2009 setembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para setembro, 2009

Human Nature

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28 de julho de 1985, Theatre St. Denis, Montreal, Canadá. Miles Davis começa a tocar no seu trompete a música Human Nature, de Michael Jackson. É acompanhado por Bob Berg no saxofone, Robert Irving III no sintetizador, John Scofield na guitarra elétrica, Daryl Jones no baixo elétrico, Steve Thornton na percussão e Vincent Wilburn na bateria.

Miles é considerado um dos mais influentes músicos do século XX, tendo passado pelo bebop, pelo cool jazz, pelo jazz modal e pelo fusion. Nos últimos tempos tem avançado, solitariamente, para uma combinação entre o jazz, o funk e a música pop o que tem valido a ele críticas por não estar tocando o verdadeiro jazz. Mas ele está no auge de sua popularidade e buscando novos caminhos para chegar ao seu público.

Miles tem agora 59 anos de idade e está acima de tudo isso. Na verdade o grande Miles alcançou o invejável pórtico no qual pode tocar o que quiser.  É dentro dessa perspectiva que inicia os seus solos de Human Nature. A partir daí o que se segue é impressionante. Lá está Miles Davis com seus óculos escuros, vestido com uma estranha e bela roupa negra que apresenta símbolos desenhados. Ela anda no palco entre músicos e instrumentos, curvado sobre o seu trompete vermelho que emite notas profundas e maravilhosas.

Miles está no palco e, de repente parece não estar. Na medida em que se entrega à melodia ele caminha dando a impressão de que atravessa regiões desconhecidas, avançando cada vez mais no insólito e levando-nos com ele. Homem e trompete tornam-se um só corpo que vibra em notas musicais apaixonantes. A essa altura Miles prendeu-nos com toda a sua magia e nada pode livrar-nos da imantação a que estamos submetidos, exceto o momento em que a alegoria se desfaz e Miles para de tocar.

Não é um bem um homem aquele que toca no palco do Theatre St. Denis, em 1985. Há no músico que vemos e ouvimos uma parceria com a divindade, o afastamento pouco nostálgico da condição humana, a transcendência do semi-Deus que governa os sentimentos e nos encanta com a sua música.

Já não importa mesmo o que Miles toque. Ele segura o trompete como um gato retém a sua presa, com movimentos delicados e precisos. Seus dedos se movem sobre os botões como gatilhos que disparam sobre nós sonoridades inesperadas.

Miles Davis morreu em 1991, mas continua tocando, revelando-nos muito sobre a as possibilidades da natureza humana enquanto sopra em seu trompete as notas da música de Michael Jackson.

PS: impressões recolhidas ao assistir a apresentação de Miles Davis, incluída no DVD “Miles – Live in Montreal”.

A Sagração da Primavera

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A primavera vem aí. Chega na próxima terça-feira e põe fim ao inverno que já vai tarde. Não que eu não goste do inverno: é a minha estação favorita, pois o frio convida à interiorização e reflexão. As rajadas de ar frio arremessadas às praias dos estados do sul trazem mensagens do pólo e, com um pouco de imaginação, pode-se até ouvir os diálogos dos pinguins. Entretanto, nos últimos anos toda a beleza dos invernos do sul tem sido mascarada por fenômenos climáticos não observados no passado, pelo menos com tal intensidade. O fato é que passamos a falar a linguagem dos grandes ventos, tufões e tornados, das casas destelhadas, das avalanches, dos desabrigados, dos soterrados, das mortes provocadas por fenômenos  atmosféricos impossíveis de serem controlados. Por trás disso tudo as grandes mudanças ambientais que afetam a temperatura, o ciclos dos ventos e das chuvas, as correntes marítimas e toda sorte de fatores que resultam em desequilíbrio dos ecossistemas naturais.

Mas, eis que chega a primavera e, com ela, a expectativa de tempos de bonança. Trata-se da estação das flores e da grande atividade dos agentes polinizadores que sugerem aos homens trocas de favores e compreensão.  A primavera também nos devolve o compositor russo Igor Stravinsky que a revista Time considerou uma das 100 pessoas mais influentes do século XX. Da vasta obra de Stravinsky destacam-se as peças que fomentaram o movimento modernista, justamente as três que a ele foram encomendadas pelo empresário Sergei Diaghilev para serem representadas pelos Ballets Russes, em Paris. Uma delas é “A Sagração da Primavera (Le sacre du printemps)”, cuja estréia, em 1913, provocou um verdadeiro motim e mudou os rumos das obras de vários compositores daí por diante. Foi “A Sagração da Primavera” que caracterizou Stravinsky  como revolucionário musical.

Ícone da música erudita e marco inicial do modernismo, “A Sagração da Primavera” é um balé em dois atos no qual se conta a história de uma jovem que deve ser imolada ao Deus da Primavera para que a sua tribo tenha boas colheitas. A genialidade de Stravinsky impõe um sacrifício para que o cotidiano de uma comunidade tribal seja bem sucedido e me leva a pensar no que poderíamos fazer para transformar o próximo dia 23 de setembro, início da primavera, num marco de mudanças nesse vasto mundo em que reina tanta insensatez.

 A idéia é, obviamente, absurda: os homens não são atores e o mundo não é um grande palco onde a tragédia humana seja exibida em dois atos ao ritmo de um balé. Mais que isso, falta-nos um grande compositor. Mesmo que deixemos Deus de parte dessa conversa, a verdade é que o mundo anda carente de pelo menos um grande regente capaz de aliar a dominação econômica dos países e das grandes corporações ao bem-estar das populações.

Por essas razões a primavera chega, mais uma vez, a um mundo conturbado e que está a exigir, como na peça de Stravinsky, um enorme sacrifício para que as coisas sejam acomodadas em seus devidos lugares e se possa viver bem e com dignidade. Então a corrupção será banida, o dinheiro público utilizado com parcimônia, haverá redução da criminalidade, os políticos colocarão os interesses coletivos acima dos individuais, haverá mais igualdade e por aí afora.

Você pode bem achar que todas essas colocações estão mais para o discurso do Dr. Pangloss, o incorrigível filósofo otimista que nos foi legado por Voltaire. Como se sabe Pangloss era preceptor do jovem Candido a quem ensinava que, mesmo com tantas desgraças acontecendo, esse era o melhor dos mundos.

Talvez você tenha razão, mas o fato é que a primavera está chegando e não custa nada sonhar um pouco, só um pouquinho.

O Smartfone

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Não me envergonho de dizer que jamais me adaptei bem aos telefones celulares. São muito úteis, sim: não sou mais capaz de imaginar o mundo sem eles. Mal me lembro de alguns anos atrás quando éramos obrigados a encontrar um orelhão ou central de telefones para fazer ligações interurbanas. Isso já nos bons tempos porque antes o jeito era pedir a uma telefonista que fizesse as ligações. Então esperávamos sem reclamar porque o mundo era assim e nós estávamos em sintonia com ele, com a época em que vivíamos. Daí que a idéia de carregar no bolso um aparelhinho que nos permitisse a comunicação com outras pessoas não passava de ficção muito imaginosa. Do que se conclui que as ficções se tornam realidades e imprimem velocidade ao mundo obrigando-nos, pobres mortais, a acelerar o passo para nos integrarmos ao sempre admirável novo mundo que se renova a cada manhã.

Então, salve a tecnologia que imprime mais velocidade ao mundo e nos faz mais rápidos. Salve os celulares sobre os quais se sabe até que podem causar câncer se os mantemos muito próximos a nós. E viva o smartfone (smart phone), nova febre no mundo da telefonia. Eles representam um grande avanço dado que acrescentam à função primária dos telefones – contatos de voz, ao vivo – inúmeras outras funções, tantas outras que, sinceramente, fica meio difícil saber para que sevem de fato.

São interessantes esses tais smartfones, isso não se pode negar. E vêm até equipados com coisas para distrair seus proprietários em momentos de solidão. Vi num deles um joguinho no qual uma bolinha circula num labirinto. Pois cada vez que a bolinha bate numa das paredes do labirinto o jogador pode sentir na sua mão a vibração da colisão. No mesmo smartfone existe o desenho de um chicote que permite ao proprietário mover os braços e a dar chicotadas que são acompanhas pelo som característico delas. Assim, você pode descarregar o ódio que sente por alguém, o seu chefe, por exemplo, chicoteando-o com o seu smartfone. Para isso, basta movimentar agressivamente os braços e bater forte nele. E importante: é possível fazer isso em qualquer lugar, no metrô, por exemplo, enquanto se dirige ao trabalho. E que dizer da telinha que se transforma num recipiente cheio de cerveja que você pode consumir virtualmente, levando o smarfone à boca e observando o nível da bebida diminuir enquanto ingere bons goles de “nada” bem gelado? Eis aí um brinquedo que talvez seja útil em crises emocionais nos momentos de sede em desertos.

Meninos, eu vi. E olhe que estamos apenas no setor de divertimentos. Depois dele passei ao bluetooth que, uma vez acionado, transforma o seu celular numa espécie de controle remoto com o qual você pode se conectar a outros telefones, computadores, aparelhos de TV etc.

Paro por aqui quanto às características dos smartfones, mesmo porque não fui capaz de absorver nada mais daquilo um paciente amigo me mostrou. Mas confesso que a apresentação do smartfone me deixou um pouco deprimido. A presença de tanta tecnologia concentrada numa caixinha me fez sentir enorme e inútil, como um monstro que tivesse ao seu alcance um controle remoto mágico e não soubesse fazer uso dele. Dessa sensação me defendi achando que há nesses aparelhinhos algo de sofisticação abusada, que me perdoem por dizer isso as novas gerações para quem todo esse reboliço tecnológico é tão atraente.

Enfim, adorei o smartfone do mesmo jeito e com a comovida admiração com que um índio, em 1500, teria recebido um presente qualquer de um português que viera parar nessas plagas, após a tresloucada travessia do Atlântico.  Ao índio certamente não escaparia a noção de que aquele valor não pertencia à sua civilização; a mim que o smartfone talvez seja uma evolução que eu não esperava alcançar, aviso de que o meu tempo vai se convertendo, depressa demais, em passado.

O Demônio da Criação

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Ray Bradbury atribui suas criações literárias à existência de uma musa à qual ele batizou como “Demônio que não teme a felicidade”. Esse nome foi retirado de um poema de Frederick Seidel no qual o poeta conta como o pequeno Demônio ora se senta sobre um ombro, ora sobre o outro, e sussurra coisas que só o escritor ouve.

A confissão de Bradbury sobre a fonte de suas inspirações está no primeiro ensaio de um livro recentemente publicado em língua espanhola pela Suma de Letras e denominado “Bradbury Habla” (do original norte-americano “Bradbury Speaks”).

Muita gente pergunta por que existem pessoas que escrevem livros ou simplesmente porque são capazes de fazer isso. Há quem tome nas mãos grossos volumes e fique imaginando quanto tempo terá levado o autor delas para escrevê-las. Alunos mais preguiçosos e pouco dados a leituras calculam o seu esforço para ler obras obrigatórias pela grossura da encadernação. Ernest Hemingway criticava Balzac por escrever tanto, atribuindo a imensa obra do escritor francês à falta de mais o que fazer.

O fato é que por detrás de poucas ou muitas páginas existe sempre alguém que se debruçou sobre elas, talvez acreditando que sua missão nesse mundo fosse a de compartilhar as suas idéias com a humanidade ou, simplesmente, contar histórias para ouvintes/leitores ávidos por preencher o seu tempo.

Se Bradbury estiver certo sobre a existência de demônios que sopram idéias nos ouvidos dos escritores é de se prever que cada um tenha o seu demônio particular. Mais que isso, talvez exista uma hierarquia de demônios porque os de James Joyce e Fernando Pessoa seguramente sugerem mais idéias que os pequenos demônios que inspiram o comum dos mortais.

Mas Bradbury avança nas suas explicações sobre a origem das suas criações dizendo que em geral as idéias trazidas pelo seu Demônio resultam em textos mais ou mesmo breves que mais tarde se ampliam, chegando a se tornar romances. O mesmo acontece com situações vividas que aparentemente não significam nada, mas que, tempos depois, tornam-se úteis como narrativas de contos ou romances.

Há quem escreva por simples compulsão, outros para livrar-se de um peso que carregam às costas. Também há quem se embebede com belezas e escreva como a passear no paraíso. O importante é que não existe uma regra para a criação em si. O que há, talvez, é um dom ou, se quiserem, uma queda de pessoas imaginosas para escrever. O resto provém da experiência pessoal, da meditação e da acomodação da escrita às regras de sintaxe, enfim de um profundo mergulho nas formas de expressão.

Entre a idéia e a consumação da obra existe um abismo, por vezes incontornável. Em Jean Christophe, grande obra do escritor francês Romain Rolland, existe uma personagem por cuja cabeça passam as mais incríveis composições e árias; entretanto, esse gênio musical é incapaz de transpor uma só linha para o papel o que seria a sua consagração como compositor. O mesmo tema foi abordado, antes de Rolland, por Machado de Assis em contos como a “Cantiga de Esponsais” na qual a personagem é um músico, Mestre Romão, que se pudesse seria um grande compositor. Sobre a inaptidão de Romão para criar, diz Machado de Assis:

- Parece que há duas sortes de vocação: as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.

Assim sentenciou Machado de Assis. Quanto a você leitor, vá depressa a um espelho e mire bem os seus ombros a ver se há algum demônio sentado sobre eles; se o vir, tome tento se ele lhe sopra coisas ao ouvido; caso isso aconteça, verifique se a sua vocação tem língua ou não. Se tiver, sente-se depressa diante de um computador e comece a escrever.

Memórias publicadas após a morte

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Entre os políticos em atividade no Brasil nos últimos 30 anos talvez não exista figura mais controvertida que a de Paulo Salim Maluf. Amado e odiado, o filho de ricos libaneses representa para um enorme número de pessoas o que há de pior em se tratando de homem público. Com isso não concorda boa parcela do eleitorado de São Paulo que permanece fiel a ele, distinguindo-o com expressivas votações, mesmo após os inúmeros escândalos em que esteve envolvido. Comprova esse fato a eleição de Maluf para o cargo de deputado federal, em 2006, tendo sido o deputado mais votado em todo o Brasil.

Se o leitor tiver a curiosidade de digitar o nome de Paulo Salim Maluf na Wikipedia ficará desnorteado com a impressionante atividade pública desse homem que foi prefeito de São Paulo duas vezes, governador do Estado de São Paulo, deputado federal, duas vezes candidato derrotado à presidência da República, presidente da Associação Comercial de São Paulo etc. Não se pode negar a ele combatividade e produtividade: durante os seus governos concretizaram-se inúmeras obras viárias na cidade de São Paulo, isso para ficar no mínimo no tocante às suas realizações. Por outro lado, Maluf é acusado de corrupção sendo que contra ele ainda hoje existem vários processos nas esferas estadual e federal. Entre outras, a justiça brasileira o acusa de ter vultosa conta no paraíso fiscal das ilhas de Jersey. Além disso, Maluf esteve preso em 2005, acusado de intimidar testemunhas.

Homem de grande inteligência e conhecido por sua excelente memória Maluf surge para parte do público como uma espécie de “mal incontornável”. O fato é que ele nunca se dá por achado e em geral atribuem a ele grande “cara de pau”.

Pois é esse homem que agora revela que está escrevendo um livro de memórias, talvez uma biografia. Ele adianta que revelará os bastidores da eleição indireta de Tancredo Neves à presidência da República, em 1984, e os da aprovação, em 1997, pelo Congresso da emenda que permitiu a reeleição de Fernando Henrique para o seu segundo mandato na presidência da República.

Detalhe: Maluf avisa que as memórias só serão publicadas após a sua morte. Note-se que ele privou do convívio de quase toda a classe política ao tempo em que atuou e, obviamente, sabe muito.  Talvez por isso – e para se livrar de compromissos a que está obrigado em vida – deixe aos cuidados de seus sucessores a publicação das suas memórias. Nesse caso, que se acautelem os homens públicos.

Em todo caso é preciso saber o que Maluf entende por “após a morte”. Será logo após? Ou ele estabelecerá um prazo para a publicação, salvaguardando os interesses dos vivos?

Existe no passado do país um caso interessante sobre publicação de memórias após a morte. Trata-se do livro escrito por Medeiros e Albuquerque cujo título é “Quando eu era vivo”. Medeiros foi poeta, romancista, jornalista, professor, membro da Academia Brasileira de Letras e político atuante.  Pouco antes de morrer, Medeiros entregou aos seus filhos os originais de suas memórias com a expressa recomendação de que só fossem publicadas em 1942. Acreditava o escritor que nesse ano a maioria das pessoas citadas estaria já morta. Medeiros morreu em 1934 e seus herdeiros só publicaram o livro em 42, obedecendo às recomendações recebidas.

“Quando eu era vivo” é livro hoje encontrado apenas em sebos. Trata-se de um trabalho interessante e que vale como depoimento de fatos e pessoas da época em que Medeiros viveu e atuou. Uma enorme galeria de homens é apresentada pela pena de Medeiros que se vale do fato de tê-los conhecido. Para que se tenha idéia, no livro encontram-se perfis de Floriano Peixoto, Rui Barbosa, Prudente de Morais, Campos Salles, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Silvio Romero e muitos outros. Além disso, Medeiros se dá o direito a indiscrições. Nos últimos capítulos Medeiros confessa ter sido um tipo de Don Juan e expõe a sua técnica para conquistar mulheres. A partir daí passa a descrever inúmeras das suas conquistas, detalhando os modos como conseguiu chegar ao contato carnal.

O livro de Medeiros e Albuquerque me foi útil em várias ocasiões quando busquei informações não convencionais sobre personagens brasileiros importantes. Quanto aos últimos capítulos, ainda hoje não tenho opinião formada. Se por um lado são engraçados, por outro revelam o machismo tosco de um homem altamente ilustrado.  Ali as mulheres são expostas como objeto de caça, esmiuçando-se as armas utilizadas para abatê-las.

Paulo Salim Maluf tem uma história pregressa de atitudes fora do comum. Não sei se dada as acusações que contra ele pesam suas memórias contarão com credibilidade integral quando forem publicadas. Entretanto, não deixa de ser interessante a hipótese do seu depoimento, ainda mais se ele partir da perspectiva de que, estando morto quando da publicação, a atitude correta é isentar-se ao máximo e falar a verdade.

Buenos Aires

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Buenos Aires continua a ser a boa e velha cidade de sempre com seus prédios antigos e imponentes à européia. Há, sim, uma mudança significativa que só é percebida por aqueles que a frequentam há muitos anos: como outras capitais da América do Sul, Buenos Aires perdeu boa parte do seu glamour em seu embate com a pobreza. Já não circula pelas ruas tão famosas como a Florida, a Tucuman e a Corrientes o povo orgulhoso que as percorria no passado. Sucessivas crises políticas e econômicas quebraram o orgulho argentino, por vezes considerado excessivo pelos povos vizinhos.

Entretanto, a combatividade e politização permanecem inalteradas na Argentina. Há no modo de ser do povo uma fibra incomum que se traduz na agressividade das críticas. Os jornais são mais incisivos e combativos. Pregados em bancas de jornal e outros lugares existem cartazes acusadores que dão nome aos bois chamando esse ou aquele político de bufão, patoteiro e mentiroso. O argentino médio posiciona-se criticamente em relação ao que acontece no país. Os motoristas de táxi têm opinião formada sobre a situação local e adoram conversar com brasileiros para trocar figurinhas sobre coisas dos dois países.

A política argentina é dominada pelos figurões de sempre ligados a antigos movimentos que arrrastam multidões como o peronismo. Isso parece conferir aos políticos representantes de velhas facções um público cativo que os elege. Talvez por isso o país sobreviva, politicamente, dentro de linhas de ação difíceis de mudar ainda mais porque pressionadas por crises econômicas que resultam na pobreza atualmente muito evidente nas ruas.

Num país onde o culto à pessoa é uma tradição – vide Perón e Evita – a mulher que preside o país recebe toda a atenção. Cristina – é assim que os argentinos a chamam – está nas manchetes dos jornais com o seu nome em letras garrafais. É Cristina isso, Cristina aquilo, Cristina que está cuidando mais da aparência para remoçar, Cristina que só vai à Casa Rosada de helicóptero e assim por diante. Discorda-se de Cristina, fala-se e corrupção do governo, mas existe em relação à presidente algo maior que o simples respeito, talvez um pouco da tradição de culto a personalidades importantes.

Dos orgulhos argentinos um inabalável é Borges. O escritor está em toda parte como referência de cultura, expressão do povo. Continua a ser lido e estudado como demonstram os inúmeros livros sobre ele e sua obra, encontrados nas livrarias.

Por falar em livrarias, Buenos Aires continua imbatível nesse setor fazendo inveja a outras capitais, mesmo São Paulo. Há toda uma tradição no modo de ser das livrarias argentinas que resistem bravamente às crises econômicas. O diferencial da língua falada ser o espanhol abre enorme perspectiva de publicações, daí serem encontradas obras publicadas não só na Argentina como na Espanha e demais países latino-americanos. Contam, portanto, os argentinos com um largo espectro cultural que pode ser observado em coisas simples como jornais diários que trazem notícias de seu país ao lado de outras da Espanha e demais países de língua espanhola. Como sempre é indispensável a quem vai a Buenos Aires uma passada pela livraria El Ateneo Grand Splendid, na Rua Santa Fé. Localizada em um antigo teatro a El Ateneo é de rara beleza além de ser uma das maiores livrarias do mundo.

Para o turista Buenos Aires continua a ser uma festa. Ao lado de atrações culturais, shows de tango e a boa comida dos maravilhosos restaurantes de Puerto Madero o visitante encontra de tudo  o que fazer não só em Buenos Aires como em seu arredores. Uma visita à cidade de Tigre, próxima a Buenos Aires, com direito a passeio de barco entre as ilhas do delta do Rio Paraná é uma grande pedida.

Do que se fala pouco no momento é sobre futebol. Loucos por esse esporte os argentinos não se conformam com o baixo rendimento da sua seleção. As críticas ao técnico Maradona são muitas, inclusive por ele estar, no momento, descansando num SPA, na Espanha, enquanto o país corre o risco não participar da Copado Mundo.

A seleção nacional argentina vai mal porque se formaram dois grupos de jogadores que não se falam.

- É tudo por dinheiro, só jogam por dinheiro – diz o balconista de uma loja acrescentando que o que importa mesmo é o desempenho no campeonato argentino do Racing, o clube do seu coração.

Entre livros e bases de dados

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A maior biblioteca de toda a antiguidade foi a de Alexandria. Acredita-se que foi fundada no século III e existiu até a Idade Media quando foi destruída por um incêndio.

Os livros são o repositório do conhecimento e da cultura acumulada ao longo dos séculos.  Entre eles as enciclopédias têm lugar de destaque por reunir enorme fonte de informações sobre assuntos variados, daí a sua importância para pesquisas e consultas sobre o que quer que seja.

Em casa de meus pais existiam coleções de livros muito úteis para trabalhos escolares e consultas. Entre elas destacavam-se os volumes do “Tesouro da Juventude” - editado por W. M. Jackson Inc., com introdução de Clóvis Bevilaqua - e uma obra chamada “A Ciência da Vida”, em dez volumes, escrita por H. G. Wells, Julian Huxley e G. P.Wells.  Em “A Ciência da Vida” tive a oportunidade de, pela primeira vez, entender a diversidade dos seres vivos sob a luz do evolucionismo. Se não me falha a memória esse assunto é tratado no volume 6 da coleção, seguindo a linha dos textos de história natural comuns no passado.

Mais tarde adquiri uma enciclopédia em português, a Mirador, e posteriormente os muitos volumes da sempre excelente Enciclopédia Britânica.

A todos esses livros devo enormemente. Eles me foram muito úteis em diversas ocasiões. A sua utilização durou até o advento de obras informatizadas que facilitam as pesquisas com recursos de hipertexto e cruzamento de dados. De repente, as pilhas de livros foram substituídas por CDs e DVDs que, uma vez carregados no computador, fornecem as informações de que precisamos através de consultas instantâneas.

Mas a coisa não parou aí. A facilidade de pesquisa foi incrementada pela criação de bancos de informações de livre acesso através da internet. Destaca-se nesse campo a Wikipedia, ferramenta que cresce a cada dia através da contribuição de autores ocasionais e desconhecidos.

Entretanto, toda essa maravilha possibilitada pela informática esbarra na credibilidade das informações disponibilizadas. No caso da Wikipedia nada nos garante que o autor de um determinado verbete seja fidedigno embora a priori acreditemos que ele fez o melhor que pode ao publicar as suas informações.

Vai daí que se corre o risco de, através da Wikipedia ou qualquer outro mecanismo de fornecimento de dados, ser criada uma cultura paralela baseada em conhecimentos falhos e que conduzem a raciocínios errados.

Esse fato passa ser importante numa época em que os jovens, habituados à velocidade das informações, se contentam com textos que supram as suas necessidades imediatas sem qualquer critério de avaliação ou pesquisas que os confirmem.

Nos dias atuais tudo está ao alcance de um clique. Entretanto, é preciso saber se o que surge na tela em seguida ao clique do mouse pertence ao universo da verdadeira cultura. Só com informações precisas e corretas se constrói o conhecimento e se formam pessoas aptas ao exercício da cidadania.

Mortes no trabalho

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Leio na biografia que Sartre escreveu sobre Charles Baudelaire que para o poeta francês a possibilidade do suicídio era um meio de se manter vivo. Em outras palavras, há quem trabalhe mentalmente com a hipótese de dar fim à vida e encerrar tudo num momento de sua escolha. Essa possibilidade confere força a essas pessoas para suportar situações desconfortáveis dado que contam com a variante de largar tudo e morrer.

Creio que na maioria desses casos o suicídio não se consume. Entretanto, para os verdadeiros suicidas, a morte pode vir a acontecer desde que eles sejam submetidos a situações intoleráveis. Isso é o que nos sugere a impressionante marca de 23 suicídios de funcionários da empresa France Telecom, em 2008. A esse número somam-se outros suicídios como o de uma empregada que há poucos dias atirou-se através de uma das janelas da empresa. Outro suicídio quase aconteceu durante uma reunião da empresa numa cidade próxima a Paris. Um dos técnicos estava sob pressão por saber que o seu posto seria suprimido. Durante a reunião o homem de 50 anos de idade foi avisado de que seu cargo não mais existia e reagiu dizendo que não aceitava a nova condição. Em seguida sacou um objeto perfurante e o cravou no próprio estômago, ferindo-se gravemente.

Obviamente a France Telecom nega que os suicídios tenham algo a ver com as mudanças de gestão da empresa atribuindo-os a estados depressivos, divórcios, dívidas e outros motivos de natureza pessoal. Entretanto, segundo os sindicatos, é o atual modo de gerir a empresa a causa das tragédias que infelizmente continuam a acontecer. Como exemplo cita-se o recente caso de um homem de 53 anos que dirigia o comitê de segurança e higiene da empresa. Esse funcionário se matou após várias discussões com os seus superiores.

Para os entendidos parece não haver dúvidas de que a mudança do tipo de gestão da France Telecom é a causa do elevado número de suicídios. Obviamente a insegurança gerada por mudanças administrativas age seletivamente sobre temperamentos mais suscetíveis à idéia de colocar fim à própria vida.  O desespero e a impossibilidade de alterar o rumo das coisas afetam progressivamente pessoas que sucumbem às pressões e acabam se matando.

O que nos chama a atenção em casos como esse é a frieza com que são tratados, sendo encarados profissionalmente como acidentes de percurso. Linhas de ação empresariais devem ser mudadas em atenção às exigências de mercado e necessidades de clientes e cabe aos trabalhadores adaptarem-se às condições imperantes. Existe sempre um motivo maior e geralmente irracional por detrás de alterações que causam profundas crises nos projetos pessoais levando os implicados a atitudes extremas.

Os suicídios acontecidos na grande empresa francesa são um alerta nesses tempos globalizados em que muitas empresas adotam modelos de gestão importados e nem sempre adequados ao modo de ser dos trabalhadores brasileiros.

Mudanças de gestão de empresas ocorrem por vários motivos. Entre eles são comuns situações de venda de empresas a novos proprietários que professam linhas diferentes de gestão. Quando isso acontece, a força de trabalho empregada experimenta variações funcionais e salariais, quando não situações de desemprego. É a partir daí que projetos de vida são afetados não sendo incomum que pessoas, movidas desespero, tomem atitudes limítrofes com risco da própria vida.

Censura e perseguição: de volta aos velhos tempos

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A América Latina sempre foi um território experimental. Aqui as teorias políticas dos países mais ricos e desenvolvidos estabeleceram formas de dominação que se arraigaram na cultura dos povos. Foi desse modo que os nativos passaram de dominados a dominantes estabelecendo-se hierarquias locais ideologicamente comprometidas. De tal situação emergiram governantes, ora caudilhos, ora populistas, quase nunca democráticos, mas que rezaram e rezam numa mesma cartilha de conhecimentos obtidos à meia boca e dirigidos à preservação do poder.

A triste história da América Latina consiste no revezamento de líderes que acenam com propostas democráticas, mas não por inteiro. Isso quando decididamente optam por linhas ditatoriais preservadas através de mecanismos repressivos que incluem a censura, a tortura, a restrição de liberdades individuais e todo um arsenal de medidas bem conhecidas e já vividas pelos povos do hemisfério sul.

Talvez seja possível dizer que Deus, caso exista, não tem tempo para cuidar dos destinos da América Latina. Ou terá Ele, em seu divino cansaço, delegado o controle do continente a algum arcanjo distraído que, tendo outros afazeres, vai deixando para depois a verificação do que acontece no nosso continente.

Se assim for, é preciso avisar ao responsável celeste pela América latina, que a coisa aqui está brava. Acontece que foram necessários muitos anos para que a democracia e a liberdade retornassem aos países do continente. Daí que mesmo não se podendo dizer que está tudo bem, não temos notícias sobre presos políticos, torturas etc. Existem sim, ainda, alguns grupos extremistas como as FARC, que mais parecem continuar existindo por não se encontrar fórmula para que retornem à legalidade. O fato é que, permanecendo na ilegalidade, comportam-se em acordo com o figurino de ações que delas se esperam, mantendo alguns presos e assim por diante.

Mas, o que importa mesmo dizer é que sabemos quanto custa a liberdade e a democracia, já que vivemos sem elas no passado. Isso é mais ou menos como passar fome: mesmo em períodos de abundância quem já teve fome teme passar de novo pela mesma situação.  

O fato é que, nos dias atuais, existem razões para temermos pela não continuidade da liberdade hoje existente. Pode parecer praga, mas a verdade é que neste momento histórico os países sul-americanos de maior projeção estão sendo governados por pessoas que vão tomando gosto pelo poder e passaram a agir nos moldes de governos anteriores aos quais eles mesmos combateram.

É desse modo que antigas sinalizações de perigo reaparecem, avisando-nos que o regime sob o qual vivemos corre sérios riscos. Todo mundo conhece bem a história da centralização do poder, das medidas restritivas tomadas segundo o interesse de grupos dominantes e da prática da mordaça de que se servem os detentores do poder quando passam a confundir seus interesses pessoais com os interesses de Estado. Esses sinais são muito perigosos, são como nuvens negras que anunciam chuvas que de fato acabam desabando.

Não por acaso as coisas acontecem simultaneamente, fazendo-nos lembrar de tempos que o melhor seria esquecer. No Brasil a cúpula que governa o país entrega-se a desvarios de poder, entre eles a corrupção e agora a censura ao jornal “O Estado de São Paulo”; na Venezuela, Hugo Chaves fecha canais de televisão opositores ao seu governo, ataca jornais etc; na Argentina o jornal “El Clarín” recebe a visita de mais de cem fiscais da Receita Federal numa evidente retaliação do governo a críticas que vem recebendo.

Pode ser que alguém discorde achando que não existem motivos para preocupação, mas a América Latina é a América Latina, ela tem um passado terrível e Deus ou o arcanjo por Ele nomeado parecem não estar muito atentos ao dia-a-dia do continente.

A profundidade da intolerância

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Quando nos sentimos experientes e achamos que já vimos de tudo sempre surge um novo fato para demonstrar o quanto temos ainda a aprender sobre o comportamento humano.

Diariamente somos atingidos por notícias sobre atos que beiram a insanidade. Crimes hediondos se repetem, muitos deles motivados pela intolerância. Mendigos queimados ou mortos a pauladas e agressões a índios, negros e homossexuais são acontecimentos rotineiros que nos revoltam e fazem-nos pensar. O homem ataca o homem movido por diferenças de raça, divergências ideológicas e muitas outras razões. Pelas ruas das cidades circulam tribos movidas por ideários extremistas e de exceção, sendo que a maioria dos seus membros não tem noção clara sobre a razão do seu comportamento. Velhas e desgastadas bandeiras como a do nazismo ou “morte aos burgueses” servem apenas para justificar ações violentas e sem sentido.

Mas, não são só eles. Nesses dias o governo britânico empenha-se em se desculpar e recuperar um famoso matemático que foi vítima de intolerância em seu país. Trata-se de Alan Turing, considerado o pai da informática moderna. Durante a Segunda guerra Mundial Turing decifrou os códigos encriptados do exército alemão e graças a ele, milhares de vidas foram poupadas.

O problema? Ora, Alan Turing era gay. Por esse motivo foi julgado, em 1952, acusado de ultraje à moral pública. Condenado, restou a ele escolher entre a prisão ou tomar injeções de hormônios que o “curariam”.

Turing escolheu a segunda opção, seu corpo deformou-se e, dois anos depois suicidou-se.

Agora Gordon Brown, primeiro-ministro britânico desculpa-se oficialmente dizendo que Turing “foi um desses personagens aos quais se pode atribuir uma importância única porque mudou o destino da guerra. Gordon acrescentou: “a dívida que temos com ele faz tudo isso mais horrível. De parte do governo britânico e de todos aqueles que hoje vivem em liberdade graças às ações de Alan, quero dizer que sentimos muito. Ele merecia algo de melhor”.

Aí está. A revisão é feita cinqüenta e cinco anos depois. De Alan Turing restaram a triste memória de seu processo, a fantástica máquina conhecida como Turing Universal Machine, que possibilitava calcular qualquer número e função, de acordo com instruções apropriadas e a quebra do código das comunicações alemãs, produzido por um tipo de computador chamado Enigma.

No momento em que escrevo esse texto num computador devo muito desta possibilidade ao trabalho precursor de Alan Turing. E penso que desculpas posteriores podem ser úteis, mas de nada servem ao sofrimento de quem foi levado à morte pela preconceito de uma sociedade à qual serviu como poucos.

Alan Turing, cientista e gênio matemático, a humanidade toda deve muito a você e talvez seja muito tarde para pedir-lhe desculpas.