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Vem aí o carnaval

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Vem aí o carnaval com seus rituais de sempre. Na TV exibe-se uma coleção de corpos femininos seminus destinados a dar o tom da folia. Carnaval, sexo e álcool - para não se falar em drogas - são ingredientes ideais para toda sorte de arranjos. É de Ari Barroso a formidável frase que descreve o folião “se acabando num cordão”. “Folião de raça”, diz Ari na letra desse maravilhoso samba que se chama “Camisa Amarela”:

Encontrei o meu pedaço na avenida
De camisa amarela
Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela
Convidei-o a voltar pra casa
Em minha companhia
Exibiu-me um sorriso de ironia
Desapareceu no turbilhão da galeria

Não estava nada bom
O meu pedaço na verdade
Estava bem mamado
Bem chumbado, atravessado
Foi por aí cambaleando
Se acabando num cordão
Com o reco-reco na mão…

 

Impossível melhor descrição do sujeito que decreta a falência do mundo real por quatro dias e se entrega ao frenesi da festa de Momo. A coisa continua sendo assim mesmo nesta época em que nada parece natural. A alegria e descontração foram substituídas por desfiles de rua onde o que conta é a riqueza de aparatos e a organização. Incrível que na festa da desorganização e do acaso justamente a ordem conte pontos. Isso em relação a escolas de samba. Por fora delas corre o carnaval de clubes sempre em vias de extinção, embora resistindo bravamente e quase sempre envolvendo pancadarias.

Confesso que sempre gostei de carnaval, da folia simples e isenta desses estereótipos que a todo custo nos enfiam goela abaixo. Bom carnaval com sambas de impacto cujas letras falam diretamente à alma dos foliões. Carnaval de entrega de corpo, de paixão e aquela louca sensação de liberdade, passageira é verdade, mas que importa? O fato é que, sem qualquer espírito crítico, desde logo assumi que o carnaval está ligado à identidade nacional, ao nosso jeito de ser. Esse mito é combatido por muita gente, mas um tanto difícil de refutar. O folião decreta pelo espaço de quatro ou cinco dias a ausência total de compromissos. Sob o signo de carnaval deixam-se de lado o trabalho, a miséria e deveres. Vive-se uma liberdade utópica, em todo caso liberdade.

Da minha experiência com o carnaval muitas histórias podem ser contadas, algumas talvez inconfessáveis. No meio da confusão o imprevisto torna-se possível, não é assim? Pois creio que muita gente sisuda que anda por aí terá aprontado durante aqueles bailes perdidos na memória.

Se o assunto é carnaval, há do que se lembrar. Daquele meu amigo que bebeu todas no baile da terça-feira e passou mal: coitado, destripou-se todo na privada e perdeu os óculos que foram juntos na descarga. E sempre o caso do camarada que ficou enfeitiçado por uma mulher de beleza incomum e acabou tomando uns sopapos do cara grandão, por acaso o marido dela. Mas, o que vi de mais impressionante em matéria de carnaval foi um baile no Scala do Rio de Janeiro. Não me perguntem como fui parar lá, não serei capaz de explicar. Agora, cara, aquilo era de fato muito, mesmo para olhos mais experimentados.

Quem conhece o Scala sabe que o baile acontece em três salões ligados por escadas. Quando fui, no principal havia uma banda tocando a todo vapor, chamando foliões. Salão cheio, gente dançando, mas grande parte das pessoas nas mesas, bebericando e observando de longe o movimento dos cordões. Isso durava até o momento em que aparecia a turma da televisão para transmissões ao vivo. Então tudo se modificava: rostos cansados transfiguravam-se numa alegria súbita e incontida; pessoas, antes sentadas, ficavam em pé e dançavam, abraçando-se; e mulheres com decotes generosos e pernas de fora subiam nas mesas para pular enquanto o cameraman flagrava-as em seus melhores ângulos. Tudo isso durava até os flashes serem apagados. Então a equipe da TV partia e as pessoas retornavam às posições originais com o mesmíssimo desânimo de antes.

Mas, a grande farra acontecia no salão inferior. Para chegar a ele descia-se pelas escadas, tomando-se o cuidado de desviar de vários casais atracados, exageradamente atracados diga-se a verdade. Mas, valia a pena descer para presenciar um quadro digno das boas festas romanas ao tempo dos césares. Ali a permissividade corria mais solta, em alguns casos exageradamente. Talvez tenha sido essa a primeira vez que vi turistas americanos vestindo a carapuça de “turistas americanos”. Usando roupas extravagantes e esgotando garrafas de uísque, divertiam-se eles com mulatas muito sensuais e seminuas. Quanto ao carnaval, mas que carnaval? Carnaval de gringo é diferente, acreditem.

Creio que as boas histórias sobre carnaval nem sempre podem ser contadas. Daí que se escreve um texto meia bomba, dizendo por alto aquilo que na verdade nem é preciso dizer. Como essa coisa do baile do Scala que não foi feito para iniciantes. Quem não concorda que tente ver com os meus olhos aqueles americanos, uns loirões muito bêbados, cheios de uísque, atacando as mulatas. Cena de filme, inesquecível.

Afinal, o que se canta no carnaval?

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Dias atrás a Rede Globo promoveu um desafio carnavalesco entre cariocas e baianos. De um lado a bateria de uma escola de samba do Rio de Janeiro com um dos seus destaques; de outro a bateria do Olodum acompanhada de uma sambista baiana. De cara o Rio perdeu no cenário: os cariocas foram filmados em seu lugar de ensaios; os baianos serviram-se da beleza do Pelourinho, descambando, morro abaixo, para a Baixa do Sapateiro. Foi injusto porque os cariocas deveriam estar no morro da Urca ou na praia de Copacabana para que houvesse equilíbrio de cenários.

No mais, o que se viu foram comparações entre toques das duas baterias com suas paradinhas, o imbatível samba no pé da mulata carioca e o rebolado insano e inimitável da mulata baiana. A cada final de exibição dos cariocas, os baianos diziam “mandô bem” e iniciavam o seu revide; o mesmo acontecia ao final das exibições dos baianos quando os cariocas diziam o mesmo “mandô bem” e revidavam.

Não sei dizer quem ganhou se é que o desafio entre estilos diferentes deveria ter um ganhador. Entretanto, a disputa mostrou o sangue ardente de um carnaval em estado puro e que deixou de existir para cobrir-se de adereços tantas vezes dispensáveis, geradores de alegria mais visual que de coração. O fato é que o carnaval ainda existe na alma dos brasileiros embora tenha se descaracterizado, invadido que foi por uma profusão de ritmos que fariam Ari Barroso mexer-se dentro do seu caixão acaso pudesse ouvi-los.

Mas, afinal, o que se canta no carnaval? Cantam-se sambas nos desfiles das escolas, sambas de encomenda porque adaptados aos enredos. Canta-se um pouquinho de samba nos carnavais de rua e de clubes. Mas que se canta mesmo é o axé, nascido da fusão entre o frevo, o maracatu, o forró, o raggae e o calipso, namorado d pop-rock. Os velhos sambas, grandes sucessos do passado, são cantados e dançados meio sem entusiasmo; o axé levanta o povo com seus gritos de guerra e letras que todo mundo conhece e repete. As músicas de Ivete Sangalo, do Chiclete com Banana e outros artistas dominam porque estão no gosto popular. Resta saber se isso é carnaval.

Carnaval ou não, o axé é a música dos trios elétricos que arrastam multidões, é a música que está na boca o povo. Não importa muito que a um observador desavisado as músicas se confundam numa batida única mais parecendo que a uma partitura padrão se adaptaram incontáveis letras diferentes. O sucesso é garantido, por isso as bandas tocam e levantam o povo como o ritmo frenético do axé.

Para quem é saudosista, para quem ainda procura saber qual é o samba que será cantado pelo povo no carnaval, o axé poderá parecer um grande porre. Mas, se para esses ainda falar mais alto o espírito carnavalesco o remédio é tomar umas e outras e deixar rolar a música.  Olhe que ela poderá até tornar-se muito interessante em tal circunstância.