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Primavera

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Começou, na madrugada, a primavera. Acordei, às três horas da manhã, despertado pelo ruído de fortes ventos. Abri os olhos no escuro e me lembrei dos versos de Alberto Caieiro:

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Depois me vieram imagens de flores, aquelas que tínhamos nos canteiros do fundo do quintal.  Da velha roseira que minha mãe cuidava como a um filho, que restou? Nem a roseira, nem minha mãe, nem as vozes da gente daquele tempo, as pessoas tão altas e graves que eu via de baixo, do meu patamar de menino.

A realidade não precisa de ninguém para continuar acontecendo. Talvez por isso o primeiro noticiário ignorasse a magia da manhã e relatasse a morte de quinze pessoas em dois acidentes nas estradas. Morreram antes da nova manhã, não viram o início da primavera, mas ela começou, imperiosa, sem eles.

Houve um tempo, nas aldeias do Brasil, em que os sinos badalavam forte, anunciando a estação das flores. Então havia mais alegria, menos sofrimento e a dor tinha recato, não se expondo tanto como hoje. Ventava, sim, nas madrugadas, mas as pessoas não se incomodavam porque tinham histórias a contar, sentadas na cozinha, em torno do bule com café. Mas, os tempos são outros. Um amigo me disse, ainda nesta mesma semana, que os contadores de histórias estão desaparecendo. Já quase não existem cozinhas com fogões de lenha, gente perdida nas madrugadas contando histórias, amplos quintais com roseiras e velhinhas cuidando de flores. O mundo mudou.

A primavera começa num dia claro, sem alarde. Ninguém passa pela minha porta carregando flores, festejando o início da nova estação. Só na minha memória a realidade desfeita persiste, mundo colorido no qual minha mãe está debruçada sobre um canteiro e pessoas correm, felizes, num infinito campo de flores.

A Sagração da Primavera

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A primavera vem aí. Chega na próxima terça-feira e põe fim ao inverno que já vai tarde. Não que eu não goste do inverno: é a minha estação favorita, pois o frio convida à interiorização e reflexão. As rajadas de ar frio arremessadas às praias dos estados do sul trazem mensagens do pólo e, com um pouco de imaginação, pode-se até ouvir os diálogos dos pinguins. Entretanto, nos últimos anos toda a beleza dos invernos do sul tem sido mascarada por fenômenos climáticos não observados no passado, pelo menos com tal intensidade. O fato é que passamos a falar a linguagem dos grandes ventos, tufões e tornados, das casas destelhadas, das avalanches, dos desabrigados, dos soterrados, das mortes provocadas por fenômenos  atmosféricos impossíveis de serem controlados. Por trás disso tudo as grandes mudanças ambientais que afetam a temperatura, o ciclos dos ventos e das chuvas, as correntes marítimas e toda sorte de fatores que resultam em desequilíbrio dos ecossistemas naturais.

Mas, eis que chega a primavera e, com ela, a expectativa de tempos de bonança. Trata-se da estação das flores e da grande atividade dos agentes polinizadores que sugerem aos homens trocas de favores e compreensão.  A primavera também nos devolve o compositor russo Igor Stravinsky que a revista Time considerou uma das 100 pessoas mais influentes do século XX. Da vasta obra de Stravinsky destacam-se as peças que fomentaram o movimento modernista, justamente as três que a ele foram encomendadas pelo empresário Sergei Diaghilev para serem representadas pelos Ballets Russes, em Paris. Uma delas é “A Sagração da Primavera (Le sacre du printemps)”, cuja estréia, em 1913, provocou um verdadeiro motim e mudou os rumos das obras de vários compositores daí por diante. Foi “A Sagração da Primavera” que caracterizou Stravinsky  como revolucionário musical.

Ícone da música erudita e marco inicial do modernismo, “A Sagração da Primavera” é um balé em dois atos no qual se conta a história de uma jovem que deve ser imolada ao Deus da Primavera para que a sua tribo tenha boas colheitas. A genialidade de Stravinsky impõe um sacrifício para que o cotidiano de uma comunidade tribal seja bem sucedido e me leva a pensar no que poderíamos fazer para transformar o próximo dia 23 de setembro, início da primavera, num marco de mudanças nesse vasto mundo em que reina tanta insensatez.

 A idéia é, obviamente, absurda: os homens não são atores e o mundo não é um grande palco onde a tragédia humana seja exibida em dois atos ao ritmo de um balé. Mais que isso, falta-nos um grande compositor. Mesmo que deixemos Deus de parte dessa conversa, a verdade é que o mundo anda carente de pelo menos um grande regente capaz de aliar a dominação econômica dos países e das grandes corporações ao bem-estar das populações.

Por essas razões a primavera chega, mais uma vez, a um mundo conturbado e que está a exigir, como na peça de Stravinsky, um enorme sacrifício para que as coisas sejam acomodadas em seus devidos lugares e se possa viver bem e com dignidade. Então a corrupção será banida, o dinheiro público utilizado com parcimônia, haverá redução da criminalidade, os políticos colocarão os interesses coletivos acima dos individuais, haverá mais igualdade e por aí afora.

Você pode bem achar que todas essas colocações estão mais para o discurso do Dr. Pangloss, o incorrigível filósofo otimista que nos foi legado por Voltaire. Como se sabe Pangloss era preceptor do jovem Candido a quem ensinava que, mesmo com tantas desgraças acontecendo, esse era o melhor dos mundos.

Talvez você tenha razão, mas o fato é que a primavera está chegando e não custa nada sonhar um pouco, só um pouquinho.