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Ingmar Bergman

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Seis esposas e nove filhos talvez seja muito para um homem qualquer. Ocorre que Ingmar Bergman nunca foi um homem qualquer.  Por isso, ao morrer em 2007, deixou ordens expressas para que seus bens não fossem divididos, fato que certamente ocasionaria problemas. Ao invés disso, determinou que os bens fossem a leilão e o dinheiro dividido entre seus familiares.

O concorrido leilão aconteceu em Estocolmo. Leiloaram-se fotos, cadeiras, livros, jogos de xadrez, enfim todos os pertences de Bergman incluindo-se a casa na ilha de Faro onde ele passava seus aniversários.  O resultado foi surpreendente arrecadando-se valores muito superiores aos inicialmente estimados: a maquete de madeira de um teatro foi vendida por  150.000 dólares; uma foto de Bergman junto com o compositor Stravinsky alcançou a cifra de 3800 dólares.

Não deixa de ser interessante o fato de pessoas almejarem ter algo que pertenceu ao grande cineasta e dramaturgo sueco. É como se cada um brigasse por ficar com um pedaço dele para mantê-lo vivo em suas memórias. Idolatria profunda e sentimental.

Ora, mas se Bergman continua vivo nos vários filmes que nos deixou. Ele está no complexo “Persona”, em “Cenas de um casamento”, em “Morangos Silvestres”, em “O Ovo da Serpente”, em “Fanny e Alexander” e em tantos outros filmes que ainda hoje nos dizem tanto.

O primeiro filme de Bergman a que assisti foi “A Fonte da Donzela”, não me lembro quando (o filme é de 1959). A atmosfera densa da trama impressionou-me de tal modo que ainda hoje, passados muitos anos, posso reconstituir as emoções sugeridas pelo filme. Há muito de solenidade na história que se passa no século XIV, na qual pastores de cabra estupram uma donzela e são acolhidos pelo pai dela em sua casa. A forma como o pai os recebe, a constatação de que são os assassinos da filha e o ritual a que obedece antes de fazer justiça com as próprias mãos é inesquecível. Tudo isso numa produção simples na qual violência, vingança e necessidade de redenção estão presentes.

Cada época tem as suas referências e os seus grandes nomes. Serve de consolo à rotina de cada dia saber que em algum lugar existe alguém pensando por nós, produzindo por nós, desafiando a mesmice por nós. Bergman foi um desses ícones de uma época na qual pontuou como reserva de inteligência num mundo sempre propenso à danação.

Acontece com a arte a dupla inferência de ser produzida pelo homem e interferir nas consciências e destinos do próprio homem. Ela nos devolve a racionalidade quando a estupidez humana converte a realidade em algo irracional. A arte nos seduz e faz-nos clamar pela vida quando o desespero nos convida a abandoná-la. A observação de um quadro de Picasso pode mudar o destino de um homem, sugerindo a ele algo além daquilo que a sua imaginação poderia construir. Daí ser a arte também um refúgio ao qual recorremos nas situações extremas quando nada parece valer nada e a vida carece de sentido.

Ingmar Bergman foi um artífice da grande arte. Ele expôs em profundidade nas telas as nossas almas, permitindo-nos observá-las. Em seus filmes Bergman redesenhou a natureza das suas personagens, mostrando-as como extensões de nós mesmos com nossas aspirações e imperfeições.

Entretanto, Bergman se foi e a notícia do leilão de seus pertences causa nostalgia. Existe algo de terrível nessa dispersão dos seus pertences como se a última vontade do cineasta fosse a de apagar traços de sua existência física.

Penso que quando o último comprador levar para casa o último objeto que pertenceu a Bergman ele terá finalmente desaparecido por completo. A partir daí sobreviverá apenas a arte com a qual ele impregnou os seus filmes. O nome disso é sublimação.