2009 julho at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para julho, 2009

A jovem serial killer

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Lactâncio (240 d.c. – 320 d.c.), filósofo cristão, ensinou Retórica em Nicomédia e depois em várias cidades do Império Romano do Oriente. Para Lactâncio a tolerância do assassinato, acontecida em sua época nos horríveis espetáculos do anfiteatro, consistia na mais clamorosa reprovação à moral pública. Escreveu ele:

“Que é tão horrível, tão espantoso e revoltante quanto o assassinato de uma criatura humana? É por isso que a nossa vida é protegida por leis muito rigorosas; é por isso que as guerras são execradas. Contudo, a tradição romana descobriu uma maneira de autorizar o homicídio sem guerra e a despeito de todas as leis: e a volúpia reivindica para si o que é crime”.

O assassinato é um crime horrível independentemente da época em que é praticado. Nem mesmo o notório crescimento desta variante de crimes, verificado atualmente, logra banalizá-la: a opinião sempre reage defensivamente quando homicídios acontecem.

Recebemos diariamente tantas notícias de homicídios que, em geral não nos manifestamos sobre eles. Não se trata, de modo algum, de indiferença: o despudor das ações criminosas nos constrange, a impunidade nos revolta e é a impotência diante dos fatos que nos paralisa. Entretanto, há ocasiões em que o mutismo cede lugar a algum comentário ainda que breve e com o sentido de patentear o nosso estranhamento em relação a naturezas rebeldes e assassinas.

Este é o caso dessa jovem que acabam de prender, num bar, em São José do Rio Preto. Tem ela apenas 17 anos de idade e confessa ter cometido trinta assassinatos, todos eles com arma branca. Segundo os policiais, a esfaqueadora relata seus crimes detalhadamente sem mostrar nenhum remorso ou qualquer emoção: matar pessoas é para ela algo natural, que faz parte do jogo da vida.

Ainda mais interessante é a razão da confissão: a assassina relata que contou tudo antes de fazer 18 anos, ocasião em que passará a ser responsável criminalmente. Sua intenção foi, portanto, zerar a sua dívida com a sociedade porque daqui pra frente as mortes passarão a valer, esse o seu entendimento.

Não é todo dia que aparece um serial killer com uma história dessas. A polícia ainda tem dúvidas sobre a realização de tantos crimes e começa a investigar. Entretanto, fica-nos o relato frio da mocinha, a perversidade da matança em série e as perguntas sobre o tipo de desvio de que ela é portadora e que a levou a atitudes tão grotescas.

Se os crimes forem confirmados e pelo menos parte deles foi inimputável estaremos diante não da autorização, como escreveu Lactâncio, mas de uma legislação perversa que permite o homicídio. E isso é inaceitável.

Notícias atrasadas

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As vanguardas terminaram e muita gente até desconhece que tenham existido. O movimento impressionista que marcou o início da modernidade nas artes há muito deixou de ser novidade de vez que incorporado aos hábitos e modos de ver e pensar. Obras impactantes transformaram-se em moeda corrente da cultura fazendo com que seus autores até mesmo decaíssem de sua condição de revolucionários.
A sociedade de consumo, ávida de novidades e meios de atingir consumidores procura infatigavelmente produções inéditas que caiam no gosto geral e se revertam e negócios rendosos. Há sempre alguém de atalaia à cata de algo diferente, um texto, um som desconhecido, uma tela com tintas revolucionárias, uma vestimenta inovadora, um discurso novo e comovente, ou qualquer inovação que venha a ser bem recebida pela crescente massa de consumidores.
O que se exige é que o novo tenha como atributo ser palatável, se possível de fácil digestão e que não cobre de seus possíveis receptores grandes esforços intelectuais. Em torno dessa exigência e em acordo com a velocidade das informações surge, em vários setores, uma nova geração de produtores de cultura para consumo que não se caracterizam exatamente pelo bom gosto e qualidade de suas criações. Nesse sentido, as tramas das telenovelas que se arrastam com peripécias e dramaticidades românticas representam apenas a ponta do iceberg. Desnecessário lembrar que há dois mil anos autores gregos já recomendavam cuidados com o alongamento das narrativas, exagero de peripécias e agressões à verossimilhança. Essa notícia parece não ter chegado até nós de vez que assistimos diariamente a um vai-e-vem de situações, muitas delas paralelas ao tema central e que nele não interferem, não interessando, portanto, ao verdadeiro fluxo da história que é narrada.
Entretanto, o que importa realmente dizer é que vários setores que produzem cultura para consumo em massa buscam inovar apenas pela quebra de paradigmas, muitas vezes atualizando conquistas anteriores que tomam como suas, revestidas que são por roupagens adequadas ao gosto popular. Desse modo, as primitivas modas de viola e canções caipiras cedem lugar ao rendoso mundo da música sertaneja, surgem novos impressionistas que abusam dos traços sem saber de fato pintar e aparecem escritores cuja arte consiste em desenredar e avançar em experimentalismos de linguagem já utilizados no passado, mas agora tomados como novos e aplaudidos por uma crítica carente de metodologia.
Entre outras finalidades o passado existe para que possamos verificar o que fizeram e construíram os homens que viveram antes de nós. Notícias atrasadas sobre conquistas anteriores servem-nos como direcionamentos para possíveis e verdadeiras inovações. O que há é que vivemos sob a ditadura de inúmeras produções culturais de baixo nível que não educam e não formam um público apto a discernir entre boas e más criações intelectuais. Como sempre, circulam por aí honrosas e generosas exceções que, infelizmente, nem sempre chegam a popularizar-se e mostram-se insuficientes para restaurar o império do bom-gosto.

Punta del Este

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foto1Feriado é ocasião para pensarmos em lazer e programar viagens. Os jornais publicam cadernos de turismo e sugerem passeios, não raro a lugares exóticos. Há quem deteste viajar e odeie esses cadernos; existem os que aceitam sugestões, mas só viajam virtualmente; por fim há os que encaram a aventura e viajam mesmo.

Creio que a minha curiosidade sobre Punta del Este começou com a leitura de um desses cadernos. Em tempos em que ser rico relaciona-se com culpas, chamou-me a atenção a existência de lugar tão badalado, freqüentado por gente endinheirada - sem esquecer o jet set - que para lá se dirige no verão. Praias, hotéis luxuosos, cassinos, esportes náuticos, ancoradouro de lanchas, residências magníficas, mulheres bonitas e muito exibicionismo compõem um quadro agressivo de riqueza e esbanjamento que contrasta com um mundo onde a pobreza clama com brados cada vez mais altos.

foto2Turista acidental, passei um dia em Punta del Este no início do outono. Talvez por me lembrar da “Suíte Punta del Este”, de Astor Piazzola, cheguei ao lugar esperando ouvir um tango. E ouvi, de fato, através de um rádio, sob o braço de uma moça, que reproduzia alguma coisa de Gardel. Isso foi no ancoradouro onde, ao lado de lanchas espetaculares, dois leões-marinhos se divertiam, recebendo comida e deixando-se fotografar.

Quem me mostrou a cidade foi um rapaz, motorista de táxi que me levou aos pontos turísticos. O que pude ver foi uma cidade praticamente deserta com mansões magníficas e de arquitetura ousada. Casas vazias, todas vazias, quase todas elas sem muros ou qualquer proteção porque, explicou-me o rapaz, em Punta não existe crime. As ruas ladeadas por casas imensas pareceram-me semelhantes a uma Beverly Hills deslocada para o Sul, banhada em parte pelo mar, em parte pelo Rio da Prata.

foto-31De repente uma grande avenida e, então, o Conrad, hotel onde funciona um famoso cassino. Mais à frente, Punta Brava, praia onde fica o monumento “dedos da mão” que emergem do solo. Não sei advinhar as intenções do artista ao esculpir os dedos, dizem que representam a presença do homem surgindo na natureza. Segundo o guia trata-se da mão de um afogado. Preferi imaginar uma mão imensa e um longo braço sob o solo, talvez tão comprido que viesse de outras terras, de povos antigos que povoaram a América antes de nós.

No final fui levado à Casa Pueblo, curiosa construção dividida em inúmeros cômodos, parte deles abrigando as obras do artista uruguaio Carlos Paes Villaró. A Casa Pueblo é lugar instigante e a obra de Villaró muito rica e variada. As fotos de Villaró com Picasso indicam a proximidade de interesses entre as obras dos dois artistas.

foto41Punta del Este, fora do verão, é um balneário vazio que, por isso, carrega alguma tristeza. Ainda que não queiramos, a cidade nos transfere a impressão de alegria temporária e finitudes irreversíveis. As casas riquíssimas e fechadas durante quase todo o ano nos passam a sensação de coisa fora do lugar, talvez desperdício. Aquela riqueza sem movimento, o esplendor paralisado, figuram inúteis e até agressivos porque nos transferem a sensação de impotência ante o que é reservado para poucos e por eles espera.

Ainda assim Punta del Este não deixa de ser uma cidade maravilhosa, dessas em que a gente gostaria de morar. Entretanto, paira sobre a cidade vazia o tal desconforto com a riqueza, desconforto esse que talvez desapareça no verão. É quando os milionários, seres migratórios, retornam a Punta. Então as casas são reabertas e a vida, enfim, se espalha por todos os cantos, devolvendo alegria à cidade que renasce.

Filhos de rico

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Há ocasiões em que o Brasil se parece a certos filhos de rico, aqueles caras que herdam uma fortuna sem ter a menor idéia de como foi gerada ou que não se preocupam se ela será ou não dilapidada.

Conheci um rapaz que herdou um banco. Não era dos grandes, mas era banco, negócio que veio do avô para o pai e do pai para as mãos dele. Filho único, o rapaz gastou dinheiro a rodo, interferiu nas decisões do conselho, atrapalhou muito e irresponsavelmente: o banco acabou falindo.

Outro que conheci pertencia à terceira geração de negócios rendosos consolidados em duas fábricas atuando em vários ramos. Esse chorava pelo que não chegou a ele: o pai herdara o império e passara a vida a bordo de navios luxuosos. Foi assim que acionistas tomaram conta dos negócios e acabaram embolsando a maior parte do dinheiro por ocasião da venda das fábricas.

E o que tem a ver o Brasil com essas histórias de famílias que se encrencaram? Pois olhe que o país vive atualmente perigosa euforia de novos ricos. Grandes escândalos de corrupção envolvendo somas fantásticas de dinheiro, a crescente cultura do desperdício e aí vêm as eleições que prometem desfalques nada pequenos aos cofres públicos. Mas há progressos: o governo emprestou dinheiro FMI, de devedores internacionais passamos a credores, estamos caminhando na direção do G8, parabéns.

Entretanto, é preciso lembrar um pouco da história dessa recente prosperidade. O Plano Real está fazendo 15 anos, o que significa que não muito longe dos dias atuais vivia-se uma catastrófica crise inflacionária. Quem não se lembra dos absurdos índices inflacionários, das enormes desvalorizações do dinheiro mês a mês, da insegurança da população, das prateleiras vazias dos supermercados, dos preços reajustados nas madrugadas, da corrosão dos salários, da perda da noção de valores, do dinheiro que fazia dinheiro da noite para o dia em aplicações que  enriqueciam ainda mais os ricos e deixavam os pobres cada vez mais miseráveis?

15 anos não representam tanto tempo assim e não são suficientes para apagar das memórias as altas temperaturas da crise permanente instaurada no país por tantos anos.

O Plano Real devolveu ao Brasil a dignidade de um sistema no qual a população enfim pode confiar. Graças a ele o país tem crescido e registra uma estabilidade que muitos querem definitiva. Não se trata da maioridade econômica, os desníveis sociais estão longe de ser resolvidos, mas vai-se indo. Então é hora de lembrar aos homens que governam o país a história do progresso e do dinheiro que eles têm em mãos para que não atuem como certos filhos de rico, os que jogam com fortunas tantas vezes conquistadas com o suor e sofrimento de tanta gente.

O retorno do Banguelão

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O Banguelão mora na casa cujo aluguel é pago pela mulher. Ela rala duro num escritório onde o patrão é sujeito de pouca conversa e muita ação: não registra ninguém, tira o couro dos empregados e aponta a rua quando aparece qualquer reclamação.

A mulher do Banguelão sofre como uma danada. O marido não trabalha, às vezes desaparece de casa e quando volta entra exigindo ordem no galinheiro. Galo de raça, o Banguelão tem esse apelido porque faltam na sua boca, bem na frente, uns pares de dentes.

O casal tem uma filha que, segundo consta, não está de bem com o mundo. Em seus quatro anos de vida nada mais fez do chorar e ficar doente, enlouquecendo a mãe e atrapalhando as bebedeiras do Banguelão. Mas a família se sustenta, afinal ninguém precisa de regras e modelos para viver. A felicidade muitas vezes escolhe veredas tortuosas para se instalar, em certas ocasiões viceja até mesmo no meio da desgraça.

O Banguelão, como todo bom malandro, diz que trabalha fato que não se comprova. Tempos atrás saiu de casa avisando que era para sempre. Logo que ele saiu a mulher ajoelhou-se diante do altar de uma Nossa Senhora meio imprecisa – numa bebedeira o Banguelão quebrou a cabeça da imagem tornando-a irreconhecível – e jurou que o marido nunca mais passaria da soleira da porta.

Noite mais noite de solidão resolveram o problema: certo dia o Banguelão reapareceu com sua cara de sofredor e só faltou reclamar da dor dos dentes que já não possui. A mulher enterneceu-se e a filha parou de chorar só um pouquinho. Um belo prato de sopa bem quentinha e uma noite de sexo meio violento recolocou as coisas no lugar.

São passados alguns dias desde o último retorno do Banguelão. A mulher já começa a reclamar para amigas da verdadeira inanição do marido que passa os dias na frente da televisão comendo biscoitinhos que ela é obrigada a trazer para casa todos os dias.

Todo mundo sabe o fim da história, menos as amigas próximas que se perguntam por que a mulher atura um sujeito assim, um desgraçado, vagabundo e explorador. Cá entre nós, elas nunca vão entender que o Banguelão tem os seus segredos, a maioria deles revelados com sussurros nas longas noites junto da mulher.

Não há que se discutir as razões de um império onde os escravos concordam com a escravidão.

PS: essa história me foi contada por duas mulheres com uma graça que não consegui reproduzir.

Escrito por Ayrton Marcondes

7 julho, 2009 às 9:56 am

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Cinquenta anos depois

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Vez por outra um determinado acontecimento completa cinquenta anos desde a sua ocorrência e o fato, quando não comemorado, é pelo menos lembrado.

Está acontecendo agora com a ex-tenista Maria Ester Bueno que comemora os cinquenta anos de sua vitória no torneio de tênis de Wimbledon. A “dançarina”, como era chamada, foi tricampeã em Wimbledon, venceu cinco grandes Slams e inúmeros torneios. Jogou numa época em que os atletas eram movidos quase que só por amor e dedicação: viajava sozinha, utilizava meios de transportes mais baratos e não dispunha de retaguarda que cuidasse de seus interesses. Certa ocasião jogou 120 games num só dia, seu braço estourou e adeus carreira de tenista número um do mundo.

A glória de Maria Ester fez parte daquele reboliço que se instalou no país no final dos anos cinqüenta e início dos sessenta. Quem viu jamais se esquecerá. De repente, o país em permanente atraso e descompasso com o mundo parecia acordar. Juscelino Kubitschek exercia a presidência de onde sairia em 1961. Eram os tempos dos cinqüenta anos em cinco, da inauguração de Brasília (1960) e do incremento da indústria automobilística. Em 1958 o Brasil conquistava pela primeira vez a Copa do Mundo, na Suécia, e Pelé surgia para o mundo.  No boxe aparecia a impressionante figura de Eder Jofre, um demolidor peso-galo que conquistava o título mundial de sua categoria em 1960. Em agosto de 1958 João Gilberto lançava um compacto com a canção “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que para muitos representa o marco zero da Bossa Nova.

Tempos febris que de repente estremeceram com a eleição de Janio Quadros para a presidência da República, sua renúncia, o governo Jango e o grande nó que foi a revolução de 64. Desses dias muita gente lembrará facetas diferentes; dias nublados terão sido observados sob ópticas nem sempre coincidentes. Histórias contadas nos dão conta de protestos tantas vezes inúteis, opressão e a mão-forte de um sistema em voga nessa América que parece ter sido descoberta para ser laboratório do mundo, gleba de terras onde ideologias eram lançadas com o único propósito de se colidirem, levando consigo corpos, mentes e muito  sangue.

Tantas glórias e desgraças para serem lembradas agora e me pergunto se devem ser comemoradas. Os gritos ao pé dos rádios que anunciavam os dribles de Garrincha e as investidas de Pelé ainda ecoam por aí. Os murros de Eder Jofre, o melhor peso-galo de todos os tempos segundo o Conselho Mundial de Boxe, ainda parecem derrubar temíveis adversários. A raquete que Maria Ester Bueno atirou para cima no momento em que venceu em Wimbledon parece ter entrado em órbita e nunca mais voltou. Tom Jobim e Vinicius de Moraes morreram e João Gilberto resiste bravamente com sua voz peculiar, submetendo multidões para sempre encantadas.

De repente passaram-se cinqüenta anos! Dou-me conta disso assistindo a uma entrevista de Maria Ester na televisão. Lá está ela referindo-se a coisas que se tornaram memória e pó.

Não há como não sentir saudades daqueles anos, de tudo em que se acreditava, de um Brasil infante querendo crescer, de um mundo que passou e já não pode ser descrito com palavras.

Em tempos de Show-funeral

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Rapaz, eu não imagina que viveria para ver isso. Pois o cadáver de Michael Jackson, morto há alguns dias continua insepulto, à espera que se decida a melhor forma de despedirem-se dele.

Pelo lado do morto, tudo bem: acabado está e se algo ainda se deve a ele na condição de cadáver é o respeito aos mortos. E uma certeza: o show-funeral será na terça-feira.

Por hábito sempre penso nos mortos dentro de seus caixões e sendo baixados à sepultura, quando não cremados. Talvez por isso toda essa celeuma em relação ao enterro de Michael Jackson me pareça fora de propósito. Os dias passam e uma constelação de repórteres permanece na frente da casa do cantor, esperando por qualquer migalha de informação. Às vezes aparece alguém da família Jackson, parecendo andar numa ribalta de onde desfere duas ou três frases rapidamente divulgadas por todos os órgãos de informação. Por trás dos repórteres milhares de fãs consumidores de novidades empolgam-se com narrativas fragmentárias sobre a morte do cantor, dignas de telenovela. A morte de Jackson vai sendo esticada, estigmatizada, gera lucros com a permanência do morto na mídia e o retorno de seus discos ao topo das paradas. A morte de Jackson tornou-se, portanto, um negócio lucrativo.

E agora isso do show-funeral: anuncia-se a despedida de Jackson dentro do estádio do Los Angeles Lakers, com capacidade para 20000 pessoas. Os ingressos serão doados a fãs por sorteio e o funeral transmitido por telões aos que ficarem do lado de fora. É possível a participação de artistas e estuda-se o custo do evento. No centro dessa movimentação toda, Michael Jackson, o morto, esperando a hora de finalmente seguir viagem e desaparecer fisicamente.

A teatralidade das exéquias do cantor só poderia mesmo ser obra de norte-americanos, especialistas que são em megaeventos. Faz parte do caráter do grande povo do norte essa paixão pelo que é grande, pelo exibicionismo que demonstra a força inerente ao país e o seu domínio e influência sobre os demais governos. Pouco importa se por vezes abrem-se brechas nas defesas do império norte-americano: como nos filmes, o império contra-ataca e seus interesses quase sempre prevalecem.

Entender o caráter norte-americano e seu modo de ser é tarefa espinhosa. Joaquim Nabuco serviu como embaixador brasileiro em Washington entre 1905 e 1910. Ainda no século XIX Nabuco publicou o texto intitulado “Influência dos Estados Unidos” que faz parte de seu livro “Minha Formação”. Nesse texto o futuro embaixador realça a influência das origens anglo-saxônicas sobre o caráter norte-americano. Diz Nabuco sobre os norte-americanos:

“O fundo anglo-saxônico revela-se, aumentado ou diminuído, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espírito de empresa e independência da raça, também na brutalidade e crueldade do instinto popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos linchamentos, na sede insaciável de dinheiro, e também, noutros traços, na necessidade de limpeza física e moral, no espírito de conservação, na emulação e amor-próprio nacionais, na religião, no respeito à mulher, na capacidade para o governo livre”.

Do texto de Nabuco podem ser pinçados aspectos ainda hoje facilmente identificáveis no caráter norte-americano. Esses aspectos contribuem para o entendimento do modo de ser daquele país que se esmera em nos surpreender através de criações tantas vezes inusitadas, como esse show-funeral que se prepara para o falecido Michael Jackson.

A destruição de um sonho

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Os dois são jovens. Casaram-se há pouco tempo, começo de vida, sabe como é. Moram em apartamento alugado e vêm juntando suas economias para comprar o seu primeiro imóvel. São bonitos, cara de gente boa, esperançosos, confiantes. Ainda não têm filhos, mas assim que a vida estabilizar…

A história do casal é igual à de tantos outros, até mesmo a de quase todos nós, mais velhos, que experimentamos, no passado, essa fase de nossas vidas. Também um dia precisávamos comprar um apartamento e muita gente há de se lembrar do BNH (Banco Nacional de Habitação) de ruidosa memória.

Bem. Para a compra de um imóvel o casal de jovens bonitos tem à sua frente um obstáculo: os dois trabalham, mas ainda não conseguiram juntar os 20% do valor do imóvel necessários para obter financiamento. É aí que entra nas suas vidas um cidadão, proprietário de uma empresa que facilita as coisas. Já não será preciso tanto dinheiro de entrada, o que eles têm é suficiente. É desse modo que fecham o negócio, passam o dinheiro ao cidadão que, obviamente os enrola durante algum tempo (a eles e a outros) e certo dia simplesmente desaparece.

É desse modo que fico conhecendo o casal. Eles aparecem no jornal da manhã de um canal de televisão, relatam a sua tragédia e esperam que se faça justiça. A imagem dos dois me constrange. São bonitos, mas não se observam em suas faces os esperados sinais de confiança e esperança. Eles foram traídos talvez pela sua juventude, inexperiência e por confiar num ser que não é digno de pertencer à comunidade das pessoas de bem.

Desligo a televisão me sentindo culpado por não poder fazer alguma coisa, por ter certeza de que o trambiqueiro vai acabar se arranjando, isso se chegar a ser encontrado e preso. Caso isso aconteça alguma lei, algum bom comportamento, alguma coisa relacionada a ser primário, alguma necessidade de diminuir a superlotação carcerária, enfim qualquer pretexto legal vai devolvê-lo às ruas e a novos golpes.

E dizer que o trambiqueiro que promete facilitar financiamentos de imóveis pratica um tipo de crime hediondo que é ainda maior que o de lesar: o de destruir o sonho das pessoas.

Meio-dia e a imagem dos jovens lesados pelo trambiqueiro não me sai da cabeça talvez porque veja neles um pouco do que já fui. É quando me lembro desse tal Bernard Madoff, o financista americano que foi condenado a 150 anos de prisão pela fraude de cerca de 65 bilhões de dólares. Nos EUA o condenado só pode ser solto após cumprir 80% da pena o que significa para Madoff morte dentro da prisão. 

O trambiquiero que desapareceu é mesmo um cara de sorte: ele vive no Brasil. Daí que fico com o articulista de um jornal que confessou, dias atrás, sentir inveja dos EUA quando da condenação de Madoff.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 julho, 2009 às 11:59 am

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O Velho e o Novo Senado

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“O Velho Senado” é um texto de Machado de Assis que faz parte de seu livro “Páginas Recolhidas”. Nesse texto Machado fala sobre o Senado de 1860 no qual, a convite de Quintino Bocaiuva e ainda muito jovem, atuou como redator do “Diário do Rio de Janeiro”.

Peça literária e documento de grande importância “O Velho Senado” fala sobre homens e suas ações no Senado do Império. Através das páginas de Machado de Assis conhecemos mais de perto personagens da nossa história como Sinimbu, Paranaguá, Itanhaém, Zacarias, Caxias, Ouro Preto e Monte Alegre. Sobre muitos deles recorda Machado que haviam sido contemporâneos da Maioridade, algum da Regência, alguns do Primeiro Reinado e da Constituinte.  Diz Machado de Assis sobre os senadores:

“Tinham feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regime, e eu era um adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de instituição.”

Homens que fizeram ou viram fazer a história, um pouco de homens, um pouco instituição! Nas palavras de Machado de Assis o retrato dos senadores do Império, o perfil de um senador ainda que por vezes movido pelas paixões políticas e sujeito a deslizes. Mas, antes de tudo, homens partícipes de uma instituição que deve obrigatoriamente ser honrada porque faz história.

Da leitura de “O Velho Senado” para o Senado da República em 2009: do jeito que se arrasta, a crise do Senado vai sendo incorporada à galeria de fatos tétricos da história do país. Não há dia em que não se divulguem acréscimos a uma sequência de acontecimentos que denigre a imagem dos políticos brasileiros e ameaça manchar para sempre toda a categoria. O que acontece no Senado compara-se àqueles filmes de terror cujos enredos nos chocam e infelizmente grudam nas memórias.

Como pode ser que um grupo de homens, aos quais foram democraticamente atribuídas as maiores responsabilidades, se comporte de modo tão absurdo?

O Senado Brasileiro mais parece uma grande sala sem espelhos onde as pessoas que ali atuam não se veem durante a execução de seu ofício enquanto senadores. Velhas raposas não experimentam o menor rubor ao exibir as felpudas mantas que os protegem. Outros realmente se creem invisíveis como se fora do teatro onde se desenrolam as ações do Senado não existissem olhos para vê-los. É assim que passados de militância e posturas aparentemente progressistas sucumbem à voracidade de necessidades prementes, acordos obscuros perpetrados com a única finalidade de manter interesses e certas aparências.

Pois olhem que cresci em época na qual dizer que alguém era senador suscitava reverência e atitude respeitosa. Quando morria alguém que pertencera ao Senado, com que respeito se dizia: ele foi Senador da República. Valia como currículo. Sombras em sua trajetória, se haviam, em geral não eram suficientes para encobrir a imagem de dignidade do falecido. Hoje? Ora, nem é preciso responder.

Acobertados pelos governantes e mancomunados no sentido de encobrir toda sorte de corrupção os membros do atual Senado não dignificam a instituição à qual temporariamente pertencem. Obviamente existem honrosas exceções que, entretanto, revelam-se insuficientes para restaurar o clima de confiança do país.

A atual crise do Senado não encontra paralelo em crises vivenciadas pela instituição no passado. A pressão da população e da imprensa é fundamental para que venha a existir uma reforma administrativa e radical mudança de hábitos dos senadores. E o país terá oportunidade de intervir diretamente na composição do Senado nas eleições de 2010. Será através do voto que a população terá oportunidade de dar o seu veredicto sobre o tormentoso quadro de irresponsabilidade e impunidade que, atônitos, assistimos.

O Nobel e o Brasil

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José Ramón Calvo, criador do Campus Excelência para prêmios Nobel e estudantes, declarou ao jornal espanhol La Vanguardia que a quantidade de prêmios Nobel indica a qualidade de um país. Segundo, ele pesquisas indicam que existe uma relação direta entre a capacidade inovadora de uma sociedade, a qualidade de seu sistema educativo e de pesquisa, seu talento e criatividade, e o número de prêmios Nobel.

O Prêmio Nobel foi criado em 1900 a partir do testamento deixado pelo químico e industrial sueco Alfred Nobel, o inventor da dinamite. Nesse testamento Nobel deixou a sua fortuna para a criação de uma instituição que premiasse, no futuro, aqueles que servissem à humanidade. Surgiu assim a Fundação Nobel que anualmente confere prêmios de química, física, medicina, literatura, economia e paz a pessoas que se destacaram nessas áreas, independentemente de sua nacionalidade.

Passados mais de cem anos desde a criação do prêmio nenhum brasileiro foi, até hoje laureado fato que, segundo o critério adotado por Ramon Calvo nos deixa numa situação bastante desfavorável. Entretanto, é preciso muito cuidado com generalizações que colocam num mesmo saco todas as variantes culturais de um vasto país como o Brasil. Desnecessário é dizer que na base da pouca projeção do país em termos de premiações estão as terríveis deficiências do atual sistema educacional e de pesquisas. Seria longa demais a exposição da permanente crise do sistema educacional, da falta de incentivos à pesquisa e da ausência de um desenvolvimento técnico-científico comparável ao de outros países. Satélites artificiais, viagens à Lua, produção de bombas atômicas, estações espaciais e escudos antimísseis são apenas a face espetacular dos avanços conquistados pela ciência nas áreas da matemática, da física e da química. Resultaram eles não só da tradição de pesquisa em países desenvolvidos como, também, de formidáveis investimentos destinados a ela. Por detrás das conquistas obtidas nas áreas do conhecimento obviamente existe a tradição de cientistas, laboratórios e pesquisas que, vez por outra, abrem caminho para que alguns deles sejam laureados.

Respeitáveis críticos concordam que a literatura brasileira é fraca apesar da existência de grandes escritores em todas as épocas. Entre as razões apontadas para a falta de vitalidade da literatura nacional estão fatores como a ainda hoje observada dificuldade de circulação de livros, falta de bibliotecas e a histórica opção do mercado editorial brasileiro pela tradução de obras estrangeiras. Prevalecem, assim, os interesses econômicos em detrimento do talento de jovens escritores que, desestimulados, deixam de escrever. Além do mais, sabe-se que não raramente a escolha de premiados com o Nobel nas áreas de literatura e paz está ligada a outros fatores além da obra em si, entre eles as determinantes políticas.

É assim que vai sendo construída uma história cultural brasileira sem a conquista de um prêmio do qual os povos do mundo muito se orgulham. Até hoje Rui Barbosa é citado como exemplo da inteligência brasileira pelo brilho de sua participação na Conferência de Haia, realizada em 1907. Foi por ela que o grande Rui passou a ser conhecido como a “Aguia de Haia”. No livro “Ordem e Progresso” Gilberto Freyre fala sobre o orgulho do povo brasileiro em relação a homens como Santos Dumont, prova inconteste da capacidade da nossa gente.

Por essas e outras, pela educação, civilidade e valorização do conhecimento, esperamos tanto a melhora do sistema educacional brasileiro.