2011 julho at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para julho, 2011

Sorteio das Eliminatórias

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Assisti ao primeiro jogo da Copa de 70 na casa de um amigo. Até então não tínhamos confiança no time. Quando a Tchecoslováquia fez o primeiro gol nossos temores pareciam confirmados. Depois foi o que se viu, o futebol exuberante da seleção nacional que venceu por 4X1.

É difícil reproduzir o efeito da vitória brasileira naquela noite. São Paulo não era a cidade de hoje e estávamos no auge da ditadura e repressão política. Mas, a cidade explodiu em fogos e buzinaços. Num tempo de alegria breve e muito silêncio o futebol entrava em cena para lavar a alma do povo. Depois do jogo eu e o meu amigo fomos a um bar na Av. Ibirapuera e comemoramos a vitória com muita cerveja. Foi quando conhecemos um senhor que nos deu algumas lições sobre como lidar com o sexo feminino, mas isso já é outra história.

Lembrei-me do jogo de 70 quando vi, pela televisão, o sorteio para a próxima Copa que terá lugar no Brasil. Depois da vitória contra a Tchecoslováquia formou-se a tal “corrente pra frente” com os “90 milhões em ação”. A verdade é que nem todos os brasileiros faziam parte da corrente. Havia deserções entre os tais 90 milhões, população do país na época. De fato, pessoas refratárias ao regime imposto no país pelos militares viam a vitória do Brasil na Copa como instrumento muito útil ao governo. Confesso que ao rapaz que eu era na época escaparam as associações entre futebol, alegria do povo, disfarce da repressão etc. Talvez por isso tenha estranhado muito quando pessoa próxima a mim declarou de forma alguma torcer pela vitória brasileira. Bem eu torci, vibrei e jamais me esquecerei daquela formidável seleção de 70. Torceria hoje acaso vivêssemos a situação do país naquela época?

Certamente que não. Tive essa certeza justamente durante o sorteio realizado pela FIFA no sábado. A verdade é que a atuação da CBF, o modo de agir do atual presidente da entidade e toda a tramoia que envolve a construção de estádios com a participação de dinheiro público, tudo isso e muito mais interfere no encanto do futebol que tanto amamos. De repente parece que de tudo o que se está planejando o que menos interessa é o futebol propriamente dito. Interesses econômicos, conchavos, interferências políticas, ações da cartolagem e até mesmo certo descaso dos jogadores fazem-nos sentir saudades da seleção como expressão nacional de nossa força e capacidade.

Talvez por isso tudo eu não tenha me abalado a eliminação do Brasil na Copa América. Na verdade não dei importância que daria no passado a uma vexaminosa derrota da seleção brasileira. O que me leva a parafrasear o grande Machado de Assis: mudei eu ou mudou o futebol?

O voo 447

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Acaba de ser divulgado o relatório do Escritório de Investigações e Análise (BEA), órgão oficial francês encarregado das investigações do acidente com o voo 447 da Air France. Segundo o relatório o avião caiu devido a falhas dos pilotos. Eles não teriam adotado os procedimentos corretos após o congelamento dos sensores (sondas) que levaram à perda dos indicadores de velocidade.

No momento em que isso aconteceu o comandante estava descansando e um dos copilotos saiu da cabine para acordá-lo. Enquanto isso o outro copiloto tentou manter o avião no ar, fazendo-o de modo errado. Segundo a BEA os pilotos não haviam recebido treinamento adequado sobre os procedimentos a serem tomados em grandes altitudes.

O diálogo entre os copilotos está na internet.  Constitui-se em tudo o que restou dos mortos do voo 447. As palavras revelam desorientação. Estão no ar, mas perderam as referências. Não sabem se estão subindo ou descendo. Não sabem se o avião está em posição de equilíbrio. A vida escapa a eles e aos passageiros, mas não há percepção disso. O fim os surpreenderá caso tenham tempo para serem surpreendidos.

Foi assim que o Airbus caiu no oceano e 229 pessoas morreram. Após a publicação do relatório a Air France saiu em defesa da tripulação, afirmando que nada permite colocar no banco dos réus a competência de seus integrantes.

Estão aí os pontos de vista da BEA e o da companhia aérea francesa. Mas como teriam se passado as coisas do lado dos passageiros? Em primeiro lugar é bom lembrar que eles não foram avisados sobre qualquer problema com o avião. Twriam percebido que lago não ia bem quando o avião entrou em área de grande turbulência. Então, às 2h da madrugada, o comandante foi descansar, deixando o controle do Airbus nas mãos dos copilotos. Provavelmente a maioria dos passageiros estaria dormindo nesse horário. Nos dez minutos seguintes tudo aconteceu: os copilotos ficaram sem informações e um deles foi chamar o comandante que reapareceu na cabine às 2h11. A essa altura o copiloto já tomara a decisão errada: levara o avião a uma altura de 38 mil pés de onde ele despencou em direção ao mar. Talvez só nesse momento, quando o Airbus começou a cair em grande velocidade, os passageiros tenham tomado consciência real da situação. O que se sabe de concreto é que às 2h14 a gravação foi interrompida.

Acidentes aéreos com vítimas têm algo de fantástico e absurdo. De repente, todas as garantias de segurança prometidas para uma nave tecnicamente avançada e perfeita deixam de existir. A partir daí tudo pode acontecer, inclusive o desfecho fatal. As falhas humanas e mecânicas, a impotência dos passageiros e as circunstâncias da tragédia atraem o interesse geral. Imaginar os últimos e terríveis instantes das pessoas dentro do avião em queda e irmanar-se com a dor dos que perdem entes queridos fazem parte de um contexto no qual se impõe a constatação da brevidade da vida e o aspecto circunstancial da existência.

Todos nós morremos um pouco quando uma grande tragédia acontece. Ela nos sugere aquilo que poderia e pode acontecer conosco, daí o terror e a atração que acidentes como o do Airbus 330 nos inspiram.

A jornalista

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Entrei no elevador e dei de cara com uma senhora de aspecto sisudo. Não trocamos palavra em quase todo o percurso até que ela me perguntou:

- Você trabalha com o quê?

- Na área de educação - respondi.

- Educação: é tudo que não temos e do que mais precisamos - sentenciou ela.

Confesso que por mim a conversa teria parado por aí. Estava com pressa e a senhora realmente não tinha jeito de pessoa que faz amigos. Mas ela insistiu na conversa:

- As pessoas me acham muito ranzinza, reclamona, você deve saber disso…

Só então me lembrei dela. Era a senhora que atazanava todo mundo nas reuniões de condomínio. Corria até que a incompatibilidade com os moradores se devia à insistência dela em assumir o cargo de síndica do prédio. Pretensão, aliás, nunca aprovada pelos condôminos.

O elevador chegou ao térreo, saímos e eu ia me despedir quando a senhora me segurou pelo braço:

- Veja bem, sou mesmo intolerante. Mas é que eu me cansei, sabe? Fui jornalista e aguentei muito, agora não aguento mais. Tenho mais de 70 anos e nessa idade a gente cansa. Vai acontecer com você, não se engane. A grosseria, a depredação do que é comum às pessoas, a falta de educação, essas coisas se tornam pesadas, inaceitáveis. E que dizer da falta de respeito, você não acha? É por isso que eu brigo, por isso reclamo. Não aceito o descaso com coisas que pertencem a todos e a falta de urbanidade. Não sou um bicho, sou gente. Você também vai chegar lá, vai acontecer com você quando tiver a minha idade.

Depois disso nos separamos, cada um para o seu caminho. No trânsito, dirigindo, eu me senti incomodado, a princípio sem identificar a razão. Creio que foi num momento em que vi um homem correndo para não ser atropelado por um motoqueiro que identifiquei a causa do meu desconforto. Foi aquele “vai acontecer com você” colocado pela senhora como parte de um fatalismo inevitável. Aquilo me atingiu. Então eu me vi bem velho, dentro de um elevador, falando a um desconhecido sobre a minha intolerância com o mundo e as pessoas, quase implorando para ser compreendido, talvez pedindo para que as coisas fossem diferentes.

Não! Eu jamais faria isso. Não é porque chegaria àquela idade que mudaria o meu perfil de recato e sairia por aí pregando sobre a vilania que grassa no mundo.

Não faria? Sei lá. É preciso chegar lá para saber.  Talvez a senhora tenha razão e o mundo se torne insuportável. Será?

Ainda e sempre o racismo

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Infelizmente não há novidades na justificativa ideológica para o hediondo ataque terrorista perpetrado na Noruega. Pode-se até mesmo dizer que Anders Behring Breivik, autor dos atentados, é só um novato no terreno das ideias que professa, nada havendo de original no manifesto de 1500 páginas no qual buscou sedimentar as razões da sua ação. E foi em nome de velhos e conhecidos preconceitos, os quais infelizmente ainda contam com inúmeros adeptos, que Breivik  ceifou a vida de muitos inocentes. Para completar esse trágico quadro de atrocidades há o fato de o próprio Breivik colocar-se na posição de um herói que lamenta, mas não se arrepende de seu ato a seu ver necessário. O que ele pretendia era chamar a atenção de seu país e da Europa sobre a invasão mulçumana. Racismo puro contra etnias de origem muçulmana, repetição de perigosas fobias contra imigrantes e, pior que isso, recrudescimento extemporâneo de ódios raciais que resultaram em banhos de sangue durante o século XX, vide as atrocidades praticadas contra judeus pelos nazistas.

Mas, de onde vem esse ódio que se traduz em preconceito, tantas vezes descambando para ações extremadas e absurdas? Não cabe neste espaço destinado a breves considerações a exposição detalhada do longo caminho trilhado pelas ideias preconceituosas e racistas. Entretanto, vale lembrar que a composição étnica da população de há muito tem sido vista como fator determinante do modo de vida e mesmo possibilidades de crescimento e desenvolvimento de um país. É assim que, fundando-se na noção de superioridade e inferioridade biológica, perseguições e crimes hediondos, tendo por justificativa razões étnicas, têm sido cometidos. O empenho, no passado, de pessoas de ciência para fornecer argumentos que justificassem a escravidão negra é apenas um dos exemplos das múltiplas facetas que o preconceito pode assumir a serviço de interesses específicos entre os quais se sobressai o de dominação.

Entre as varias teorias utilizadas para caracterizar diferenças raciais e a inferioridade de algumas raças merece destaque a questão da miscigenação por muitos considerada como grande ameaça ao futuro da humanidade. Nesse sentido o Brasil sempre esteve à frente como exemplo de país onde a excessiva mistura de raças teria gerado uma população destinada ao fracasso. Durante o Segundo Império esteve no Brasil, na condição de embaixador da França, o Conde de Gobineau que privou da amizade do imperador D. Pedro II. Gobineau pregava a superioridade da raça ariana à qual creditava a evolução da civilização. Por outro lado, condenava a miscigenação que resultaria no enfraquecimento da raça superior - a branca.  Lembrando que a população brasileira era formada por mestiços, mulatos, cafusos, mamelucos, caboclos, enfim homens de cor, Gobineau afirmava ser simples constatar que tratava-se de gente “nem laboriosa, nem  ativa, nem fecunda”, tudo isso resultante da miscigenação. Daí viverem em condição de barbárie, com comportamento grotesco e distante dos hábitos do mundo civilizado. Prevalecia, portanto, a noção de que cruzamentos entre indivíduos de raças diferentes originam seres híbridos, mais fracos e menos dotados.

Mas, Gobineau é só um exemplo. A separação da humanidade em grupos, havendo entre eles hierarquia quanto à superioridade e inferioridade racial, permaneceu como verdade científica ainda no século XX, sendo que mesmo a elite cultural brasileira do início daquele século comungava com essa ideia. Daí a crença, ainda na década de 20 do século passado, de que seria necessário um branqueamento da população brasileira para que fosse possível um avanço do país. Aliás, considerava-se esse avanço inevitável dada a superioridade inata dos brancos. Não é de se estranhar, portanto que, em seu manifesto, Breivik tenha citado por várias vezes o Brasil como exemplo de lugar onde houve grande miscigenação, devendo-se impedir que o mesmo venha a suceder na Europa. Afinal, desde meados do século XIX o Brasil chamava a atenção de escritores estrangeiros, sendo citado como exemplo de algo que não dera certo em termos étnicos, experiência a ser observada e que não deveria se repetir no futuro.

Os séculos XIX e XX foram pródigos em associações entre avanços científicos e teorias que os incorporaram inadequadamente para justificar diferenças entre os seres humanos. Seria longa a citação de pensadores que se dedicaram ao assunto. Para ficar apenas com alguns podem ser lembrados: o escritor inglês Buckle para quem o clima influiria sobre as raças humanas, sendo que a civilização estaria restrita às áreas frias; os defensores do darwinismo social como Spencer, Haeckel, Gumplowicz e Lapouge que se apropriaram do evolucionismo para legitimar políticas de dominação sobre asiáticos e africanos.

O covarde ato de Breivik é sintoma do crescimento da extrema direita cujos antecedentes históricos são de triste memória.  Infelizmente não se trata de atitude isolada, praticada por um desiquilibrado. Breivik fez o que fez por convicção e certamente terá encontrado aprovação entre muita gente que pensa como ele. O mal, como se sabe, age insidiosamente, espalha-se, recruta mais adeptos e oferece o risco de tornar-se rotina daí a necessidade de cortá-lo pela raiz.

Amy Winehouse

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A cantora Amy Winehouse está morta. Sua desaparecimento prematuro desperta, em todo o mundo, uma avalanche de comentários - grande parte deles lugares-comuns que se aplicam muito bem a situações como essa. Afinal, trata-se de uma cantora de renome cujas atitudes não raramente beiraram o absurdo. Vida turbulenta, drogas e internações faziam parte da rotina da cantora. Mais que isso, a morte inesperada aconteceu quando Amy tinha apenas 27 anos de idade e toda uma carreira pela frente.

Destaque-se a tão citada coincidência de mortes, aos 27 anos de idade, de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Curt Cobain.  A eles agora se une Amy. Fala-se sobre esse fato estranho como se por trás das mortes houvesse alguma maldição. 

Há um ensaio de Stephen Zweig no qual ele afirma que o século XIX não gosta de sua juventude, a ponto de ceifar as vidas ou a razão, precocemente, de seus maiores talentos. Entre outros Zweig cita a loucura precoce do grande poeta alemão Friedrich Hölderlin; e a morte, em duelo, do poeta russo Aleksandr Puchkin.  Seguindo o raciocínio de Zweig talvez seja o caso de se dizer que a música popular não gosta de seus ídolos rebeldes cujas trajetórias semelhantes se confundem entre consumo de drogas e geniais criações.

Amy Winehouse morre e entra para o seleto clube de mitos da música popular. De fato, o envelhecimento de gente como ela e seus companheiros de infortúnio – os que morrem aos 27 anos - é de todo inimaginável. Pessoas como Amy parecem destinadas a executar a missão específica de ser diferentes e isso a tal ponto que não seria demasiado imaginá-las como outra versão de seres humanos. Trata-se de pessoas cuja atuação desafia a lógica comum daí assumirem o risco da descontinuidade de suas vidas que para elas talvez pouco valham. Viver no limite parece ser a regra com direito a intervalos nos quais uma explosão de sensibilidade e criatividade resulta em produções memoráveis.

Quem viu Amy Winehouse no palco pode perceber que ela não pertencia ao cotidiano em que vivem os mortais comuns. Talvez ela nem mesmo fizesse parte do mundo em que vivia. Havia nela algo de experiência transcendental que poderia muito bem ser confundida com simples banalidade ou descaso. A mulher por vezes embriagada que esquecia letras de suas próprias criações ou discutia com os músicos não pertencia ao palco e nem mesmo aos fãs que esperavam, ansiosamente, por momentos de lucidez e arte que compensariam todo o resto.

A vasta fauna de seres humanos apresenta-nos seres de tendência varia. Em meio a tal diversidade vez ou outras surgem figuras especiais. São seres de brilho fugidio que terminam sendo consumidos pela própria luz. Amy Winehouse pertencia à estipe dos seres que voam alto demais, ultrapassando limites, distanciando-se da realidade até perderem-se para sempre.

Menino matador

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A notícia vem do México: um menino de 14 anos de idade está sendo julgado e pode ser condenado à pena máxima prevista para a idade - três anos. O nome dele é Edgar Jimenes, mas é mais conhecido como El Ponchis.

O que aprontou esse garoto? El Ponchis admitiu usar drogas fornecidas por um líder do cartel do Pacífico Sul e ter assassinado quatro pessoas. É El Ponchis quem fala:

- Me sentia mal fazendo isso. Fui forçado a fazer. Eles me disseram que me matariam se eu não fizesse. Eu apenas os decapitei, mas nunca pendurei (corpos) na ponte, nunca.

El Ponchis é filho de mexicanos, mas nasceu nos Estados Unidos. Ele “apenas” decapitou, mas garante que não cometeu o crime de pendurar os corpos na ponte. Certamente será condenado e só retornará o mundo livre depois de três anos.

Noticia-se que outros 10 menores estão detidos, acusados de crimes ligados ao tráfico.

Esse é o tipo de coisa sobre a qual não se acha o que dizer. O melhor é fingir que simplesmente não acontece, jurar que se trata de ficção e de mau gosto.

O fim da letra cursiva?

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De que as escolas de hoje são muito diferentes das do passado todo mundo sabe. Houve tempo, não tão distante, em que disciplina se mantinha à base de reguadas, tapas e outros infortúnios aplicados às crianças. Não se estranhava porque era assim, os pais não reclamavam porque também tinham passado por isso, apanhar um pouco era um dos componentes da tal pedagogia do medo.

Lembro-me bem de uma professora do meu segundo ano do curso primário, hoje chamado de Ensino Fundamental. Era brava como uma peste, temida pela molecada que nem por isso deixava de aprontar. Ela ensinava português como quem prepara gente para uma competição internacional destinada a poucos eleitos. Andava pela sala como uma víbora pronta a dar um bote, carregando sempre uma régua comprida na mão. Oh, régua danada de doida. Pois foi essa mulher rígida que enfiou na minha cabeça que “antes de p e b só se coloca m”, que “o cedilha de açúcar está no primeiro c” e uma enormidade de coisas que gravei para sempre.  E que dizer das exigências dela quanto à letra que tínhamos por obrigação aperfeiçoar sempre para, como ela dizia, fazermo-nos entendidos não só pelo conteúdo, mas pela clareza da forma escrita.

A minha professora morreu há muito tempo. Tive contato com ela anos depois de ter sido seu aluno. Então pude vê-la em sua realidade de mulher muito simples, que acreditava no que fazia daí seu empenho em ensinar nas escolas do governo em pequenas cidades do interior. Dela guardei as imagens de rigidez que presenciei em meus tempos de menino e a de pessoa afável e certa de ter cumprido o seu dever, como pude verificar anos mais tarde.

Bem, os tempos são outros e, obviamente, é inaceitável o ensino na base do medo e espancamentos.  Os alunos de hoje dispõem de recursos inimagináveis no passado, bastando citar os computadores e a internet como meios úteis ao aprimoramento, pesquisas etc. Entretanto, é válido se perguntar se toda a tecnologia disponível é suficiente para substituir meios de aprendizado consolidados ao longo de décadas e que fizeram parte da formação de toda gente. Mais especificamente refiro-me à possibilidade de abandono da letra cursiva em instituições escolares. Trata-se do abandono de caneta, lápis e papel, pura e simplesmente.

A notícia vem dos EUA: o ensino da letra cursiva (de mão) será opcional e deverá ser abandonado posteriormente. Por enquanto a medida será colocada em prática no estado de Indiana. Depois deverá se estender por todo o país. Considera-se essa forma de escrever ultrapassada, devendo-se concentrar o interesse nas letras de formas. O fato é que as crianças já não têm necessidade de escrever em papel, afirmam os pedagogos.

Então, adeus letra cursiva, adeus cadernos de caligrafia que já não são mesmo sendo usados em muitas escolas atualmente. Um viva para os teclados de computadores, telefones e outras engenhocas do gênero. Quanto às assinaturas, tão necessárias em várias circunstâncias, vale lembrar que mesmo analfabetos são capazes de desenhar o próp,rio nome no papel.

Há quem seja contra o abandono da letra cursiva. Esses destacam que a letra representa, em parte, a personalidade das pessoas. Talvez os contrários lutem contra o inevitável porque, como se disse, os tempos e as pessoas são outros.

Eu? Creio que não me entenderia como gente caso não fosse capaz de pegar papel e rabiscar alguma coisa com a minha sofrível letra pela qual tanto se empenhou a minha antiga professora.

Um macaco tarado

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Há um canal de TV cuja programação é voltada para a vida animal. São exibidas reportagens sobre vários bichos, mas a maioria é sobre cobras e macacos. As pessoas que realizam documentários sobre cobras parecem se esforçar por mostrar a sua fascinação por esses animais. Najas e outras espécies altamente venenosas são tratadas como seres normais dentro de seus hábitats, o que de fato são. O que não são, nem um pouco, é sociáveis daí que dá nos nervos ver aqueles caras pegando cobras perigosíssimas como quem passa a mão numa tolha felpuda.

Verdade. Semana passada assisti a um documentário no qual uma mulher saiu com sua equipe em busca de uma espécie de cobra não venenosa. Era de se ver o modo como ela se aproximou de uma cobra bem grande e, ao tentar pegá-la, levou uma picada. O sangue correu solto pela mão dela e, evidentemente doeu bastante. Entretanto a cena foi de sorrisos porque era a primeira vez dela, primeira picada não se esquece. Mas, isso não é nada. Legal é andar descalço em pântanos com água na altura dos joelhos, procurando cobras. Tem gente que faz isso, tudo filmado.

Quanto aos macacos o enfoque é sobre o modo como vivem, relações comunitárias etc. São muitas as espécies de macacos apresentadas, cada uma delas com hábitos peculiares. Os cinegrafistas passam horas esperando para flagrar momentos de relacionamento entre macacos que variam de cuidados com a prole, disputas por fêmeas a práticas sexuais desses animais. Quanto ao sexo não sei dizer ao certo, mas parece-me que pelo menos algumas espécies de macacos são dadas a grande libertinagem, fazendo do sexo uma prática constante. Mas, nem por isso ouvi, até hoje, falar em macacos tarados.

Quem falou sobre macaco tarado não foi nenhum estudioso da vida animal e nem se referia a animais. A expressão “macaco tarado” saiu da boca de uma jornalista francesa, Tristane Banon, referindo-se ao ex-diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn. O mais interessante é que agora a história se complicou porque Anne  Mansouret, mãe de Tristane Banon, confessou ter mantido relações sexuais com Strauss-Kahn, consensualmente, embora ele tenha agido com a brutalidade de um soldado. Anne classificou Strauss-Kahn como um predador, cafajeste obsceno e praticante de luxúria sexual. As relações entre Anne e Strauss-Kahn teriam ocorrido três anos antes da tentativa de estrupo de Tristane pelo mesmo Strauss-Kahn.

Foi assim que os macacos entraram nessa história de estrupo que já toma ares de piada de mau gosto. A fama de garanhão impulsivo e incontrolável de Strauss-Kahn cresce e não é impossível que outras mulheres venham a público para acrescentar novos episódios picantes à biografia desse homem que corre o risco de vir a ser o presidente da França.

Em meio a essa enorme confusão quem lucra são advogados que cobram honorários altíssimos e a mídia que espalha no mundo notícias sobre o ex-chefão do FMI. Quanto aos macacos, embora agredidos e taxados como tarados não consta que algum advogado tenha se interessado em defendê-los ou pedido indenização por danos morais.

A morte de Salvador Allende

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A minha simpatia pelo Chile tem muito a ver com um propagandista de uma empresa farmacêutica. Visitava-me ele, em consultório, toda semana e sempre batíamos um papo. Chileno, era torcedor fanático do Colo colo, colocolino como se diz naquele belo país. Chamava-se Victor e se mandara do Chile após o fim do governo de Salvador Allende, em 1973.

Victor presenciara os primeiros dias da revolta comandada por Augusto Pinochet. Vez ou outra se referia à enormidade da violência cometida pelas forças militares naqueles dias, quando inúmeras perseguições e assassinatos cobriram de luto o povo chileno. Contava sobre a invasão da casa de um seu vizinho, tido como esquerdista e que nunca mais foi visto. Demorava-se também em detalhes sobre o toque de recolher que muitas vezes pegava de surpresa pessoas ainda a caminho de suas casas, obrigando-as a encontrar lugar seguro para passar a noite e esperar o amanhecer. Seria de fato uma temeridade ser surpreendido em plena rua após o toque de recolher. Pessoas em tal situação podiam ser recolhidas ao estádio de futebol que serviu como prisão para pessoas suspeitas, sendo que muita gente jamais voltou de lá. No mais, todo mundo sabe que naqueles dias o terror e o arbítrio foram praticados livremente no Chile: o país foi fechado para o mundo, execuções sumárias se sucediam, corpos boiavam em rios, casas eram invadidas e direitos civis simplesmente estavam suspensos por tempo indeterminado.

Salvador Allende era um socialista e marxista que se destacou pela prática do socialismo em seu país, fato que incomodou os norte-americanos na época da Guerra Fria. A ideia que Allende tentou colocar em prática chamava-se “via chilena para o socialismo”. Allende acreditava ser possível uma transição pacífica para o socialismo no país, respeitando-se as instituições chilenas. Foi assim que iniciou sua política de nacionalizações, chegando-se ao controle estatal de cerca de 60% da economia chilena. Obviamente, tal política contrariou inúmeros interesses ganhando o governo verdadeira legião de opositores. Além disso, ao imperialismo norte-americano era intolerável a existência de um país não alinhado dentro do bloco das Américas. Por essa razão os EUA, particularmente com a intervenção da CIA, passaram a influir diretamente nos negócios chilenos, afetando dramaticamente a economia do país. Por ação dos EUA o Chile sofreu um bloqueio econômico informal que inviabilizou empréstimos no exterior. Com a economia sabotada, inflação muita alta, desvalorização da moeda e insatisfação gerou-se o clima para o golpe militar que poria fim ao governo de Allende.

No dia 11 de setembro de 1973 o general Augusto Pinochet deflagrou o golpe militar com apoio dos EUA. O Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, foi cercado pelas tropas golpistas. Allende não se rendeu e sua morte tem sido objeto, ao longo dos anos, de especulações. Existem três versões: a primeira delas é a de que Salvador Allende foi assassinado pelos golpistas; outra é a de suicídio do presidente; uma terceira é a de que teria tentado se suicidar, não conseguindo e sendo morto por seus colaboradores.

Partidários dessas versões não abrem mão de suas opiniões. Isabel Allende, escritora e sobrinha do presidente, acredita no assassinato; a filha de Allende acha que o pai se suicidou.

Nesta terça-feira, uma equipe internacional de legistas divulgou laudo afirmando que o ex-presidente chileno se suicidou. Os médicos estão convictos de que o ex-presidente disparou contra si mesmo usando o fuzil AK-47 que foi dado a ele pelo líder cubano Fidel Castro.

Enfim, parece que o mistério está definitivamente solucionado. Quanto ao Victor, nunca mais o vi. Terá ele retornado ao Chile após o fim da ditadura de Augusto Pinochet? Não sei. Embora essa fosse a sua intenção, Victor casou-se com uma brasileira e parecia afinado com o modo de vida em nosso país. Tomara ainda esteja por aí, tão vivo e ágil como era, bom contador de histórias.

Paulo Borges

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1968. Recém-chegado a São Paulo eu não passava de um rapazote que, quando o dinheiro muito curto permitia, ia ao Estádio do Pacaembu para ver o Santos jogar. Considero um dos grandes privilégios da minha vida a oportunidade de ter visto Pelé jogar.

Na noite de 6 de março, uma quarta-feira de cinzas, realizou-se, no Pacaembu, um jogo entre as equipes do Santos e do Corinthians. E lá estava eu, no meio de uma multidão que lotava as gerais do estádio – hoje o mesmo espaço é conhecido como arquibancadas.

Naquela noite o Corinthians defrontava-se com um enorme desafio porque há 11 anos não vencia o Santos de Pelé, episódio esse que ficou conhecido como “tabu”. Tinham, portanto, os craques corintianos a missão quase impossível de vencer um esquadrão que terá jogado o mais fino e inspirado futebol de todos os tempos no Brasil.

Foi um jogo e tanto. O 0X0 perdurou até que um jogador recém-contratado pelo Corinthians, Paulo Borges, acertou uma bomba da intermediária, no ângulo direito do gol santista. Esse gol nunca me saiu da cabeça. Borges bateu forte com o pé esquerdo e a bola alcançou as redes do gol onde hoje fica o tobogã, lado oposto aos portões de entrada do estádio. Mas, o mais impressionante, foi o que se viu em seguida: a multidão, até então quieta e preocupada, explodiu numa alegria incontida. A gente simples das gerais realmente entrou em êxtase, jogando para cima o que tinha nas mãos. Foi assim que vi muitas marmitas atiradas para alto, utensílios de gente sofrida que, de repente, ajudavam a extravasar tensões há muito reprimidas.

O Corinthians venceu o jogo por 2X0. Na saída vi inúmeras faces molhadas por lágrimas de alegria pura, comoção geral ante um fato cuja grandeza entraria para a história do futebol. Era o fim do “tabu”.

 Paulo Borges, aquele que ergueu a massa de torcedores levando-os à alucinação, morreu sexta-feira passada, aos 66 anos de idade. Dele trago a imagem de um jovem magro e muito ágil, descendo pelo lado esquerdo do ataque corintiano até o momento mágico em que dispara o tremendo e indefensável chute que resulta em gol. É ali que o deixo, sempre com a bola, preparando-se para o chute, batendo nela com o pé esquerdo, fazendo marmitas voarem e olhos verterem lágrimas de alegria.