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Geração careta

com um comentário

- Podem me prender, podem me bater, podem até deixarem-me sem comer, mas eu não mudo de opinião…

É o que dizia a letra da música de Zé Keti, em 1964. Tempos arrojados aqueles! Saudosismo? Em primeiro lugar é preciso dizer que de vez em quando somos obrigados a apelar para o passado. Nada a ver com a idéia de que a história se repete. Nada disso. Retornamos ao passado quando o presente não nos satisfaz e temos a clara noção de retrocesso em relação a conquistas bem sedimentadas em tempos anteriores.

Então não se trata mesmo de saudosismo, nem um pouco. Na verdade é só comparação. Do que? Ora, da ocorrência e prolongamentos do triste episódio da estudante de turismo que foi agredida por ir de minissaia à faculdade.

Tem muita gente por aí dando opinião sobre isso. De repente psicólogos, educadores, sociólogos e até a turma do deixa disso pula para a ribalta, desfraldando bandeiras teóricas para explicar o fenômeno. Em cena uma jovem de minissaia perseguida pela turba com direito a filmagens que circulam no YouTube.

Pelo amor de Deus, nada de teorias. Será que não existe um aparelho que possa enviar aos anos sessenta e setenta uma dessas máquinas fotográficas digitais para que alguém de lá filme as mocinhas chegando às aulas com aqueles vestidinhos curtos que torturavam a masculinidade em flor do país de então? Pois que filmassem num dia qualquer e enviassem para nós, ao vivo e a cores, aquela festança para os olhos, tão delicada e nada desrespeitosa, tão profunda e meditativa para os rapazes que babavam nas horas certas porque era possível conviver em paz com a beleza que se espalhava pelos campus universitários.

Mas, pessoal, que retrocesso é esse? A quem interessa se uma jovem usa minissaia ou não? E que súbitos pudores ofendidos são esses que de repente brotam por aí, como se o mundo fosse uma sociedade de mórmons, fechada manifestações tão rotineiras?

Olhem, não adianta: para quem viu como as coisas eram no passado é muito difícil compreender esse caso de agressão. Fica a impressão de que algo na cabeça dos jovens de hoje involuiu, as conquistas das gerações anteriores foram recusadas por uma nova ordem de conduta e pensamento. Trocando em miúdos: eta geração careta essa que anda por aí, não?

A faculdade decidiu expulsar a aluna causadora do tumulto. Na internet podem ser lidos comentários de jovens sobre o caso, muitos deles começando com coisa do tipo “se pelo menos ela fosse bonita e gostosa”. Outros perguntam: “o que ela queria com uma roupa daquelas?”. Como se tudo isso tivesse alguma importância.

Turbas são turbas. Sabemos que as multidões agem em acordo com uma consciência coletiva não necessariamente racional. Ainda assim, tudo soa muito estranho.

Agora, se me permitem, uma pitada de saudosismo que não faz mal a ninguém: ah, que saudades das daquelas tardes fagueiras, dos grupos de estudo tão esperados, do sexo feminino tão visível e desprotegido, dos sonhos imaginosos que de vez em quando se realizavam.

O velho centro

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liceuUm editorial da “Folha de São Paulo” de ontem e artigo de Clóvis Rossi, publicado na mesma página, falam sobre a degradação do centro de São Paulo, citando o caso do Liceu Coração de Jesus hoje cercado por consumidores de crack. Clóvis Rossi afirma que um pedaço da cidade está morrendo referindo-se à decadência do Liceu que, segundo informa o editorial, de seus 3000 alunos do passado atualmente conta com apenas 288. Confessa Rossi não ser simpático ao saudosismo, mas que não há como deixar de cair uma lágrima por um ou outro desmanche que acontece na cidade.

Falar sobre o passado nem sempre representa saudosismo. O que não se pode é descambar para a pieguice, chorando por um mundo melhor que, infelizmente, está acabando.

O que também não se pode é deixar de lado o testemunho sobre o passado só porque existe a ameaça de cair no saudosismo. Pois, eu vi o Liceu funcionando a todo vapor no seu período áureo embora nunca tenha estudado lá – um primo foi aluno do Liceu. Falar sobre isso inevitavelmente me devolve outra época, povoada por pessoas que de repente se erguem de seus túmulos para refazer um pedaço da história da cidade de são Paulo.

Meu tio morava num apartamento localizado na Alameda Nothman, bem trás do Liceu. Naturalmente a cidade era outra e o centro tinha o seu viço. Para nós que morávamos no interior e vínhamos para São Paulo o Liceu era, por assim dizer, passagem obrigatória. Na antiga Estação Rodoviária, localizada perto da Estação Sorocabana, desembocavam os ônibus vindos de toda parte do país, inclusive os da região onde morávamos. Isso quer dizer que ao desembarcar na Rodoviária tínhamos que passar pelo Largo Coração de Jesus – onde fica o Liceu - para chegar ao apartamento do meu tio.

Percorri esse caminho inúmeras vezes e sou capaz de descrevê-lo em detalhes.  Andava-se por ali com segurança, pelo menos até o início da noite. Nada da bandidagem ostensiva e de consumidores de drogas. De manhã, bem cedo, a região era ocupada por grande número de estudantes que vinham para as aulas no Liceu. Parece-me vê-los agora, conversando na praça, chegando ou saindo do colégio. O mundo tinha cor, cores puras, nada da degradante sujeira que se vê por ali hoje em dia. Respirava-se um ar nem sempre puro, mas de todo modo não tão poluído como o de agora. E dali se ia serenamente a pé até o Largo do Paissandu, região chique onde ficavam os melhores cinemas, bons restaurantes e passavam bondes elétricos que corriam pela Av. São João afora.

Era o velho centro e não há como não se sentir saudades dele. Não se trata de pieguismo porque é inevitável pensar que, de algum modo, nós mantemos pelo menos um dos nossos pés lá, parte do que fomos permanece no passado, imutável e fazendo parte de uma paisagem e coreografia muito viva em nossas memórias.

Dá, sim, muita pena a nós que amamos tanto o centro da cidade vê-lo assim, em tão injustificável degradação. Dá pena ver ruas tão belas com aquelas próximas à Praça da Sé sitiadas por camelôs.

Dá muita saudade, sim. O velho centro que conhecíamos continua bem vivo, permanecendo em nossas memórias como aquele Beco da poesia de Manuel Bandeira: imóvel, suspenso no ar.