cenário desgastado, invadido por toda sorte de filisteus que se assenhoraram do espaços público. Quanto ao meu tio, também ele é desaparecido, vitimado por um enfarte dentro de um dos trens do metrô. Dias antes me dissera que não era essa a São Paulo que ele conhecera daí nada mais ter a fazer na cidade. Os prédios devem ter ouvido o que ele disse e não o perdoaram, matando-o no interior de um trem de ferro subterrâneo.

Mas, São Paulo continua em pé, tal como esteve antes e estará depois de nós. Mudou muito é verdade, mas ainda é São Paulo. Hoje aterroriza-nos porque o gigantismo dá a ela ares de incontrolável. Aqui tudo pode ser, numa velocidade impressionante, sem que tenhamos tempo para digerir a voragem dos acontecimentos.

Que diriam os homens de ontem caso pudessem visitar a cidade que conhecemos? De todo modo teriam dificuldades para entender toda essa lógica que, no entanto, é ilógica. Disso tenho provas. No início dos anos 80 veio visitar-me um amigo, antigo morador de São Paulo, na ocasião vivendo em cidade do interior. Ele não vinha a São Paulo há cerca de 20 anos, daí que me pediu que o levasse para dar uma olhada na cidade.

Saímos no meu carro e uma das primeiras coisas que fiz foi levá-lo ao centro. Quando passamos pelo hoje famigerado Minhocão, ele perguntou pela Avenida São João e mortificou-se ao imaginar pessoas morando nos prédios junto ao elevado. Na altura da Praça Marechal Deodoro o meu amigo disse:

- Eu morei aqui, perto da Praça. Está muito deteriorado lá embaixo?

Durante todo o trajeto, pelo centro e em alguns bairros próximos, o meu amigo deixou clara a sua estranheza por coisas que viu, tão diferentes. E dizer que haviam se passado apenas 20 anos…

São Paulo é poderosa, imprevisível, gigantesca, apta a metamorfoses. Pode-se dizer que desdenha, pelo menos um pouco, de nós os seus habitantes que a amamos tanto. É que a cidade sabe que somos temporários, outros virão depois de nós e estarão condenados a se apaixonar por ela.

São Paulo é assim.

O barbeiro português

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Hoje é domingo e deu-me na telha contar a história - ou a desdita – de um barbeiro/cabeleireiro português.  

Quando o conheci São Paulo era São Paulo. Ou melhor: o centro era o centro, os homens usavam ternos e as mulheres tailleurs. Havia a Exposição na Praça do Patriarca e a Rua São Bento era chique com suas lojas elegantes. Mais para baixo, atravessando o Viaduto do Chá em direção à Barão de Itapetininga, ficavam o Mappin e as galerias, hoje tão depreciadas. Ah, a rua Barão, a Sete de Abril, o Largo do Paissandu, velha, velhíssima São Paulo.

O barbeiro era filho de portugueses, gente do interior de Portugal que atravessara os mares para tentar a sorte no Novo Mundo. Ele nasceu no Rio de Janeiro e foi batizado com o nome de português, Manuel, Joaquim ou outro nome que você quiser dar a ele – aliás, desde já considere-se convidado para apadrinhá-lo.

Os pais do futuro barbeiro retornaram a Portugal e com eles o filho pequeno que viveu no país além mar até os 17 anos de idade, ocasião em que decidiu vir para o Brasil. Consta que morou nas redondezas do Largo do Machado e trabalhou num salão ao lado do palácio do Catete. Ainda moço foi chamado em palácio para fazer o cabelo do então presidente Juscelino Kubistcheck que tornou-se seu cliente até mudar-se, com todo o governo, para Brasília.

Um dia o barbeiro português veio passar um fim-de-semana em São Paulo. Quis a sorte que nessa ocasião conhecesse a portuguesa que seria sua mulher e com a qual teria filhos.

Radicando-se em São Paulo o barbeiro participou de alguns negócios, embora continuasse sempre em sua profissão. Não chegou a fazer fortuna, mas amealhou bens com a participação da mulher cujo espírito empreendedor sempre destacou.

Envelheceram assim até que a prolongada doença da mulher os separou. Viúvo, filhos criados, entendeu o barbeiro acertar as coisas passando em cartório suas posses aos filhos. Houve quem o aconselhasse a pensar melhor, esperar um pouco, mas era a sua intenção e assim foi feito.

Tristeza e solidão na cidade grande encaminham qualquer um para encontros fortuitos que podem se prolongar em relações duradouras. Aconteceu ao barbeiro, cerca de um ano após a morte da esposa, conhecer uma mulher, pouco mais nova que ele. A relação entre os dois despertou a ira dos filhos que, como é comum nesses casos, passaram a acusá-lo de tê-la como amante mesmo antes da morte da mãe.

Aborrecido, o barbeiro largou tudo e foi morar no interior. A namorada não vive com ele, vez ou outra se encontram. Está ele agora, mais de 70 anos e idade, começando de novo o seu negócio num pequeno salão onde se cortam cabelos a preços populares. Quanto aos filhos, não procuram pelo pai.

O barbeiro português me odiaria se soubesse que escrevi sobre ele. Para a minha felicidade ele não usa computadores, não lê blogs e assim por diante. Escrevi como aquelas pessoas que enviam correntes, esperando que a sorte as faça cair na caixa postal de pessoas interessadas. Quem sabe, por um capricho do destino, um dos filhos do barbeiro acabe lendo esse texto. Se isso vier a acontecer informo que o seu pai está muito sozinho e sofre pela ausência dos filhos. No dia dos pais ele esperou em vão por vocês, por qualquer sinal de reconhecimento a ele. Mais: ele jura que não tinha amante antes do falecimento da mãe de vocês coisa não tão difícil de verificar.

Que me perdoem, ou não, pela intromissão.

São Paulo na berlinda

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Conheci no passado certo Afonso, hoje defunto devidamente cremado, que professava curiosas opiniões sobre vários assuntos. Era um prazer ouvi-lo, a ele que vivia sozinho após ser deixado pela mulher, descontando nos grandes goles alcoólicos a sua desgraça. Que apaixonado foi, até a morte, pela mulher. Mais que isso e para usar a linguagem bíblica, nunca mais conheceu nenhum corpo feminino de vez que se dizia homem de uma mulher só.

Uma das curiosas posições do Afonso dizia respeito à condição de existência no inferno. Certa vez, em meio a um dos nossos papos “altamente filosóficos” perguntei a ele se toparia viver no inferno. A resposta foi a seguinte:

- Se for para ser amigo do chefe, claro que sim.  Olhe, pode-se viver muito bem em qualquer lugar se a nossa posição for de apaniguados de quem manda.  Camarilhas sempre se deram bem, veja as cúpulas comunistas que vivem do bom do melhor. Teoria é uma coisa, a prática outra. Aí está toda a ciência da busca de altas posições nas hierarquias e explica-se porque governantes titubeiam em deixar cargos que temporariamente exercem. Pouca coisa sob a luz que nos ilumina tem o poder de coerção das mordomias, das facilidades, do desprezo pelos grandes esforços. Viveria, sim, no inferno, caro amigo, mas sob certas condições e tratados assinados como o manda-chuva de lá.

Agora leio nos jornais que estudo do governo paulista mostrou que São Paulo é uma das piores cidades do Estado em qualidade de vida para idosos.

Apelo para a memória do Afonso, grande filósofo ignorado em seu tempo, para me distrair e continuar acreditando que os idosos podem viver bem em São Paulo. Não dá para negar que fatores como a saúde, a proteção social, a mortalidade precoce, o acesso à renda, a participação em atividades culturais e esportivas sejam, em São Paulo, inferiores aos encontrados em outras cidades do Estado. Temos, ainda, que concordar com o fato de que a grande cidade é, segundo afirmação de um geriatra, ambiente hostil a idosos com qualquer tipo de limitação.

Mas… São Paulo é uma cidade imensa, cheia de contradições, megalópole onde tudo é grande, inclusive seus problemas. É pelo amor à cidade que escrevo essas mal traçadas nas quais apelo para a filosofia do defunto Afonso consubstanciada na idéia de que se pode viver bem até no inferno.  

São Paulo não é nenhum inferno, longe disso, vamos melhorar, quem sabe humanizar mais a cidade, atender a todas as camadas populacionais.

Opinião de otimista.

Escrito por Ayrton Marcondes

29 maio, 2009 às 1:05 pm

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