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Vida de coveiro

com um comentário

O coveiro é personagem ao qual nem sempre se dá o devido valor. No mundo da ficção coveiros são frequentemente ligados a algum tipo de malefício envolvendo os desencarnados. Histórias de terror transformam coveiros em personagens lúgubres. Na prática o mundo precisa de coveiros, mas, convenhamos, a profissão não é bem vista. Que eu saiba inexistem cursos preparatórios para coveiros e muita gente acaba trabalhando em cemitérios por falta de outras opções.

De uma coisa podem estar certos: coveiro é um cara que não tem medo de alma do outro mundo. Quantas vezes a noite desce e lá está o coveiro, sozinho, em meio aos túmulos, envolvido pelo grande silêncio da morte. Daí que a profissão tem as suas exigências, entre elas certo sangue frio em relação a corpos, caixões e túmulos.

Tenho um amigo que praticou os ofícios de sacristão e coveiro durante quase toda a sua vida. Trabalhou o meu amigo num cemitério de cidade pequena e era ele quem, à falta de planta do cemitérios, identificava a familiares desesperados o túmulo ou a cova onde estavam os restos mortais de pessoas queridas. Ele explicava que com o avanço da atividade dos saqueadores de túmulos muitos ficavam sem lápides, dificultando a localização, daí a importância de manter na memória um quadro geral do campo santo.

Há algum tempo estive no interior e, por acaso, encontrei o coveiro. Muitos anos haviam se passado desde a última vez em que nos vimos e me surpreendi ao saber que ele ainda trabalhava no cemitério. Surpresa, aliás, justificada porque o homenzinho à minha frente envelhecera muito e andava com alguma dificuldade. Talvez por vê-lo assim me animei a perguntar sobre a aposentadoria dele. Afinal, quando deixaria de ser coveiro, profissão que exige esforço inadequado para um homem já velho?
Ainda agora me recordo da conversa que tivemos e da curiosa explicação do coveiro para manter-se em seu trabalho. Explicou-me ele que há muito tempo procurava por alguém que o substituísse. Entretanto, ninguém queria substituí-lo:

- Alguns pelo desconforto do contato com a morte, outros por puro medo; outros, ainda, desestimulados pelo baixo salário.

- Desse jeito você nunca vai se aposentar – eu disse.

- Pois é. De todo modo não aceito me afastar sem que alguém me substitua. O cemitério não pode ficar sem coveiro. Imagine que eu mesmo venha a morrer: quem fará a minha cova? Não acho justo que eu tenha passado a minha vida enterrando os outros e não tenha quem me enterre.

- Sempre se encontra alguém…

- Não, não, eu preciso ter certeza, enquanto não tiver não me aposentarei.

Era isso. Uma mão lava a outra, não é o que se diz? Para aquele pobre homem a vida perderia o sentido caso a tocha não fosse passada a outra pessoa. Ele mesmo se tornara coveiro, ainda jovem, quando o velho coveiro se aposentara:

- Enterrei o coveiro que me precedeu e o meu sucessor me enterrará. É assim que deve ser.

Lembrei-me dessa conversa ao ler hoje que a cidade de Orindiúva, interior de São Paulo, mantém o cemitério fechado por falta de coveiro. O que acontece aos que morrem? À falta do profissional especializado, os familiares do morto são obrigados a preparar a cova. Isso mesmo: quem não tem dinheiro para contratar pedreiros toma emprestada a chave do cemitério e pega na enxada para abrir a cova. Famílias enterram parentes com as próprias mãos. Várias pessoas entrevistadas mostram-se indignadas com isso.

Quanto ao meu amigo coveiro ele está vivo, aliás, bem vivo. Recentemente eu soube que a prefeitura arranjou um rapaz para substituí-lo. A partir de agora ele poderá se aposentar. E morrer, também, porque o jovem coveiro se encarregará de enterrá-lo, dando continuidade à tradição de que coveiro enterra coveiro.