terça-feira gorda at Blog Ayrton Marcondes

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Em meio às cinzas

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Pergunto ao garçom se o preço da caipirosca está correto. Ele me explica que a de vodka Smirnoff custa 14 reais. Já ao preço da preparada com Absolut é calculado da seguinte forma: preço da com Smirnoff mais 16 reais. Portanto, 30 reais. Digo a ele que então o cliente paga 14 reais apenas pelo preço do limão já que na caipirosca de Absolut não se coloca a Smirnoff. O garçom não entende a minha reclamação e repete: preço da Smirnoff mais 16 reais é o preço da com Absolut.

Desisto. São três da madrugada da quarta-feira de cinzas. Peço mais uma caipirosca, a saideira. Os bailes da terça gorda continuam. Os blocos seguem nas ruas. Multidões são embaladas no Recife dentro da alucinação do frevo que não para nunca. No farol da Barra em Salvador foliões ensandecidos entregam seus corpos ao ritmo feroz de um trio elétrico. Ninguém se dá conta de que já estamos em cinzas e a austeridade bate às nossas portas. Mas, eia, damos-lhe as costas. Não queremos a realidade ameaçadora que a essa altura já posicionou suas tropas no horizonte. Esperam esses soldados fortemente armados o primeiro raio de sol para invadir o mundo restabelecer a ordem. Não importa que não queiramos a ordem, essa ordem cheia de problemas e dor. Ordem de trabalho, falta de dinheiro, filhos perdidos, desgraças e mais desgraças. Em pouco os arautos de um novo dia difícil iniciarão o ataque. Poucos de nós resistirão. Em Salvador o último bloco resistirá até o meio do dia, mas seus membros finalmente se darão por vencidos. Então o carnaval estará finalmente encerrado.

Nas primeiras horas do novo dia as igrejas se abrirão e os fiéis receberão as cinzas. Homens e mulheres com a testa marcada em negro deixarão as igrejas e sairão altivos na resplandecente manhã. O carnaval ficou para trás, os foliões dormem e o mundo segue na toada de sempre.

Mas, ainda são três da manhã e só mais uma rodada de caipirosca, a penúltima, poderá me ajudar no sufoco da espera pela nova manhã.

Cinzas

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A quarta-feira de hoje parece não ter o significado de antes. Aprontava-se no carnaval, mas as cinzas da quarta-feira restituíam as coisas ao devido lugar. Minha mãe não abria mão de que a acompanhasse à igreja para que o padre colocasse cinzas na minha testa. Ai de mim se limpasse as cinzas. Deixava a marca na testa até chegar em casa e lavar o rosto.

E vinha a quaresma, tempo de meditação e ausência das alegrias fáceis. Era um mundo de regras aquele, pontuado pelas determinações da fé. As mulheres, chalé preto às costas, visitavam-se e falavam baixo. Minha mãe ralhava com meu pai acaso erguesse demais a voz.

Pecado ou não, o carnaval era muito bom. Vestíamos fantasias, fabricávamos sangue do diabo e perseguíamos as meninas nas ruas. Os bailes de salão, animados, atravessavam as madrugadas. A última noite, terça-feira gorda, anunciava o fim da alegria geral e prenunciava o tempo que viria. Por isso o bom folião dava tudo de si, esbaldava-se a valer naquelas horas em que tudo parecia valer, inclusive umas cheiradas na Rodouro que tinha o dom de fazer girar tudo à nossa volta.

Era assim o carnaval. Diferente desse que ontem terminou no qual luxo e pouca alegria deram o tom. Não há naturalidade nos desfiles das capitais nos quais a exuberância toma lugar da espontaneidade. Carnaval mais que cronometrado, alegria de tempo contado. Até tudo se desmanchar na Praça da Apoteose e começar o sufoco da apuração.

Nas ruas os blocos, os trios elétricos, as imagens de sempre que ainda contam com bons foliões. Em alguns lugares o estouro da violência, as depredações, o lixo acumulado, as necessidades pessoais feitas ali mesmo, no meio-fio.

Tudo é carnaval - dirão. Talvez o melhor fosse dizer que tudo são cinzas, sucessão interminável de quartas-feiras.