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Livro: Machado de Assis por dentro

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Ao vasto universo de estudos machadianos soma-se, agora, o livro do escritor Gilberto de Mello Kujawski que recebeu o feliz título de “Machado de Assis por dentro”. Explica-nos Kujawski que Machado de Assis abriga em si muitos “dentros” daí a escolha do título. De fato, o chamado “Bruxo do Cosme Velho” é homem e escritor de muitas facetas, algumas delas ainda não devidamente exploradas. É nesse hiato que se insere o livro de Kujawsky, avançando em territórios tidos por explorados e esgotados, mas deitando novas luzes sobre a obra de Machado de Assis.

Entretanto - é bom que se diga - não se trata de uma simples revisita ao universo machadiano. Aqui não se repetem interpretações exaustivas que, decoradas, passaram a pertencer ao domínio público. Kujawsky navega em mares revoltos com destemor, frequentemente deixando de lado conclusões já sedimentadas, por vezes confrontando-as com argumentos de fina análise. Esse é o caso, por exemplo, do chamado “enigma de Capitu” que tem apaixonado gerações de críticos e despertado calorosas discussões. Para Kujawsky todo o barulho em torno do assunto carece de sentido dado que a possível traição de Capitu prende-se ao perfil do escritor Machado de Assis, definido como um “profissional da dúvida”. Em assim sendo, Machado criou e legou à posteridade uma situação de fato insolúvel dado que nem ele mesmo seria capaz de dizer se Capitu traiu ou não. Nesse fato toda a bruxaria que se atribui ao escritor, mestre em expor as mazelas humanas como a se deliciar com as imperfeições.

Há que se destacar, também, que o livro impressiona pela análise filosófica dos textos machadianos a partir da qual Kujawsky busca aproximar-se do grande escritor. Trata-se do “por dentro” exercido sob o viés filosófico, área de domínio do crítico. Ao caracterizar Machado de Assis como um clássico em moldes apolíneos Kujawsky propõe a releitura de aspectos importantes da obra machadiana ligados ao humor, o ceticismo, o ateísmo ou o agnosticismo, o pessimismo e assim por diante. A partir daí nada escapa à análise do crítico para quem Machado de Assis recebeu da cultura grega dois legados: o humanismo e a supremacia da razão, fatores esses determinantes da obra que escreveu.

Demais forçoso é dizer que o texto justamente não nos surpreende dada a conhecida cultura filosófica de Kujawski, representante do pensamento de Ortega y Gasset entre nós. Munido de ferramentaria intelectual extremamente vigorosa Kujawsky invade, sem cerimônia, o espaço interno dessa alma multiforme que foi Machado de Assis, condição que abre muitas possibilidades de análise. É assim, por exemplo, que nos é apresentado um Machado de Assis vivendo numa réplica da sociedade vitoriana que Pedro II procurou instalar no Rio de Janeiro. Nesse contexto Machado de Assis é interpretado como um caçador das transgressões que minavam a falsa moral vigente na Corte. Para Kujawski Machado seria a um só tempo crítico e cúmplice da situação reinante, jamais algoz ou inquisidor. Movia-o a formação humanista que não permitia a ele compactuar com a farsa e a mentira. Escreve Kujawski:

“Servindo-se da lâmina cortante da ironia, Machado descobria e analisava, metodicamente, os fundos falsos, a comédia da hipocrisia, o teatro do farisaísmo que o cercava por todos os lados”.

“Machado de Assis por dentro” é publicação da Editora Migalhas e apresenta-se constituído por dez ensaios, cada um deles voltado a aspectos diferentes da obra machadiana, mas tendo como elo de ligação o perfil clássico do Bruxo.  São ensaios saborosos, profundos e que fazem pensar. Acompanham-se da erudição do seu Autor sem que ela se imponha como demonstração de conhecimento ou arrogância: aqui a erudição não passa de complemento necessário à elucidação do enigma, ferramenta de que faz o uso o escritor para aproximar-se do totem e dele extrair a essência.

“Machado de Assis por dentro” é excelente livro, obra de valor que tem profundidade de análises, novidade de pontos de vista e fecunda participação de conhecimentos filosóficos. Livro de quem “sabe Machado” e por ele foi irremediavelmente encantado, legando-nos textos deliciosos de ler, que nos fazem refletir.

“Verão” de J. M. Coetzee

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“Verão”, terceiro livro da trilogia biográfica de J. M. Coetzee é um livro de um escritor sobre si mesmo. À primeira vista a afirmação anterior parece redundante dado que não existe outro significado para uma autobiografia. Entretanto, não se tem, em “Verão”, uma análise da obra do escritor, desenvolvendo-se a biografia em torno de um período da vida dele, por volta de 1970, quando ainda não se tornara famoso.

A sensação provocada pelo livro de Coetzee é a de que, a seu modo, o escritor se explica, desnudando-se o homem que está por trás do grande escritor, se ficcionalmente ou não isso realmente não importa. O que vale é a dicotomia entre o homem que publica e se torna famoso e alguém de quem não se espera quase nada tal a sua inaptidão geral para todas as coisas. É por ter-se tornado importante demais - Coetzee recebeu o Prêmio Nobel em 2003 – e pessoalmente não se ajustar à figura pública que talvez devesse ser que o escritor digladia-se com suas memórias nas quais revela-se sempre inapto para relacionamentos, frio, confuso, admitindo que chega  a ser visto como arrogante por outras pessoas.

Em “Verão” chama atenção a técnica narrativa utilizada. Os textos, aparentemente descolados uns dos outros, ligam-se num denominador comum que é a personalidade do escritor que não se poupa através das vozes de pessoas que o conheceram. A essas pessoas – cinco no todo – recorre Vincent, o biógrafo, entrevistando-as e buscando em seus discursos histórias e impressões sobre o escritor. São vozes nem sempre coincidentes que, entretanto, se somam quando o assunto é dirigido para aspectos da personalidade do escritor sempre tomado com um ser de espécie invulgar, utópico, confuso, inadaptado e até mesmo inesperado em seu modo de agir. No mais, o livro começa e termina com anotações de Coetzee feitas na época de interesse do biógrafo. Tais anotações são textos breves seguidos de sugestões para serem desenvolvidas posteriormente.

Ao tempo da realização da biografia Coetzee já está morto fato que reduz o espaço investigativo de Vincent a entrevistas e consulta de anotações deixadas pelo escritor. Dentro desse contexto ressaltam-se as relações de Coetzee com sua família, em especial com seu pai, e, principalmente com a África do Sul na época do apartheid. Coetzee é um africânder – descendente de calvinistas que se estabeleceram na África do Sul - e a ele se aplica aquilo que entre nós Sergio Buarque de Holanda caracterizou com “um desterrado em sua própria terra”. De fato, é muita clara a consciência de Coetzee de que tinha um direito abstrato de estar em sua própria terra natal porque a presença dele baseava-se num crime, a conquista colonial. Esse modo de ver colocava o escritor numa posição de transitoriedade em seu país. Embora profundamente consciente da situação social – a biografia escrita por Vincent é um mergulho no contexto social do apartheid e suas terríveis consequências – Coetzee em nenhum momento se mostra engajado em qualquer das vertentes conflitantes. Para ele, segundo uma das entrevistadas, a política é sintoma de nosso estado decaído, daí não interessar a libertação nacional da África do Sul.

Mas tudo isso é muito pouco em relação a uma obra que convida à reflexão. No texto alinhavado por Coetzee pressente-se a todo instante o perfil do grande escritor, um dos maiores de nosso tempo. Além disso, pode-se dizer que “Verão” fila-se àquela que parece ser a tendência dominante do romance atual, qual seja a do enredo autobiográfico. No caso de  “Verão” esse modo de romancear se faz com despojamento e simplicidade linguística que em nenhum momento confunde-se com autocomiseração.

“Verão” de J.M. Coetzee é uma publicação Companhia das Letras e pode ser encontrado nas livrarias.

Macunaima

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Macunaima faz parte daquela terrível lista de livros condenados a serem lidos por obrigação. O livro é indicado em escolas e aparece como leitura obrigatória em vestibulares.

Li Macunaima há muito tempo. Depois assisti ao filme em que o Grande Otelo fazia o papel do “herói sem nenhum caráter”. Confesso que me perdi um pouco no desconjuntado dos textos do Mário de Andrade, mas ainda trago comigo o prazer de uma leitura que me fez rir e entrever, nas aventuras tantas vezes absurdas do herói, o perfil de toda uma gente oriunda da mestiçagem e que se entendeu com os trópicos de modo bastante peculiar.

Não pretendo acrescentar uma só linha ao que já foi escrito sobre Macunaíma, livro de resto esmiuçado por críticos de várias gerações. Críticas à miscigenação, indianismo moderno, ausência de cronologia, surrealismo eivado de fantasias e lendas, oposição ao romantismo, desvinculação do português do Brasil daquele praticado em Portugal, aspectos folclóricos: o leitor encontrará textos sobre tudo isso e muito mais em inúmeras obras críticas sobre o livro de Mário de Andrade.

Como se sabe, as metodologias críticas empregadas ressentem-se de certo modismo crítico inerente às épocas em que são utilizadas. Não é o caso de analisar aqui abordagens possíveis para a análise de obras literárias, partindo-se do ideário crítico do romantismo, defendido pelo grupo fluminense que tinha por mentor Gonçalves de Magalhães. A esse sucederam outros perfis críticos como a crítica naturalista, impressionista, nova crítica…

A posteridade acrescenta novos olhares a obras que mereceram atenção crítica no momento de suas publicações. Entretanto, não deixa e ser muito interessante ouvir a voz dos chamados críticos de plantão que se debruçam sobre textos ainda frescos e abertos a toda sorte de novas interpretações. No caso de Macunaíma a crítica de momento ganha relevo porque retrata a transição entre o romantismo/naturalismo e o movimento modernista iniciado em 1922. O livro de Mário de Andrade foi publicado em 1928 caindo, por assim dizer, num meio ainda impregnado pelo romantismo. Teve ele, portanto, o condão da novidade novidadeira o que nos leva a imaginar o porte de estranheza do texto de Mário sobre público e críticos habituados a textos, digamos mais bem comportados.

Tenho em mãos um texto crítico, sobre Macunaima, de autoria de João Ribeiro, publicado no Jornal do Brasil, em 31/10/1928. Nesse texto, escrito no calor da hora, Ribeiro define o livro como “um conglomerado de coisas incongruentes no qual o autor utilizou materiais conhecidos das nossas tradições, e se não conseguiu dar harmonia ao conjunto, em todo caso concertou o mais que pode ideias e noções objecionáveis e contraditórias em si mesmas”. Acrescenta que Mário de Andrade é capaz de asneiras, mas asneiras respeitáveis, de talento, daí a delícia de ler um livro cuja graça transpira em todas as paginas e nos faz rir. Depois termina, dizendo:

Para nós é evidente que o autor, ainda contra a sua própria crítica, quis-nos pintar o homem brasileiro, indolente, mas astuto (em poucas coisas, na política por exemplo), sem caráter definido, perturbado pela heterogeneidade de seus elementos formativos, ignorante mas audaz, pobre mas fanfarrão de liberalidades, presumido como a mosca do coche, vassalo arrotando soberania…

Macunaima inseria-se, como obras anteriores a ele, num universo de cansaço intelectual e desgaste abusivo do romantismo. Rebeldia contra o passado, mas fase de instabilidade cujo futuro se constituía numa indagação para os contemporâneos do movimento modernista.

Do que veio depois, temos notícias nós, os pósteros.

Elizabeth Hanly Danforth

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Acordei ainda há pouco, é madrugada. Sua presença tímida e, contudo, vigorosa, preenche o espaço de minha casa. Não há como fugir de você, agora que o dia que há de vir se prepara para uma nova manhã. Ouço o canto dos primeiros pássaros, aqueles que gotejam pios regularmente, avisando que o mundo seguirá em frente, como antes, como depois.

Lembra-se de quando combinamos que o primeiro a morrer viria avisar ao outro sobre a existência da eternidade? Você não veio… Noites a fio esperei por um sinal, um simples sinal, talvez um aviso que revelasse a sua presença. Esquivou-se, esqueceu o combinado ou a eternidade não existe?

Lembra-se dos poemas que lemos juntos, cada verso, cada estrofe, sob a funda sonoridade da sua voz? Daquela madrugada em que nos perdemos na Ode Marítima, horas de mares bravios, ondas tempestuosas?

Tenho em minhas mãos um dos seus livros de poesias. É uma coletânea na qual Bandeira, Drummond, Oswald, João Cabral, o Nava e tantos outros esperam.

Abro o livro. Ao acaso caio numa página em que há um recorte de jornal. De quando? Em que momento você colheu esta pérola e recortou-a? Nenhuma referência. Nada.

É uma poesia de Elizabeth Hanly Danforth:

Sangue marítimo

Dei-te o meu coração, por causa de navios:

porque os teus ancestrais e os meus foram do mar.

Quando era certo serem “os homens, aço, as naves, lenho”,

E porque partilhavas dessa maneira austera de pensar.

 

Porque teus olhos se obscureciam, vendo a sombra

De uma gaivota cair, com seus movimentos ligeiros;

Porque notavas o sino de uma escuna que passava,

E exclamavas: “Gosto das mãos dos marinheiros!”

 

Quando outros homens se entretêm com livros e lareiras

E tremem, com as tempestades, e se aconchegam, friorentos,

Tu, pelo velho rumo de teus antepassados

Vieste rugindo pelo mar, entregue aos ventos.

 

Por esse encanto, que os homens da terra jamais conhecerão,

Por causa de navios, - dei-te o meu coração.

A tradução é de Cecília Meireles. Penso que talvez você tenha guardado essa jóia, escondida entre as páginas de um velho livro, para que eu a encontrasse nesta madrugada, mais de trinta anos depois. Você conhecia, melhor que ninguém, o peso das horas de desespero: cuidou para que eu não me perdesse justamente nesta noite, adivinhada de algum modo por você, pela sua enorme sensibilidade.

OBS: Elizabeth Hanly Danforth viveu durante 30 anos no Brasil onde se tornou conhecida por ser embaixatriz e poeta. Exerceu atividades no país, entre elas o de diretora do Institution Brasil-Estados Unidos e patrona da American Society. O livro In Rio on the Ouvidor and Other Poems About Brasil, de autoria da poetisa, é encontrado em sebos.

Dia de caça

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- Não sei se aquele a quem chamavam Geraldo era certo da bola. A mim me parece que não. Esses tempos todo tenho refletido sobre o caso e sempre chego à mesma conclusão: ele não era certo da bola, não.

A velha diz isso e pega o fósforo para acender o cigarro. No rosto enrugado destacam-se dois olhinhos vívidos e inteligentes. Ela me olha com a cautela necessária diante de estranhos, embora eu tenha vindo recomendado. Talvez simpatize comigo ou simplesmente veja em mim alguém que seja a ela útil e confiável. Demora-se a acender o cigarro. Tenho vontade de puxar conversa, perguntar sobre o número de cigarros que ela fuma por dia, mas me calo. Depois de algum tempo, a velha traga profundamente e solta uma enorme mancha de fumaça que esconde parcialmente o seu rosto. Depois continua:

- Aquele Geraldo era de fato um homem estranho. Alto e loiro, não chegava a ser bonito, mas de todo modo atraente. O senhor veja que para alguém assim, fogoso e na força do homem, uma mulher se faz necessária, sempre. E não consta que até os trinta anos de idade ele tivesse parte com nenhuma mulher. Veja que isso ele próprio proclamava, dizendo que reservava o melhor de si para quando encontrasse aquela a quem dedicaria todo o seu amor.

- Encontrou?

- Ah, sim, demorou, mas encontrou. Era uma bela moça, mais nova do que ele, que veio passar aqui umas férias. Apaixonaram-se e ele reformou a casa do sítio onde morava para que vivessem ali após o casamento. Não nego que formavam um belo casal, muito feliz. Foi assim até que se casaram e partiram para a lua-de-mel. Que, ao que se sabe, não chegou a acontecer.

- Como assim?

- Pois, dois dias depois do casamento ele reapareceu aqui sozinho. Embora a curiosidade geral sobre o fato, ninguém ousou pergunta a ele nada. A mulher com quem ele tinha se casado nunca mais se viu. Ele se tornou taciturno, quieto demais e triste. Mais tarde se soube que ele deixou a mulher por descobrir que ela não era virgem, isso na noite de núpcias. A virgindade fazia parte do código dele, sabe? Uma coisa assim pode não importar a muita gente, mas era regra para ele que havia se conservado para o dia em que se casasse.

A velha apagou o cigarro no cinzeiro, tossiu e me encarou como se olhasse através de mim e recontasse a si mesma uma história que não saia da sua cabeça.

- Acho que foi um ano depois disso que começou a amizade do Geraldo com o meu filho. Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. O Geraldo vinha muito aqui em casa e parecia renovado, alegre como nunca fora. Meu filho, que mais ou menos regulava com a idade dele, prezava-o muito. E assim foi durante muito tempo, até que aconteceu o que o senhor certamente já sabe.

- Sim?

- Na verdade nunca se soube como as coisas se passaram. Certo dia saíram os dois, como de vez em quando faziam, para caçar. Foi lá que o Geraldo matou o meu filho e se suicidou.

Após dizer isso, a velha se cala. O rosto enrugado se contorce num espasmo de dor. Obviamente, ela não aceita as versões que correm sobre o fato e busca explicação razoável para a perda do filho. De minha parte dou-me por satisfeito. Resta-me fazer algumas anotações sobre o caso e nada mais.

Não há mais o que dizer. Despeço-me da velha e saio em direção ao portão. É uma manhã clara e de céu muito azul. No fundo do quintal um canário canta e o som me parece o de uma marcha fúnebre. Quando chego ao portão, ouço a voz da velha:

- Delegado, o senhor vai descobrir o que de fato aconteceu e me dar uma explicação?

Não sei bem o que responder. Geraldo e o filho dela estão mortos, o caso da tragédia ocorrida num dia de caça está encerrado.

Escrito por Ayrton Marcondes

16 outubro, 2010 às 9:47 am

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Atrás da bola

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São dois gols, ambos tendo por traves pares de chinelos velhos. Entre um e outro poucos metros, as laterais do campo duas paredes acinzentadas.

Isso mesmo, o campo de futebol é um corredor, parte externa do apartamento onde mora o zelador, fundo do prédio, último andar. O jogador dos dois times é um menino que corre de um lado para outro com uma bola de borracha nos pés. No vai-e-vem, entre um gol e outro, ora ele usa a camisa de um time, ora de outro. Controlando a bola de repente ele é o craque de um dos times, depois do outro, dizendo nomes de jogadores que repete em voz alta, arfando o peito, correndo para fazer gols e mudar o placar.

Agora é o time da porta da cozinha que desce em direção ao gol do time da janela do quarto e faz um golaço; na volta o time da janela desconta, coloca a bola entre as traves do gol da porta da cozinha e o jogo está empatado. O menino corre de um lado para outro fazendo gols que soma, um a um. Até que chega ao 7×7 e se distrai com o cachorro que atravessa o campo, não sem protestos da torcida e dos jogadores. O menino, nesse momento juiz e locutor, expulsa o animalzinho do campo e prende-o enquanto irradia o fato em voz alta.

Os jogadores esperam o reinício da partida e voltam a correr. Os gols se sucedem, gol aqui, gol lá, num jogo que parece estar fadado a ficar sempre empatado. A coisa toda continua até que uma voz de mulher ecoa no estádio: é a mãe do menino que o chama para o jantar. É hora de acabar o jogo, justamente no momento em que o juiz marca um pênalti contra o time da porta da cozinha.

São 47 minutos do segundo tempo e o pênalti vai decidir o campeonato. O menino, jogador do time da janela do quarto, coloca a bola na marca de cal e olha para o gol à sua frente. No meio dos chinelos que demarcam o gol está um goleiro enorme que usa roupa preta e luvas.  O menino não se impressiona com ele. Vai para a bola, bate forte e é gol. Segue-se o ruído da torcida vibrando nas arquibancadas, o abraço dos jogadores e o apito final que dá a vitória e o campeonato ao time da janela.

Mas, não há tempo para erguer a taça. A mãe vem ralhar com o menino e, em um minuto, ele está sentado diante do prato de comida, transpirando muito, mas feliz pela vitória do time da janela do seu quarto sobre o da porta da cozinha cujo técnico é ela, a mãe dele.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 setembro, 2010 às 11:19 am

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Rubem Braga

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Quando nada ocorre para escrever e o pensamento parece embotado o melhor é correr os olhos nos títulos de livros enfileirados na estante. Pega-se um ou outro, folheia-se, leem-se alguns parágrafos e, sem que se perceba, de repente o mundo é outro, entra-se no universo acolhedor da literatura.

Lugar seguro esse, não tão calmo, mas seguro. Aqui uma pitada de Cervantes, ali um poema de Borges que vale reler mil vezes. Mais à frente um conto de Cortázar, isso sem esquecer Shakespeare que envia Macbeth, espada em riste e sobre o seu cavalo, entrando pela janela. Há também Faulkner e Hemingway, as poesias de Drummond, a capa com o nome de Pirandello e a Morte Rubra que de repente é lançada diretamente das páginas de um conto de Poe.

Circulando entre livros, apartado da realidade para sobreviver dentro da ficção topa-se com Rubem Braga. O livro é velho, alguém riscou a capa, provavelmente foi comprado em algum sebo. Trata-se de uma coletânea com os melhores contos de Rubem Braga, assim os consideraram aqueles que os colheram em outros livros do cronista e os puseram nesse, preparando-o para esta manhã obtusa em que se busca alguma coisa sem saber bem o quê.

Abre-se o livro numa página ao acaso, aí está o tal casal no ponto de ônibus, o casal da “vida estreita”, noutra página o menino que faz perguntas ao vendedor de passarinhos, mais à frente o caso do homem que passou seis dias trancado com a amada, sem atender telefone. Vai-se passando de uma crônica à outra, absorto, esquecido da hora de sair para o trabalho, pensando se afinal a realidade não passa de uma invenção maldosa de alguém que tinha muita raiva dos homens. Isso dura até que dois carros batem na esquina, o barulho interrompe a leitura justamente quando um narrador encontra um par de luvas femininas atrás de uma pilha de livros. É quando, muito irritado, você sai à janela e começa a gritar, dizendo que as pessoas não devem bater carros, é preciso ler Rubem Braga e coisas assim.

Não demora a que você repare que ninguém o ouve. Então você volta aos livros, desconfiado de que talvez você não seja real e tenha saído das páginas de uma crônica do Rubem, você personagem dele, feito para esta manhã cinza e fria, para o enredo em que um cara não tinha o que escrever e se perdeu olhando para os nomes dos livros da sua pequena biblioteca.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 agosto, 2010 às 12:02 pm

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O Sabor da Vida

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O instigante título “O Sabor da Vida” foi escolhido pelo escritor Gilberto de Mello Kujawski para enfeixar em livro uma coletânea de ensaios realmente saborosos. O livro é datado de 1999 razão pela qual, vez ou outra, conduz o leitor a reflexões sobre acontecimentos circunstanciais daquele ano. Mas, isso pouco importa porque o que pulsa nos ensaios de Kujawski é uma revisita à inteligência, expressa em considerações sobre temas variados e sempre interessantes. 

No ensaio que abre a coletânea, cujo título é “Ensaio sobre o Ensaio”, Kujawski diz a que vem sua escrita. Definindo o ensaio e distinguindo-o de outras formas de literatura, o autor nos recorda de que a tradição ensaística, tão comum no país até a década de 60, praticamente deixou de existir, abatido que foi pela especialização intelectual e científica. Explica-nos Kujawski que o ensaio sintoniza-se com a livre expansão da inteligência e nutre-se de ideias gerais as quais, por natureza, distanciam-se de especializações e engajamentos doutrinários.

É a partir dessas premissas que Kujawski desenvolve sua ensaística, focando temas hoje infelizmente relegados a segundo plano, dada a condução apressada e literalmente engajada da crítica que tem sido praticada no país. O que se observa em cada página é a mestria do autor a dividir com o leitor o sabor do texto que se insinua em considerações que nos convidam à reflexão sobre temas propostos e sempre abordados com grande lucidez.

Pode-se dizer que há um pouco de tudo em “O Sabor da Vida”. Há ensaios em que Kujawski se detém para esclarecer temas com frequência confundidos como a fundamental diferença entre erudição e cultura; outros trazem de volta ao leitor personalidades como Miguel de Unamuno, Fernando Pessoa e Sartre, destacando-se nessas leituras o vasto conhecimento do autor sobre filosofia e literatura; há o impressionante ensaio “A vida das imagens” no qual o autor recorre a Roland Barthes e Emile Zola para projetar luzes poéticas sobre o significado e função da fotografia; ao lado de incursões sobre o sempre atual maio de 68 figuram textos de cunho político, destacando-se a globalização e o poder supranacional; noutro ensaio a definição de intelectual é estampada, enfatizando-se ao algum ridículo da condição as benesses da inteligência e do talento.

Como um grande rio cujas águas são engrossadas por afluentes poderosos, os ensaios de Kujawski encorpam-se para desaguar num último que justamente é o que nos fala sobre o sabor da vida. Nele o leitor encontra-se com um final feliz no qual o autor serve-se dos sentidos do paladar e olfato para relacionar o interesse pela boa mesa, a sensibilidade enfim, com o encanto da vida e a intimidade com o saber. A esse ponto não esconde Kujawski o seu amor pelas pequenas coisas que contribuem para dar sentido à vida, fatores que aguçam os sentidos e conduzem o homem à plenitude da condição de ser pensante.

Essas considerações, ligeiras demais para retratar obra de conteúdo variado, interessante e profundo, visam convidar os leitores ao livro de Kujawski. Vale dizer que, infelizmente, o movimento editorial brasileiro é pouco atento a obras desse gênero, daí a pouca divulgação de trabalhos como este de Kujawski. É pena. “O sabor da Vida” não é apenas um livro que se lê com prazer: suas páginas são um convite ao exercício da inteligência, têm caráter informativo e, em muitos momentos, mostram-se didáticas ao trazer à tona conceitos com frequência confundidos.

Obra para ser lida e refletida, assim é “O sabor da Vida”.

Machado de Assis: o homem e a obra

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O tema é recorrente e atravessa décadas, sugerindo que jamais poderá ser devidamente elucidado: como explicar a obra machadiana em confronto com o homem Machado de Assis?

As biografias de Machado tendem a vê-lo sob dois ângulos: o primeiro se atém a vida do escritor propriamente dita, lida através de depoimentos de seus contemporâneos e fatos conhecidos sobre a sua existência; o segundo é o que alia às características anteriores a trajetória das personagens dos romances de Machado de Assis. No primeiro destaca-se a obra de Mário de Alencar, filho do escritor José de Alencar, que privou do convívio de Machado no final de sua vida. O último Machado, viúvo e solitário, teria abandonado, pelo menos em parte, a sua notória reclusão e deixado transparecer a Mário de Alencar o aspecto humano que se escondia sob a face pública do escritor. No segundo evidencia-se o esforço dos biógrafos em suprir lacunas de períodos desconhecidos da vida do escritor com passagens da vida de suas personagens.

Em ensaio, de 1954, sobre Dostoievski, Olívio Montenegro lembra que, para André Gide, “raramente um autor de romance chega a fundir-se com tanta naturalidade nos seus personagens como Dostoievski”. Continua Montenegro dizendo que se constitui em grande problema para a crítica indagar se o homem é inseparável do artista, ou pelo contrário, se a arte esconde o homem. Sobre esse assunto afirma Montenegro:

Não se acerta, por exemplo, em concordar o acento divinamente lírico, a doçura de um tão suave misticismo da poesia de Verlaine, da sua poesia inefável de “Sagesse” com a desordem que se via no homem com a sua concupiscência e seus excessos de boêmio; da mesma maneira que não se identifica o sólido senso pedagógico nem os pensamentos desinteressados e vivos que se encontram no “Emílio” de Rousseau, com o selvagem egoísmo do homem que manda para a roda todos os filhos; nem por outro lado se encontra uma fórmula para conciliar em Bacon o cortesão e o filósofo, ou em Rafael o grande libertino e o pintor de Madonas.

Que me perdoem pela lembrança, mas talvez os mais jovens não tenham notícia sobre a roda, lugar onde eram colocados os nascidos indesejáveis sem que os pais fossem identificados. Essas crianças, acolhidas por entidades beneficentes, eram adotadas por famílias que desconheciam a origem delas. Vale citar que o fato de Rousseau enviar os filhos para a roda, citado por Montenegro, me era de todo desconhecido.

Não será este o espaço adequado para aprofundamento da discussão sobre o perfil de Machado de Assis relacionando-o à obra que nos deixou. O homem Machado legou à posteridade, talvez propositadamente, um perfil enigmático de si mesmo. Em vida ele não passou de um funcionário público bem comportado cuja rotina consistia em ir de casa ao trabalho com passagens pela Livraria Garnier, na Rua do Ouvidor, ao fim do expediente. Na livraria reunia-se com alguns amigos e mais ouvia que falava, reservando-se o direito de sair quando o tema eram assuntos picantes, política etc. Alguns biógrafos insistem em caracterizá-lo como mestiço e epiléptico vendo nessa condição êmulos para a obra que ele escreveu. Outros não o perdoam pelo aspecto nada pictórico de sua obra, dado que não se empenhou em incluir a natureza do país em seus romances. Todos concordam no fato de que Machado era um sujeito retraído, mas nem por isso deixando de ser gregário: de seus esforços nasceu a Academia Brasileira de Letras à qual presidiu.

O mulato pobre que circulava pelas ruas do Rio de Janeiro em pleno império regido por Pedro II tornou-se um grande intelectual e deixou obra ímpar, ainda hoje insuperável. Se não se aventurou pessoalmente, o fez através de suas personagens que passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros como se fossem seres reais. Bráz Cubas, Capitu, Quincas Borba e tantos outros se incorporaram à cultura do país e mesmo hoje são muito lembrados e citados pelas situações romanceadas em que se envolveram, situações essas algo inesperadas quando se pensa na trajetória do homem que as forjou.

Retomando a dúvida de Olívio Montenegro, parece-nos que, em relação a Machado de Assis, a arte escondeu o homem. Mas, que isso não seja tomado em definitivo: Machado de Assis é sempre imprevisível e, de repente, numa de suas crônicas, despretensiosa, poderemos encontrar um desmentido a essa conclusão.

As personagens de ficção

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Ao longo de nossas vidas convivemos com seres reais e, em geral, damos pouca importância aos fictícios. A torturante rotina dos dias atuais concorre para que não se dê grande importância ao mundo imaginário. Fica, portanto, a ficção como uma espécie de muleta à qual recorremos para amenizar, pelo menos temporariamente, as questões cotidianas.  Tal atitude seguramente afeta o nível de prazer que a boa ficção pode proporcionar. Vá lá que a ficção funcione como refúgio, mas, nem de leve, será essa a sua principal função.

Pode ser que as pessoas não se deem conta, mas a ficção funciona como mundo paralelo à realidade. Comprova essa afirmação a influência exercida pelas personagens de ficção sobre quem com elas faz contato. Pensando bem, ao longo dos anos, travamos contato com inúmeras pessoas que vivem apenas nas páginas dos livros. Pode ser que também olvidemos o fato, mas muitas delas exerceram e exercem influência sobre o nosso modo de ser e pensar, muitas vezes de forma mais expressiva que pessoas de carne e osso a quem conhecemos. Talvez esse fato se explique porque nas páginas dos livros chegamos a conhecer a alma das personagens mais profundamente que a de muitas pessoas que nos cercam e que, em geral, não se revelam por inteiro. Quem duvida que pense em gente como Raskolnikof e Lord Jim. As penas de Dostoievski e Conrad deram-nos essas personagens por inteiro, de modo que se tornaram familiares a nós. O duplo que existe em Lord Jim é universal, mais real do que muitos seres reais de nosso convívio.

As pessoas mais jovens talvez não imaginem mas há não muito tempo a televisão não era nem de longe o que é hoje. Na verdade, há cerca de cinco ou seis décadas, a televisão brasileira engatinhava. Assistir a um canal de televisão em cidades distantes da capital era quase um milagre. Antenas colocadas em locais elevados, fios longos ligando antenas a aparelhos de televisão e outros recursos inimagináveis eram usados para recepção de imagens sem cor, por vezes borradas, muitas vezes irreconhecíveis.

Vai daí que para o lazer contribuíam não as novelas de hoje mas as tramas escritas em livros. Foi assim que, mal saído da infância, mergulhei no romantismo, lendo, por exemplo, a obra de José de Alencar. Jamais sairão da minha memória os malfeitos do vilão Loredano que apoquentava, através de mil ardis, a vida dos heróis Peri e Ceci.

Estou dizendo que mais de quarenta anos depois, Loredano continua vivo para mim, inesquecível. Eu o conheço bem, sei do ele que é capaz. Parece-me que ele está apenas preso nas páginas de “O Guarni” e que alguém deve cuidar para não deixá-lo sair de lá, tal o perigo que oferece. Loredano é, para mim, mais integral que muitas pessoas a quem conheço ou conheci e nisso consiste toda a força com que a literatura de ficção nos subjuga.

Os muitos anos de leitura nos tornam próximos de personagens de ficção, de mundos imaginários que não se desfazem. Vida afora trava-se contato com personagens de ficção: como acontece com os seres reais, a muitos deles deixamos no caminho, esquecendo-nos deles. Outros, por assim dizer, grudam em nossas memórias e os levamos conosco como parte integrante de nossa cultura e sentido de humanidade. O fato é que se torna impossível olvidá-los, condição que confere a eles mais realidade que a atribuída a muitos seres reais.

Não adianta discutir e nenhum argumento, por mais sensato que possa ser, me demoverá da absoluta certeza de que conheci – e muito bem – pessoas como o Cândido, de Voltaire, o Bráz Cubas, de Machado de Assis, o Macbeth, de Shakespare, o Joseph K, de Kafka, e muitos outros. Essas pessoas fizeram e fazem parte do meu mundo, dando à minha vida um sentido de grandeza que ultrapassa a condição da realidade em que vivo.