2009 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2009

Mundo careta

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Você se lembra do Long Dong Silver? Não? Era um “negão” que fez grande sucesso por aqui por ser portador de um pirulito enorme. Na época discutia-se sobre a quantidade de sangue necessária para preencher os corpos cavernosos e deixar o pirulito ereto. Haveria, quando isso acontecesse, falta de sangue no cérebro, gerando algum tipo de apoplexia?

O detalhe é que se podia falar sobre esse assunto a gosto. E escrever sobre ele. E podia-se grafar a palavra “negão” sem temer acusações de racismo. Em 70, o técnico da seleção, João Saldanha, referia-se a Pelé como “Negão”. Long Dong pertenceu a essa época. Se você duvida da existência dele entre no Google e digite “Long Dong Silver”. Aparecerão – e não “vão aparecer”, com o verbo auxiliar hoje tão na moda – fotos de um “colored” com um pirulito que alcança os joelhos.

Naquele espaço de tempo o mundo não era tão careta como hoje. Nem as famílias e mocidade tão conservadoras. Olha aí, vivemos hoje em dia num universo de conservadores, regulados por uma “regra” mais dura que aquela ditada por São Francisco de Assis aos seus seguidores. Se você não conhece a figura de São Francisco um ótimo caminho é começar com o texto de G. K. Chesterton sobre o grande santo protetor dos animais.

Aliás, você sabia que anos atrás as imagens de São Francisco traziam, numa das mãos do santo, uma caveira? E que por ordem papal a caveira foi substituída por um pombo? Quem duvida que visite as igrejas setecentistas de Minas Gerais: encontrará imagens de São Francisco segurando a caveira numa das mãos.

Voltando à caretice do mundo atual: os jovens dos sessenta, setenta e até oitenta faziam parte do jogo, acredite. Entediam as mensagens da maluquice e compreendiam a vida como processo aberto a muitas variantes de atitudes, até mesmo as aparentemente inexplicáveis. Na televisão brasileira, Chacrinha era um ícone do escracho bem nacional, continuidade do desrespeito ostensivo ao regular, ao imposto, ao monótono, à mesmice, ao federado, ao institucional, ao bem acabado. Esse era um mundo que vinha do rádio, da piada endereçada a todos e a ninguém, o riso sem ofensa ainda que ofendesse a algum incauto surpreendido em pleno ato de qualquer conservadorismo.

Hoje é diferente. Tudo é ofensa, tudo é interpretado como agressão, tudo é racismo, tudo vira processo e existem por aí causídicos que vivem à custa de impropriedades ditas ou escritas. Tempos caretas os atuais, tempos de normas, tempos de conservadorismo caústico no qual a defesa da honra não desonrada tornou-se um grande negócio.

É preciso reagir, recolocar as relações entre pessoas nos trilhos. É preciso devolver o riso fácil às pessoas para que possam agir com propriedade, sem medo de ofensa. É preciso devolver o sentido às boas piadas, reduto da alma nacional que costuma rir das desgraças, sem que se dê a elas conotações de agressão.

É preciso evoluir em direção ao passado e devolver a alegria ao dia-a-dia do povo brasileiro.

É preciso rir.

É preciso, é preciso… “Poema das Necessidades“ de Carlos Drummond de Andrade.

Abaixo o conservadorismo!

 

Resenha de domingo

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Nos domingos os jornais apresentam resenhas, destacando os principais assuntos da semana anterior. Há a intenção de reflexão sobre alguns temas como se a parada domingueira nos permitisse pensar menos apaixonadamente sobre coisas que nos chamaram a atenção durante a semana.

A mesma coisa acontece ao leitor. De repente ele se sente fora da agitação e, acomodado em seu lugar de descanso, aos seus olhos desfilam acontecimentos em que busca encontrar alguma lógica quando não algo que seja de consenso geral. Não adianta: somos dominados por certa necessidade de ordem que justifique o nosso empenho diário no que quer que seja. O caos não nos interessa na medida em que nossos esforços parecem inúteis e a própria vida pode figurar inútil. Nasce daí a necessidade de governo, de instituições confiáveis e de homens que nos representem com dignidade. Radicalismos e polarizações são até aceitáveis, mas dentro que um contexto maior no qual predominem variantes de interesse geral.

É seguindo premissas como essas que olhamos para os fatos recentemente acontecidos e a muito deles repudiamos. Logo de início nos deparamos com a interminável crise em Honduras e o fracasso da OEA em resolvê-la. Eis aí uma situação de caos inaceitável em que a polarização entre o presidente deposto – ainda hoje enfurnado na embaixada brasileira - e os golpistas afeta duramente as atividades do povo hondurenho. Trata-se de um caldeirão cujo conteúdo se aquece em fogo brando, mas que, a qualquer descuido, pode ferver e resultar em banho de sangue.

Na semana em que o presidente norte-americano Barak Obama recebeu o Prêmio Nobel da Paz – para muitos precoce - fala-se bastante sobre as realizações da Copa do Mundo de 2014 no Brasil e a das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. Corre por aí, principalmente nos meios governamentais, a euforia do tipo país vencedor, país que dá certo, país que conquista o seu lugar entre as nações do mundo. Há quem condene o ufanismo e aponte os gastos milionários necessários para a realização dos dois eventos como grande desperdício num país onde, para falar o mínimo, a educação, a saúde e a pobreza estão no pé em que estão. Mas o mundo é dos ricos e mesmo os pobres que ascendem a postos regularmente ocupados pelas gentes de dinheiro se esquecem das passadas misérias.

Passa por retrógrado aquele que se posiciona contra a realização de eventos de repercussão mundial e que de fato atrairão a atenção do mundo sobre o país. Há uma frase que vem ganhando corpo para justificar os empreendimentos em questão: é preciso pensar grande.

Assuntos como esses voltam no domingo. Também voltam as notícias sobre o aumento brutal no número de motocicletas que circulam nas ruas e a falta completa de respeito dos motoqueiros aos pedestres, daí os atropelamentos; voltam notícias sobre crimes bárbaros como a chacina em Curitiba no qual um grupo de rapazes, por motivos fúteis, matou sete pessoas, entre elas um bebê; volta o pré-sal cercado por atitudes que sugerem corrupção; volta a sucessão presidencial e o esforço do governo para emprestar sentido eleitoreiro a cada avanço do país; volta a formidável crise do ENEM cuja prova adiada interferiu nos sonhos e destinos de milhares de jovens…

Notícias boas? Juro que existem. Durante a semana um gerente de banco me perguntou como eu via o país de hoje em relação ao de décadas passadas. Respondi com alegria que as coisas melhoraram muito, que ele pensasse nos anos em que a inflação mensal chegava a 80%, na tal dívida do FMI que afogava o país, na ditadura, na repressão e tortura, na restrição à liberdade de imprensa, nas crises do petróleo, no plano Collor, nos fiscais do Sarney, nas prateleiras vazias dos supermercados, no overnight e em tanta coisa que felizmente se tornou passado.

O gerente, muito moço, me olhou desconfiado. Progredimos muito, sim – eu disse. Acrescentei que, bem ou mal, isso foi obra de muita gente, de muitos governos e, principalmente, do esforço da população, com erros, acertos e até mesmo a corrupção de sempre. Aliás - completei - é bom lembrar-se disso porque nos dias de hoje o que se diz é que tudo aconteceu de repente, talvez até o descobrimento do Brasil por Cabral tenha sido negociado com o governo.

Arre!

De confissões e arrependimentos

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A necessidade de confissão é um dos flagelos do homem. Confessa-se por purificação. Também se confessa por um incontrolável desejo de partilhar segredos por vezes inconfessáveis.

Confissões orais, sem gravadores por perto, ainda podem ser reconsideradas. Mas quando os pecados são narrados por escrito faz-se prova e aí resta torcer para que ninguém a encontre.

As pessoas que documentam suas confissões escrevem por dor ou prazer, compulsivamente. Há os que, diante de fracasso amoroso, decidem fazer um diário. Se as mazelas versarem sobre um(a) amante, o perigo é que cheguem à pessoa traída. Imagine o diário de um homem, que sofre pela amante, caindo nas mãos da mulher dele, a oficial. Tragédia, tragédia, tragédia.

A regra de ouro em casos assim é negar sempre, negar até a morte. Mas é impossível seguir a regra quando existe uma romântica confissão de próprio punho, fazendo parte de um diário. No mais, os homens costumam negar mais frequentemente  que as mulheres, talvez porque elas sejam mais decidas, determinadas.

As confissões por prazer também podem acarretar grandes problemas. É o que está acontecendo na França com um ministro do governo do presidente Sarkozy. Trata-se de Frederic Mitterrand, ministro da Cultura. Frederic é um homem de 62 anos de idade, sobrinho do ex-presidente François Mitterrand. Pois Frederic acaba de se envolver em um escândalo sexual por confissões incluídas num livro que escreveu: ele pagou meninos na Tailândia para manter relações sexuais com eles.

No livro intitulado “La mauvaise vie” Frederic confessa a sua liberdade e alegria em pagar a meninos por sexo nos bordéis de Bangcoc. Mais: o conhecimento das implicações do tráfico sexual não diminuía a atração dele por jovens garotos de programa.

Frederic Mitterrand anuncia que não pretende renunciar ao seu cargo no governo, embora acusado de estimular o turismo sexual.  Numa entrevista afirmou que seu livro não é totalmente autobiográfico, coisa em que ninguém parece acreditar.

Diante disso o que nos resta é especular sobre as razões que levam um cidadão que ocupa tão alto cargo a confessar com alegria as suas incursões num território que a quase totalidade das pessoas considera abominável. De fato, a prostituição infantil é repulsiva e tem merecido combate internacional para reprimi-la.

Frederic Mitterrand terá as razões de foro íntimo para narrar as suas aventuras com meninos e parece que nada houve de arrependimento em suas intenções. Ele fez como certos tipos que conhecemos que adoram dividir em detalhes as suas “faturas” com os amigos.

O que se seguirá a isso depende da velocidade com que as pessoas olvidam coisas que as constrangem. Se assim acontecer o presidente Sarkozy manterá no cargo o seu ministro e autobiografia que ele escreveu será confundida com ficção para que tudo se mantenha em perfeita ordem e o mundo continue a girar como se nada tivesse acontecido.

A festa do vizinho

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O vizinho do lado está dando uma festa. A música é dos anos 70 e, pelo ruído das batidas dos pés, as pessoas dançam. O som é alto e os Bee Gees estão arrepiando. A pessoa que comando som, o DJ da festa, volta e meia repete “Stayng Alive” e “Night Fever”.

A gritaria invade a madrugada. Imagino o meu vizinho, homem que usa sempre gravata e normalmente tão contido, metido nessa algazarra. A mãe dele, a senhora da cadeira de rodas que toma sol de manhã na área dos fundos do prédio, como estará agora?

Penso em ligar para a portaria para pedir silêncio, afinal são duas horas da manhã. Chego a tirar o interfone do gancho, mas desisto: em 364 dias por ano não ouço um só suspiro no apartamento do lado. Isso é assim todos os anos, excetuando-se a noite de 8 para 9 de setembro. Nessa noite tudo se transforma. De repente, começam a chegar flores, funcionários de um bufê trazem comidas e bebidas e, lá pela nove da noite, aparecem os convidados.

Já cruzei com muitos convidados do meu vizinho no elevador. São pessoas circunspectas como ele, homens de terno e gravata, mulheres com roupas de noite, pintadas e usando jóias. Nunca vi jovens, mas é provável que existam alguns no meio da gente que chega. A presença dos convidados, todos os anos na mesma data, significa que vai rolar a festa. Aliás, um detalhe me intriga: a festa sempre termina, religiosamente, às 3h30min da madrugada ao som do “Danúbio Azul” de Strauss.

Não sei o que isso significa. Por que justamente o “Danúbio Azul”? E às 3h30min da manhã? E com as pessoas de repente em profundo silêncio? Não sei. O que sei é que, depois disso, as pessoas vão embora, muito quietas e, a partir daí, não se ouve mais nada.

Como não consigo dormir nessas ocasiões, fico matutando sobre a possibilidade de o meu vizinho fazer parte de alguma confraria, talvez uma organização secreta, um novo tipo de maçonaria, sei lá. Pode até ser que essas pessoas sejam membros de um clube satânico como aquele do filme “O Bebê de Rosemary”. Nesse caso o meu vizinho teria alguma ligação com as regiões infernais e estaria a serviço do mal. Será?

Por volta das três da manhã a agitação aumenta. O DJ toca músicas do “Queen” e da banda “Chicago”. Depois repete “Stayng Alive” e pode-se perceber uma grande animação. Às 3h22min há um minuto de silêncio e aí começa o “Danúbio Azul”.

Quando a valsa de Strauss termina, a cena de todos os anos se repete: os convidados vão embora e nada mais se ouve.

É possível que de manhã, quando eu sair de casa, encontre o meu vizinho, como acontece em quase todos os dias. Ele estará com o seu terno, a gravata escura, e me desejará bom dia, circunspecto como sempre. Será assim durante todo o tempo, até a noite de 8 para 9 de setembro do próximo ano. Então o ritual se repetirá, haverá uma festa para os convidados que terminará as 3h30min da madrugada, pontualmente.

Não me surpreenderei se um dia vier a descobrir que o meu vizinho é o próprio diabo que, uma vez por ano, recebe seus asseclas para uma sessão pop de satanismo.

Vou ficar de olho nele.

Buraco na parede, buraco na vida

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Não é difícil imaginar o lugar. Trata-se de uma pequena galeria no centro da cidade onde existem cerca de 30 boxes de comércio. Você pode desenhá-la, se quiser: faça um retângulo; junto aos traços dos lados maiores coloque fileiras de boxes; no meio do retângulo desenhe uma só fileira de boxes abertos dos dois lados.

O que você não pode imaginar: a simplicidade do lugar. Aqui uma lan house com meia dúzia de computadores para acesso à internet; ao lado uma lojinha de roupas com dois manequins vestidos com roupas mal ajambradas; à frente um sapateiro; mais adiante um revendedor de pares de tênis de origem duvidosa; defronte, a lojinha do homem que conserta telefones; ao fundo, um salão de cabeleireiro onde mal cabem o profissional e a pessoa a quem atende. E assim por diante, numa sequência de simplicidades algo constrangedora e reveladora do perfil econômico dos consumidores que frequentam o lugar.

Os empresários das lojinhas convivem com a alternância de movimento comum ao comércio. São pessoas de rendas parcas que investiram o pouco que tinham nos negócios. Não é impossível a alguém que freqüente a galeria saber alguma coisa sobre os empresários: o jovem da lan house vai casar-se na próxima semana; a mulher que vende roupas é viúva e tem um filho em idade escolar; o sapateiro não só conserta calçados como vende botinas que recebe do interior; o cabeleireiro abriu seu salão há pouco tempo e cobra apenas sete reais pelo corte, visando fazer freguesia. Em comum para todos eles a luta pela vida, o sonho de melhorar só um pouco a dureza do dia-a-dia.

É nesse contexto que entra na história o buraco na parede. Ele é aberto por ladrões durante a noite, aproveitando o terreno vazio ao lado do imóvel onde fica a galeria. Feito o buraco os marginais entram na galeria e saqueiam todos os boxes. Do cabeleireiro levam as tesouras,  o secador, as toalhas e até o estabilizador de voltagem; da loja de conserto de telefones, todos os aparelhos que os clientes deixaram ali para consertar; da lojinha todas as peças de roupa; da lan house os seis computadores. E assim por diante, até que saem pela porta da frente com o produto do crime sem que ninguém os veja.

Não é possível descrever em detalhes o desespero dos empresários na manhã seguinte. O rapaz da lan house fecha seu negócio e avisa que vai adiar o seu casamento; o cabeleireiro sai atrás de um parente que empreste a ele algum dinheiro para a compra de tesouras e um secador; o homem que conserta telefones desespera-se porque não sabe como se justificar perante os clientes que deixaram ali os seus aparelhos; o sapateiro reclama pelas botas levadas e enfia a cabeça na meia-sola que precisa colocar num sapato; a mulher que vende roupas chora, inconsolável.

A polícia é chamada e corre o boato de que o crime foi obra de quatro ladrões. Os empresários conversam entre si, avaliando as possibilidades dos ladrões serem presos e assim recuperarem pelo menos alguns dos seus pertences. Horas depois chega a notícia de que os mesmos ladrões roubaram cinco casas na madrugada, mas que ainda não foram identificados e localizados.

No meio da tarde o buraco da parede é fechado. Fica o buraco nas vidas.

O Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2009

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O prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2009 acaba de ser conferido a três cientistas norte-americanos - Elizabeth Blackburn, Carol Greider e Jack Szostak - por seus trabalhos com cromossomos. Cromossomos são filamentos formados por uma grande molécula linear de DNA ligada a proteínas. As extremidades desses filamentos são chamadas telômeros e estão ligadas ao envelhecimento celular. Isso acontece porque as extremidades dos cromossomos encurtam na medida em que ocorre o envelhecimento. Entretanto, o envelhecimento é retardado pela ação de uma enzima, a telomerase, que permite a reposição de partes perdidas dos cromossomos.

A contribuição de Elizabeth H. Blackburn foi a descoberta da telomerase.  Tal descoberta permitiu a aquisição de novos conhecimentos sobre o comportamento dos cromossomos e de algumas doenças, entre elas o câncer. Sem a telomerase as pontas dos cromossomos se encurtam a cada vez que a célula se divide, danificando-os.

Carol W. Greider investigou a presença de telômeros nas extremidades dos cromossomos de um organismo unicelular.  Em seus trabalhos Greider constatou o papel protetor dos telômeros contra danos aos cromossomos. 

Jack W. Szostak foi premiado por suas contribuições ao campo da Genética. Segundo afirmou suas intenções eram entender os mecanismos muito básicos da replicação do DNA, sobre como os cromossomos permanecem intactos.

Nos organismos verifica-se que as gerações de células possuem telômeros cada vez mais curtos, excetuando-se alguns tipos celulares que se mantêm jovens. Se a uma célula normal fosse induzida a produzir telomerase ela se manteria sempre jovem. Por essa razão, a telomerase é conhecida como a enzima da imortalidade celular.

Atualmente sabe-se que a maioria dos tumores cancerosos é formada por células que possuem telomerase, provenientes de células que não os possuíam. Por essa razão, a indústria farmacêutica pesquisa substâncias capazes de inibir a telomerase. Esses inibidores seriam muito úteis no tratamento de tumores.

Notícias da manhã

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Ventou muito durante a madrugada. Os ventos chegaram do Sul com violência diminuída, mas ainda muito fortes.  Fizeram barulho, arrancaram telhas de casas, arremessaram-se contra as janelas.

Os noticiários da manhã começaram com informações sobre o vento e a chuva. Em Porto Alegre trinta postes de iluminação caíram e bairros estão sem luz. Em Santa Catarina a chuva agravou ainda mais a situação de municípios que já sofriam com inundações.

As imagens de destruição vêm de toda parte. Na Indonésia um terremoto provocou uma avalanche que vitimou várias pessoas. Uma câmera de vigilância gravou imagens de pessoas desesperadas correndo para fora de um hotel que começava a desabar. Nem todos conseguiram sair e agora procuram-se vítimas nos escombros do hotel completamente destruído.

Você dormia  enquanto tudo isso acontecia, incomodado com os uivos do vento e o barulho das venezianas batendo.

Durante o café da manhã, mais notícias chegam. Agora já não se fala sobre vento e chuvas, mas sobre filiações partidárias. É chegada o momento dos puxadores de voto filiaram-se a partidos garantindo votos para as legendas. É bom lembrar que dos mais de 500 deputados federais eleitos no último pleito apenas 40 venceram às custas dos votos que receberam.  Os demais se beneficiaram dos votos das legendas.  Por essas e outras o ex-jogador Romário filiou-se a um partido.  Aconteceu que ele pretendia filiar-se ao PSDB, mas por descuido filiou-se ao PSB. O erro fica por conta da semelhança das siglas já que provavelmente o ex-jogador não estava se filiando a um partido por razões ideológicas.

Você vê tudo isso na televisão enquanto se prepara para sair de casa e enfrentar o dia de trabalho. Até aí mesmo os absurdos parecem normais porque se tornaram cotidianos. O mundo é irremediavelmente absurdo e parece que nada existe para se fazer a respeito. Você já nem pensa mesmo em fazer alguma coisa porque se sente impotente para mudar o rumo do que quer que seja.

Está assim, entre animado e desanimado, mais para conformado com o rumo inexorável das coisas quando vê, na telinha da televisão, um trator em meio a uma plantação de laranjas. São inúmeras pequenas árvores enfileiradas que vão sendo abatidas, uma a uma, pelo trator.

O mundo é absurdo, mas o que você está vendo é irracional demais, não tem sentido. Você pensa no trabalho de pessoas para fazer a plantação e a destruição pura e simples de tudo consegue finalmente abalar o seu conformismo. Você não vai à janela para gritar, não esmurra a parede. Entretanto aquilo rompe momentaneamente a sua relação de racionalidade com o mundo.

Você está assim, indignado, quando ouve o locutor dizer que se trata de um trator do MST derrubando a plantação em mais uma manobra de ocupação.

Você não ouve o fim a notícia. As explicações simplesmente não interessam e você desliga a televisão com um safanão.

Saindo para trabalhar encontra no elevador uma criança que sorri e o leva a ponderar sobre porque o mundo é assim, porque tudo é tão mal feito.

O neto de Elvis Presley

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O neto de Elvis Presley assina contrato de 5 milhões de dólares com a Universal para gravar cinco discos. Benjamin Presley tem 17 anos de idade e é filho de Lisa Marie Presley, filha de Elvis.

A notícia nada diz sobre o talento musical de Benjamin, exceto que ele declara ser seu trabalho diferente do de seu avô. Entretanto, o fato desperta curiosidade: quem será esse Benjamin, tão jovem e já assinando um rico contrato com grande gravadora? Qual o peso do sobrenome Presley na transação?

Quando li no jornal sobre o neto de Elvis algo me pareceu fora de lugar. A princípio não consegui identificar o que me causou estranheza na notícia. Afinal, não parece haver nada de anormal no fato de um jovem presumivelmente talentoso ser contratado para gravar discos, ainda mais com as coisas facilitadas pelo seu sobrenome. 

Foi só depois de algum tempo que consegui identificar a razão do meu desconforto: nada a ver com a juventude de Benjamin, com o Presley de seu nome ou com a alta soma de dinheiro que receberá: o que está fora de lugar é a associação entre o nome Elvis Presley e a palavra avô.

Ora, uma cara como Elvis jamais poderia ser avô de ninguém, até porque ele não envelheceu. Avô é um cidadão de duas gerações passadas, teoricamente um sujeito de cabelos brancos e circunspecto. Avôs não comparecem ao programa de Ed Sullivam com uma banda e são filmados apenas da cintura para cima para não ofender a moral da época; avôs não precisam provar que são bons rapazes e não estimulam a degradação de costumes da juventude; avôs não dançam movendo louca e sugestivamente o ventre enquanto cantam rock, dando início a uma nova era musical; avôs não são apelidados de “Elvis The Pelvis”; avôs não encetam a revolução pioneira realizada por Elvis que passa a ser perseguido por reacionários e gente de todas as etnias; e assim por diante.

Não adianta, é impossível pensar em Elvis como avô de alguém. No máximo pode-se aceitar a figura de Elvis um pouco mais velho, proporcionando shows memoráveis a grandes platéias.

Elvis Presley morreu em 16 de agosto de 1977. Tinha 42 anos de idade. De certa forma pode-se supor que ele tenha conseguido parar o tempo já na década de 60 quando se tornou uma atração internacional. A partir daí ele simplesmente não envelheceu: aprimorou-se cada vez mais com a sua grande voz e preciosas interpretações. Não importa que os anos tenham passado para ele - poucos na verdade, porque morreu cedo -, nem que entre a data de sua morte e o dia de hoje tenham decorrido outros muitos anos: Elvis permanece jovem, muito jovem, cantando e dançando.

Elvis atraiu multidões e rompeu inúmeros paradigmas. Ele criou um novo jeito se ser e arrastou multidões com a sua música. Aqueles que atribuíram o sucesso ao seu aspecto físico e à novidade de suas apresentações estavam enganados. Elvis sobrevive até hoje graças ao seu talento e ousadia musical.

As pessoas mais jovens talvez não possam avaliar o que representa, num mundo em que reina certa ordem de costumes, o surgimento de um ícone da estatura de Elvis Presley. Uma coisa é assistir hoje em dia a filmes de apresentação do cantor ou ouvir as suas gravações. Outra é estar no mundo dos anos sessenta, seguir a onda Elvis através de jornais e revistas e ouvir as suas músicas no momento em que foram lançadas. A sensação de ouvir “Jailhouse Rock” no instante em que se tornou sucesso mundial não cabe em palavras. Talvez também seja impossível reproduzir aquele Brasil dos anos sessenta, subdesenvolvido, marginal na economia mundial e a juventude de um país de terceiro-mundo que, desde os anos cinquenta, ouvia e dançava rock para o espanto das suas famílias.

Eles continuam todos lá, Elvis e essa gente toda, cantando e dançando no passado, estalando os dedos, movendo os ventres, arriscando passos ousados, afrontando os costumes. Ninguém envelheceu. Por isso, Elvis não pode ser avô e a notícia está errada.

Não importa o que digam, a verdade é que no imaginário popular Elvis continua tão jovem quanto Benjamin.

Adeus a um amigo

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O Dito Neves morreu nessa madrugada de enfarte. Era desses caras que não carecem de obituário: fez em vida um pouco de tudo, da valentia à passividade, da mesura ao gesto violento, da arrogância a esse jeito tão dele de conformado.

Nunca esteve no meio termo e, se parou nele, foi como o equilibrista que dá um breque na andança sobre a corda, isso pelas alturas do vigésimo terceiro andar. No mais, atacou sempre pelos extremos, indo e vindo na velocidade de um cérebro arredio e sempre em estranhamento com as coisas do mundo.

Foi o que foi. É impossível para qualquer de nós que o conhecíamos deixar de vê-lo com o seu terno e gravata, sorriso de mofa nos lábios, maneirismo estudado, um gentlemam de repente convertido a qualquer seita dirigida por uma bela mulher, pronto a professar uma fé que a conduzisse ao leito. Mas não se pense que era mulherengo! Não! Antes, foi um soldado que jamais fugiu ao compromisso de homem - conforme alertava.

Certa vez perguntei ao Dito Neves. – ele que se meteu em tanta briga de rua – se era capaz de matar. Não pensou muito. Olhou-me com o jeito do professor que se prepara para uma lição e veio com essa de que sempre bateu para matar, o diabo é que ninguém havia morrido.

Então é tarde e penso que essa é a primeira noite do Dito Neves no cemitério, debaixo da terra. Penso nele frio, dentro do seu terno, sem sorriso, sem nada, sem histórias. Acabado. Me vem a certeza de que ele riria desse texto, acharia perda de tempo, absurdo. Quase me comovo ao constatar esse fato, mas me ocorre que o texto sobre a morte dele é tudo que me resta e posso fazer, agora que ele se foi e está lá debaixo da terra, dentro do seu terno húmido, enquanto continuo aqui, lembrando e esperando.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 outubro, 2009 às 7:59 am

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Ingmar Bergman

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Seis esposas e nove filhos talvez seja muito para um homem qualquer. Ocorre que Ingmar Bergman nunca foi um homem qualquer.  Por isso, ao morrer em 2007, deixou ordens expressas para que seus bens não fossem divididos, fato que certamente ocasionaria problemas. Ao invés disso, determinou que os bens fossem a leilão e o dinheiro dividido entre seus familiares.

O concorrido leilão aconteceu em Estocolmo. Leiloaram-se fotos, cadeiras, livros, jogos de xadrez, enfim todos os pertences de Bergman incluindo-se a casa na ilha de Faro onde ele passava seus aniversários.  O resultado foi surpreendente arrecadando-se valores muito superiores aos inicialmente estimados: a maquete de madeira de um teatro foi vendida por  150.000 dólares; uma foto de Bergman junto com o compositor Stravinsky alcançou a cifra de 3800 dólares.

Não deixa de ser interessante o fato de pessoas almejarem ter algo que pertenceu ao grande cineasta e dramaturgo sueco. É como se cada um brigasse por ficar com um pedaço dele para mantê-lo vivo em suas memórias. Idolatria profunda e sentimental.

Ora, mas se Bergman continua vivo nos vários filmes que nos deixou. Ele está no complexo “Persona”, em “Cenas de um casamento”, em “Morangos Silvestres”, em “O Ovo da Serpente”, em “Fanny e Alexander” e em tantos outros filmes que ainda hoje nos dizem tanto.

O primeiro filme de Bergman a que assisti foi “A Fonte da Donzela”, não me lembro quando (o filme é de 1959). A atmosfera densa da trama impressionou-me de tal modo que ainda hoje, passados muitos anos, posso reconstituir as emoções sugeridas pelo filme. Há muito de solenidade na história que se passa no século XIV, na qual pastores de cabra estupram uma donzela e são acolhidos pelo pai dela em sua casa. A forma como o pai os recebe, a constatação de que são os assassinos da filha e o ritual a que obedece antes de fazer justiça com as próprias mãos é inesquecível. Tudo isso numa produção simples na qual violência, vingança e necessidade de redenção estão presentes.

Cada época tem as suas referências e os seus grandes nomes. Serve de consolo à rotina de cada dia saber que em algum lugar existe alguém pensando por nós, produzindo por nós, desafiando a mesmice por nós. Bergman foi um desses ícones de uma época na qual pontuou como reserva de inteligência num mundo sempre propenso à danação.

Acontece com a arte a dupla inferência de ser produzida pelo homem e interferir nas consciências e destinos do próprio homem. Ela nos devolve a racionalidade quando a estupidez humana converte a realidade em algo irracional. A arte nos seduz e faz-nos clamar pela vida quando o desespero nos convida a abandoná-la. A observação de um quadro de Picasso pode mudar o destino de um homem, sugerindo a ele algo além daquilo que a sua imaginação poderia construir. Daí ser a arte também um refúgio ao qual recorremos nas situações extremas quando nada parece valer nada e a vida carece de sentido.

Ingmar Bergman foi um artífice da grande arte. Ele expôs em profundidade nas telas as nossas almas, permitindo-nos observá-las. Em seus filmes Bergman redesenhou a natureza das suas personagens, mostrando-as como extensões de nós mesmos com nossas aspirações e imperfeições.

Entretanto, Bergman se foi e a notícia do leilão de seus pertences causa nostalgia. Existe algo de terrível nessa dispersão dos seus pertences como se a última vontade do cineasta fosse a de apagar traços de sua existência física.

Penso que quando o último comprador levar para casa o último objeto que pertenceu a Bergman ele terá finalmente desaparecido por completo. A partir daí sobreviverá apenas a arte com a qual ele impregnou os seus filmes. O nome disso é sublimação.