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Carnaval

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Pois é. Há quem deteste o carnaval. Tempo de licenciosidade dizem pessoas de muita fé. Tempo em que o diabo está à solta - dizia o padre da nossa paróquia na missa de domingo de carnaval. As carolas faziam sim com as cabeças. Os mais velhos concordavam. A moçada disfarçava. Como resistir ao cchamados de Momo? Como não ir ao salão de baile no qual seria possível pelo menos um esbarro na desejada de todas as noites?

Bons tempos. Rolava a lança-perfume que era proibida, mas… E vinha o dono do comércio com aquele lencinho amigo, bem molhado, ofertando imersões de tontura num universo colorido. Eu, rapazote, cheirava aquilo quando dava, perdia o rebolado dentro da névoa em que me metia, e ria, ria muito de um mundo distante que ainda mal conhecia.

Eram outros tempos. Época de bailes nos clubes, de algum respeito, pouca violência, beijos roubados com certa inocência. Tempos de marchinhas que encantavam, como aquela que dizia: joga a chave meu amor… Cantava-se isso, olhava-se de longe para a desejada com a esperança de que ela entendesse o recado. Mas, lá estava ela pulando, tão linda e faceira, bem atrás dela o pai com seu vastíssimo bigode e olhos vigilantes para proteger a cria.

Não sei em que carnaval o Dito deu de mexer com mulher casada e desceram sobre ele o marido, os cunhados, os primos, todo mundo. Foi ele salvo por um policial, o único presente, que prometeu levá-lo para o xilindró e, depois, soltou-o na esquina, mandando que desaparecesse. Dia seguinte o Dito desfiava um rosário de vantagens. Pusera abaixo toda aquela gente, quem manda o cara ter mulher bonita.

O tempo passa, infelizmente. Daquele carnaval resta apenas a memória. O dono de comércio que trazia a lança morreu num acidente. A desejada virou mulher adulta, casou-se com um mal afamado e sofreu o diabo. Pariu cinco filhos e faleceu depois do parto do último. O Dito desapareceu nas terras do Mato Grosso, para onde foi não se sabe porque e dele nunca mais se teve notícias. Sobrei eu para lembrar deles e sonhar com aquele baile e o meu olhar perdido na desejada que nunca tive em meus braços.

Escrito por Ayrton Marcondes

29 janeiro, 2016 às 9:55 pm

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Cinzas

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A quarta-feira de hoje parece não ter o significado de antes. Aprontava-se no carnaval, mas as cinzas da quarta-feira restituíam as coisas ao devido lugar. Minha mãe não abria mão de que a acompanhasse à igreja para que o padre colocasse cinzas na minha testa. Ai de mim se limpasse as cinzas. Deixava a marca na testa até chegar em casa e lavar o rosto.

E vinha a quaresma, tempo de meditação e ausência das alegrias fáceis. Era um mundo de regras aquele, pontuado pelas determinações da fé. As mulheres, chalé preto às costas, visitavam-se e falavam baixo. Minha mãe ralhava com meu pai acaso erguesse demais a voz.

Pecado ou não, o carnaval era muito bom. Vestíamos fantasias, fabricávamos sangue do diabo e perseguíamos as meninas nas ruas. Os bailes de salão, animados, atravessavam as madrugadas. A última noite, terça-feira gorda, anunciava o fim da alegria geral e prenunciava o tempo que viria. Por isso o bom folião dava tudo de si, esbaldava-se a valer naquelas horas em que tudo parecia valer, inclusive umas cheiradas na Rodouro que tinha o dom de fazer girar tudo à nossa volta.

Era assim o carnaval. Diferente desse que ontem terminou no qual luxo e pouca alegria deram o tom. Não há naturalidade nos desfiles das capitais nos quais a exuberância toma lugar da espontaneidade. Carnaval mais que cronometrado, alegria de tempo contado. Até tudo se desmanchar na Praça da Apoteose e começar o sufoco da apuração.

Nas ruas os blocos, os trios elétricos, as imagens de sempre que ainda contam com bons foliões. Em alguns lugares o estouro da violência, as depredações, o lixo acumulado, as necessidades pessoais feitas ali mesmo, no meio-fio.

Tudo é carnaval - dirão. Talvez o melhor fosse dizer que tudo são cinzas, sucessão interminável de quartas-feiras.

Carnaval

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Encontro um vizinho na garagem do prédio. Tarde da noite vem ele como cachorro para a necessária voltinha no quarteirão. Bom sujeito, alegre, sempre participativo, meu vizinho me pergunta se vou viajar no carnaval. Devolvo a pergunta querendo saber onde ele vai “pular” as cinco noites.

O meu vizinho diz que já gostou muito de carnaval, agora prefere o sossego. Vai se enfiar num sítio e gozar um pouco da solidão. Quem trabalha o tempo todo precisa dessas paradas para deixar o espírito em ordem.  Depois - acrescenta - o carnaval já não é o mesmo e a festa é para jovens.

O carnaval já não é o mesmo? Talvez o maior pecado do carnaval seja a mesmice. Daqui de casa ouço toda noite os ensaios de um bloco que vai sair num dos desfiles da cidade. Pela janela vejo uma multidão que se arrasta atrás de um carro de som. O que querem aquelas pessoas? O que se pretende ao juntar-se a um bando de estranhos e sair à rua ouvindo as músicas de sempre, a cada ano repetidas à exaustão?

O carnaval entra nas nossas vidas como um momento de fuga da realidade. Vigora um frenesi que só existe nesses quatro dias de libertação. Ari Barroso retratou em seus sambas a alegria e a dor do carnaval. Deu-nos ele o folião de raça que se deixa perder num cordão atrás de uma mulata dos sonhos. O folião só volta pra casa na quarta-feira para ser recebido pela mulher que sabe que o seu pedaço está mal, resmungão, mas pertence a ela e isso é o que importa.

Discordo do meu bom vizinho quando ele diz que o carnaval é festa para os jovens. O carnaval é achado de um povo que balança o corpo para se esquecer da vida dura, dos problemas somados que fazem da vida essa coisa tão complicada. O carnaval é, antes de tudo, uma trégua, uma revanche contra tudo que nos aborrece.

Não importa se o carnaval é o mesmo de sempre ou não. O que vale são esses dias onde cada um recebe o seu alvará de loucura e pode sair por aí fazendo o que lhe der na telha.

Feliz carnaval.

Escrito por Ayrton Marcondes

28 fevereiro, 2014 às 11:59 am

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Na rua ou no salão?

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E aí? Pronto para rasgar a fantasia? A coisa começa hoje a noite embora já esteja rolando quente por esse Brasil afora. Ontem Salvador já estava em festa porque a chave da cidade foi entregue ao Rei Momo. Pronto: chave na mão do Rei e a folia foi autorizada. E lá vieram os trios elétricos com toda aquela parafernália de equipamentos de som. O barulho era tanto que os holandeses que invadiram a Bahia no século XVII quase se levantaram nos cemitérios.

Coisa louca a atividade dos “cordeiros”, os carinhas que cuidam da corda que separa o pessoal dos blocos da turma da pipoca. O pessoal dos blocos é o mais endinheirado, gente que compra os abadás e garante o direito de brincar dentro do limite das cordas. Fora delas fica a multidão que forma a pipoca, marchando firme atrás do trio elétrico. Pois é, amigo, carnaval de rua não é exatamente uma festa da igualdade…

Mas não é hora de pensar em diferenças sociais porque a Praça Castro Alves é do povo, como diz a letra daquela música do Caetano Veloso. Aliás, você já “sentiu” a Praça Castro Alves?

Da Bahia para o Brasil, para a invasão do “Galo da Madrugada” no Recife. Gente, o “Galo” é simplesmente demais, esse sim capaz de trazer de novo da Holanda o Maurício de Nassau para por ordem na cidade. Quando o “Galo” está nas ruas só uma nova invasão holandesa para resolver. O “Galo” é o maior bloco do mundo, com direito a reconhecimento no Guiness Book. Na alucinação de um frevo rasgado mais de trinta trios elétricos arrastam uma multidão que não deixa espaços para nada. Viva o “Galo da Madrugada”. A benção grande compositor Nelson Ferreira, autor dessa maravilha de frevo que é “Evocação nº 1”:

Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
E era o sucesso dos tempos ideais
Do velho Raul Moraes
Adeus adeus minha gente
Que já cantamos bastante
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia

 

Do Recife para as ruas de Olinda, por que não? E lá vêm os bonecos gigantes acompanhados pela multidão. Quem abre o carnaval de Olinda é o “Homem da Meia-Noite” com seu dente de ouro, trajado com terno verde e cartola. Irresistível, fenômeno a céu aberto da imaginação e folclore de um povo gerado pela fusão de muitas etnias, alegre, festivo, talvez inexplicável.

E chega. Depois disso tudo creio que você não terá outra opção que não a de se sentir parte integrante dessa loucura e sair por aí para se divertir.

Então, amigo, você vai se esbaldar na rua ou no salão?

Vem aí o carnaval

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Vem aí o carnaval com seus rituais de sempre. Na TV exibe-se uma coleção de corpos femininos seminus destinados a dar o tom da folia. Carnaval, sexo e álcool - para não se falar em drogas - são ingredientes ideais para toda sorte de arranjos. É de Ari Barroso a formidável frase que descreve o folião “se acabando num cordão”. “Folião de raça”, diz Ari na letra desse maravilhoso samba que se chama “Camisa Amarela”:

Encontrei o meu pedaço na avenida
De camisa amarela
Cantando a Florisbela, oi, a Florisbela
Convidei-o a voltar pra casa
Em minha companhia
Exibiu-me um sorriso de ironia
Desapareceu no turbilhão da galeria

Não estava nada bom
O meu pedaço na verdade
Estava bem mamado
Bem chumbado, atravessado
Foi por aí cambaleando
Se acabando num cordão
Com o reco-reco na mão…

 

Impossível melhor descrição do sujeito que decreta a falência do mundo real por quatro dias e se entrega ao frenesi da festa de Momo. A coisa continua sendo assim mesmo nesta época em que nada parece natural. A alegria e descontração foram substituídas por desfiles de rua onde o que conta é a riqueza de aparatos e a organização. Incrível que na festa da desorganização e do acaso justamente a ordem conte pontos. Isso em relação a escolas de samba. Por fora delas corre o carnaval de clubes sempre em vias de extinção, embora resistindo bravamente e quase sempre envolvendo pancadarias.

Confesso que sempre gostei de carnaval, da folia simples e isenta desses estereótipos que a todo custo nos enfiam goela abaixo. Bom carnaval com sambas de impacto cujas letras falam diretamente à alma dos foliões. Carnaval de entrega de corpo, de paixão e aquela louca sensação de liberdade, passageira é verdade, mas que importa? O fato é que, sem qualquer espírito crítico, desde logo assumi que o carnaval está ligado à identidade nacional, ao nosso jeito de ser. Esse mito é combatido por muita gente, mas um tanto difícil de refutar. O folião decreta pelo espaço de quatro ou cinco dias a ausência total de compromissos. Sob o signo de carnaval deixam-se de lado o trabalho, a miséria e deveres. Vive-se uma liberdade utópica, em todo caso liberdade.

Da minha experiência com o carnaval muitas histórias podem ser contadas, algumas talvez inconfessáveis. No meio da confusão o imprevisto torna-se possível, não é assim? Pois creio que muita gente sisuda que anda por aí terá aprontado durante aqueles bailes perdidos na memória.

Se o assunto é carnaval, há do que se lembrar. Daquele meu amigo que bebeu todas no baile da terça-feira e passou mal: coitado, destripou-se todo na privada e perdeu os óculos que foram juntos na descarga. E sempre o caso do camarada que ficou enfeitiçado por uma mulher de beleza incomum e acabou tomando uns sopapos do cara grandão, por acaso o marido dela. Mas, o que vi de mais impressionante em matéria de carnaval foi um baile no Scala do Rio de Janeiro. Não me perguntem como fui parar lá, não serei capaz de explicar. Agora, cara, aquilo era de fato muito, mesmo para olhos mais experimentados.

Quem conhece o Scala sabe que o baile acontece em três salões ligados por escadas. Quando fui, no principal havia uma banda tocando a todo vapor, chamando foliões. Salão cheio, gente dançando, mas grande parte das pessoas nas mesas, bebericando e observando de longe o movimento dos cordões. Isso durava até o momento em que aparecia a turma da televisão para transmissões ao vivo. Então tudo se modificava: rostos cansados transfiguravam-se numa alegria súbita e incontida; pessoas, antes sentadas, ficavam em pé e dançavam, abraçando-se; e mulheres com decotes generosos e pernas de fora subiam nas mesas para pular enquanto o cameraman flagrava-as em seus melhores ângulos. Tudo isso durava até os flashes serem apagados. Então a equipe da TV partia e as pessoas retornavam às posições originais com o mesmíssimo desânimo de antes.

Mas, a grande farra acontecia no salão inferior. Para chegar a ele descia-se pelas escadas, tomando-se o cuidado de desviar de vários casais atracados, exageradamente atracados diga-se a verdade. Mas, valia a pena descer para presenciar um quadro digno das boas festas romanas ao tempo dos césares. Ali a permissividade corria mais solta, em alguns casos exageradamente. Talvez tenha sido essa a primeira vez que vi turistas americanos vestindo a carapuça de “turistas americanos”. Usando roupas extravagantes e esgotando garrafas de uísque, divertiam-se eles com mulatas muito sensuais e seminuas. Quanto ao carnaval, mas que carnaval? Carnaval de gringo é diferente, acreditem.

Creio que as boas histórias sobre carnaval nem sempre podem ser contadas. Daí que se escreve um texto meia bomba, dizendo por alto aquilo que na verdade nem é preciso dizer. Como essa coisa do baile do Scala que não foi feito para iniciantes. Quem não concorda que tente ver com os meus olhos aqueles americanos, uns loirões muito bêbados, cheios de uísque, atacando as mulatas. Cena de filme, inesquecível.

Carnaval

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Estão aí o carnaval e a folia. As escolas de São Paulo aprimoram-se em luxo e riqueza. As do Rio fazem do Sambódromo palco de evento de fantástica magnitude. Fora esses lugares o carnaval se espalha pelos quatro cantos do país. Quem resiste ao apelo do Galo da Madrugada no Recife?

Nem adianta dizer que o carnaval mudou. Não é mais o mesmo? Não existe mais a folia pela folia?  Os estudiosos que me perdoem, mas carnaval é festa orgulhosa demais para se dar ao desfrute de ser explicada. É festa que faz parte da alma coletiva do povo, a tal alma madrugada do povo Emboaba. É festa dançada a samba, frevo e todos os gêneros de batuque. O carnaval é o filho um pouco mais comportado do entrudo que gerou essas formas tão desconexas de comemoração nas quais a única lógica possível é justamente a falta de lógica.

Mas, nada disso importa muito. O que continua valendo é a alma do folião. Estou me referindo ao folião de raça como o do samba do Ari Barroso: aquele que se acaba num cordão e só volta para casa na quarta-feira, cantando a Jardineira. Pois esse folião existe, ele é parte essencial do imaginário nacional, sem ele não há carnaval.

Do folião de raça, desse folião de samba que tem poesia na letra, deriva o exército de foliões que toma as ruas sob o som da batucada infernal. O Brasil só continuará a ser Brasil enquanto de repente, não mais que de repente, um sambista dobrar a esquina com um pandeiro na mão. A figura desse sambista-padrão todos conhecem: chapéu de malandro, camisa listrada, calça e sapatos brancos, o sorriso maroto. Sem esse cara o Brasil não é o Brasil, as mulatas não rebolam, as passistas ficam congeladas num último movimento, as escolas não vão para a pista, não há samba-enredo, não existe carnaval.

É carnaval. Que venham os abre-alas. Quem não quiser entrar no cordão, pelo menos sorria. A alegria geral não foi feita para deixar ninguém de fora. Meu caro, considere: nós brasileiros já vivemos na pipoca dos acontecimentos, naquela estreita margem dos que não tem nome e acompanha o cortejo do dia-a-dia. Pois nesses quatro dias, vamos entrar na outra pipoca, essa que corre atrás dos trios elétricos.