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A eternidade dos Beatles

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A discussão sobre a existência da eternidade empolga filósofos e estudiosos de várias áreas. O escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu páginas memoráveis sobre o assunto. Eternidade significa algo que não acaba, que é para sempre. Os que duvidam da existência dela advogam que tudo tem um fim, daí que nada pode ser eterno. As diferentes religiões ligam a eternidade à existência de Deus, criador de todas as coisas – entre elas o tempo – sendo Ele mesmo eterno e tendo-se pronunciado como o princípio e o fim de todas as coisas.

Para alguns a existência da eternidade esbarra na condição de que exista alguém para confirmá-la; nesse caso a testemunha seria necessariamente eterna. Segundo os que pensam desse modo uma eternidade vazia careceria de sentido. Com eles não concordam os que consideram a possibilidade de ocorrência de fatos que simplesmente escapam ao entendimento humano. Referem-se esses últimos a questões insolúveis sobre as quais todo o conhecimento não alcança explicações. A questão da Santíssima Trindade seria um dos enigmas insolúveis para o homem; a eternidade outro.

Dos exegetas que condicionam a existência ao testemunho deriva o fato de que, para homem comum, a duração da eternidade coincide com o período de sua vida. Em outras palavras, para mim é eterno aquilo que dura o tempo em que estou vivo e posso testemunhar. Obviamente, esse modo de ver tem a contrapartida daqueles que ligam a noção de eternidade a algo além da vida, dado que essa é finita.

Em todo caso, o fato é que de nada me adianta algo que durará para sempre sem a minha presença. E se o meu testemunho é fundamental para que algo exista e seja eterno, posso dizer que os Beatles são eternos e que Paul McCartney nada mais faz que confirmar a eternidade deles. E o faz com a precisão e arte necessárias para manter o respeito à obra que ajudou a criar.

Os noticiários falam sobre o virtuosismo de Paul, seu show impecável e insistem na presença de pessoas de várias idades no enorme público que ontem compareceu ao Morumbi. Emoções a parte, trata-se do ciclo da eternidade da música dos Beatles em cada pessoa. Ciclo de maravilhas transcritas num show de inacreditável beleza, comandado por um homem capaz de operar milagres de sensibilidade. Ciclo que permanecerá mesmo depois de Paul, talvez por séculos a fio desde que o som dos Beatles continue a ser ouvido.

Beleza, beleza em estado puro, intemporal, o show de Paul McCartney. Sensação de estar num rio dentro de um barco, com árvores de tangerina e céu de marmelada. Tal como Lucy in the Sky with Diamonds.

Paroles, Paroles

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Aquela voz masculina que se ouve ao fundo da canção “Paroles, Paroles”, interpretada pela cantora Dalida, você sabe de quem é? Não? Olhe, a voz pertence ao ator francês Alain Delon.

parole-paroleNuma propaganda veiculada, tempos atrás, se dizia: o tempo passa, o tempo voa. Pois é, o tempo passa, o tempo voa. Acontece a todo mundo envelhecer, aconteceu também a Alain Delon que agora anda pelos 75 anos de idade.

O Alain Delon? Pois é, ele mesmo. O cara era proprietário de uma beleza incomum, lembra-se? Foi protaganista de filmes importantes, símbolo sexual nas décadas de 60 e 70, trabalhou com diretores de peso, foi casado com Romy Schneider e Natalie Delon. Fez o diabo por mundo afora até entrar aqui em casa hoje por meio de uma foto tirada ontem, durante a sua participação num programa de TV em Cannes.

E daí? Daí que não são justas as rugas no rosto e os cabelos brancos. Não no Alain Delon. Para ele deveriam ter aberto alguma exceção porque o Delon a que nos habituamos é o de “O Sol por Testemunha”, “ O Leopardo” e outros filmes.

Não que o atual Delon não esteja bem, pelo amor de Deus, não se trata disso. É que ele estava melhor no papel de ícone, no qual, aliás, continua vivo nas memórias. Então - parece estranho dizer - a verdade é que talvez seja melhor não entrar em contato com fotos recentes para que nas nossas lembranças permaneçam, intocadas, apenas as imagens do passado. Não é assim com Brigitte Bardot? Quem vai a Búzios e passa pela estátua da atriz francesa na calçada, sentada, vigiando o mar, de qual Brigitte exatamente se lembra? A de ontem? A de hoje?

Num de seus livros o escritor argentino Julio Cortázar inclui um conto cujo título é “A noite de Mantequilla”. A narrativa se dá em torno da luta entre o argentino Carlito Monzón, então campeão mundial dos médios, e José Mantequilla Nápoles. A luta foi realizada em Paris – fevereiro de 1974 – com a vitória de Monzón no sétimo round. Alain Delon foi o promotor do evento e Cortázar refere-se à arena montada pelo ator para a realização da luta.

A observação anterior prende-se a um leque de informações sobre um ícone do cinema do século 20. Mas, o tempo passa, o tempo voa, não perdoa ninguém, corrói ícones, destrói aparências até que, finalmente, reduz tudo a pó. É pena. Ainda bem que o cinema guarda, intactas, cenas do passado que subitamente se convertem em presente.Trata-se de um dos milagres da chamada grande arte, dos poucos meios de que dispomos para enganar a passagem do tempo.

Viva o cinema! Vivas aos ícones que preencheram e preenchem as lacunas da nossa imaginação! Eles são eternos, não envelhecem, nunca morrem, podemos revê-los a qualquer momento, na maioria das vezes na intimidade das salas de nossas casas. Basta um clique no controle remoto. Pronto: a fantasia suplanta a realidade e nos enche de esperança sobre a eternidade.

Águas de março

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De vez em quando ouço “Águas de Março”. A gravação feita por Tom Jobim e Elis Regina é classificada por Leonard Feather, um dos mais renomados críticos de jazz, entre as dez melhores de todos os tempos.

Em “Águas de Março” Tom e Elis enfiam a mão no sagrado, sem a menor cerimônia. Eles simplesmente atravessam a fronteira do impossível e nos enviam as suas vozes de um oásis onde tudo é perfeito e absoluto. É de outra dimensão que nos acenam os dois artistas, atingindo o estado superior que o escritor Julio Cortázar traduziu em palavras:

“Se existe um dom divino no artista, esse dom não é a sua arte, conquista humana; esse dom é a entrega generosa que o artista faz de seu cosmos para que outros humanos possam se inclinar sobre ele, maravilhar-se e sentir-se um pouco acima do panorama cotidiano.”1

 Maravilhado: assim recebo a generosidade de Tom e Elis a cada vez que ouço “Águas de Março”.

1. Julio Cortázar, Papeles Inesperados. Editora Alfaguara, Buenos Aires, 2009.

Tango

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tangoQuase dez da noite de domingo e não se encontram táxis nas ruas de Buenos Aires porque o Boca está jogando e os condutores estão em casa vendo o jogo pela televisão. Para todo lado o que se ouve é Boca, Boca, Booocaaa. Os argentinos são apaixonados por futebol tanto quanto os brasileiros. O principal jornal esportivo, o “Olé”, ainda não perdeu a mania de dar pauladas nos brasileiros embora - fazendo justiça a eles - reconheçam a força e o valor dos adversários. Há na Argentina o respeito pela arte, daí que os grandes jogadores são considerados independentemente das suas nacionalidades.

Na porta do Café Tortoni, o mais antigo da cidade, está a fila de sempre, com pessoas esperando a vez para entrar. O Tortoni é um espaço emblemático frequentado no passado por Carlos Gardel, Luigi Pirandello, Federico García Lorca e Artur Rubinstein entre outros artistas, Os que vêm para o espetáculo de tango não precisam entrar na fila, basta apresentar o ingresso comprado com antecedência para que um rapaz os acompanhe até a sala Alfonsina Storni.

São pouco mais de dez da noite quando o maestro Jorge Rattoni entra no palco com o seu quarteto e abre a noite com um tango de Gardel. A coreografia do espetáculo difere de outros shows de tango mais estilizados e com a participação de vários dançarinos. Aqui a trupe se reduz a um casal que, de vez em quando, vem ao palco para dançar enquanto o quarteto executa um de seus números.

A temperatura musical esquenta depressa com a sucessão de tangos conhecidos, executados em estilo puro e original. Rattoni esmera-se ao piano impondo o ritmo que é seguido pelos instrumentistas do bandoneon, do baixo e do violino. Depois de três números do quarteto, finalmente aparece o “cantante”, com sua poderosa voz interpretando músicas como “Por uma cabeza”.

O grande momento do espetáculo é reservado para a execução de “Adiós Nonino” de Astor Piazzola. É quando o bandoneón cresce em sua execução trazendo ao público imagens ligadas à perda do pai que levou  Piazzola a compor a música. Ao final de “Adiós Nonino” o público aplaude longamente e Rattoni agradece em nome do grupo.

O show dura pouco mais de uma hora. Quando termina fica a sensação de que deveria continuar, ainda que só um pouco mais.

No fim, Rattoni está perto do balcão, junto à entrada da sala Alfonsina. É um homem de estatura média, cabelos e barba muito brancos, que transpira bondade. Aproximo-me dele e pergunto sobre a sua formação clássica. Ele me diz que de fato a sua formação é clássica, mas que derivou para o tango, sua paixão. Falamos sobre música e ele me diz que gosta muito da brasileira. Pergunto a ele se toca em outros lugares. Ele sorri dizendo que há treze anos apresenta-se exclusivamente na sala Alfonsina do Café Tortoni. Gosta de sala pequena, intimista e rica em histórias ligadas ao tango.

A conversa termina quando um homem traz um CD para Rattoni autografar. Despedimo-nos com um abraço e sinto que levarei um pouco de tango na mala de viagem em meu retorno ao Brasil.

Findo o espetáculo, encontro a Avenida de Mayo praticamente vazia. Na porta do Tortoni há táxis esperando por fregueses. O jogo da Boca terminou e os táxis voltaram às ruas. O mundo parece normal quando passo perto do Obelisco, lembrando-me da execução de “La Cumparsita” e de meus pais dançando na sala de nossa antiga casa, eles que amavam tanto o tango, tão bonitos dançando, dançando eternamente.

O neto de Elvis Presley

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O neto de Elvis Presley assina contrato de 5 milhões de dólares com a Universal para gravar cinco discos. Benjamin Presley tem 17 anos de idade e é filho de Lisa Marie Presley, filha de Elvis.

A notícia nada diz sobre o talento musical de Benjamin, exceto que ele declara ser seu trabalho diferente do de seu avô. Entretanto, o fato desperta curiosidade: quem será esse Benjamin, tão jovem e já assinando um rico contrato com grande gravadora? Qual o peso do sobrenome Presley na transação?

Quando li no jornal sobre o neto de Elvis algo me pareceu fora de lugar. A princípio não consegui identificar o que me causou estranheza na notícia. Afinal, não parece haver nada de anormal no fato de um jovem presumivelmente talentoso ser contratado para gravar discos, ainda mais com as coisas facilitadas pelo seu sobrenome. 

Foi só depois de algum tempo que consegui identificar a razão do meu desconforto: nada a ver com a juventude de Benjamin, com o Presley de seu nome ou com a alta soma de dinheiro que receberá: o que está fora de lugar é a associação entre o nome Elvis Presley e a palavra avô.

Ora, uma cara como Elvis jamais poderia ser avô de ninguém, até porque ele não envelheceu. Avô é um cidadão de duas gerações passadas, teoricamente um sujeito de cabelos brancos e circunspecto. Avôs não comparecem ao programa de Ed Sullivam com uma banda e são filmados apenas da cintura para cima para não ofender a moral da época; avôs não precisam provar que são bons rapazes e não estimulam a degradação de costumes da juventude; avôs não dançam movendo louca e sugestivamente o ventre enquanto cantam rock, dando início a uma nova era musical; avôs não são apelidados de “Elvis The Pelvis”; avôs não encetam a revolução pioneira realizada por Elvis que passa a ser perseguido por reacionários e gente de todas as etnias; e assim por diante.

Não adianta, é impossível pensar em Elvis como avô de alguém. No máximo pode-se aceitar a figura de Elvis um pouco mais velho, proporcionando shows memoráveis a grandes platéias.

Elvis Presley morreu em 16 de agosto de 1977. Tinha 42 anos de idade. De certa forma pode-se supor que ele tenha conseguido parar o tempo já na década de 60 quando se tornou uma atração internacional. A partir daí ele simplesmente não envelheceu: aprimorou-se cada vez mais com a sua grande voz e preciosas interpretações. Não importa que os anos tenham passado para ele - poucos na verdade, porque morreu cedo -, nem que entre a data de sua morte e o dia de hoje tenham decorrido outros muitos anos: Elvis permanece jovem, muito jovem, cantando e dançando.

Elvis atraiu multidões e rompeu inúmeros paradigmas. Ele criou um novo jeito se ser e arrastou multidões com a sua música. Aqueles que atribuíram o sucesso ao seu aspecto físico e à novidade de suas apresentações estavam enganados. Elvis sobrevive até hoje graças ao seu talento e ousadia musical.

As pessoas mais jovens talvez não possam avaliar o que representa, num mundo em que reina certa ordem de costumes, o surgimento de um ícone da estatura de Elvis Presley. Uma coisa é assistir hoje em dia a filmes de apresentação do cantor ou ouvir as suas gravações. Outra é estar no mundo dos anos sessenta, seguir a onda Elvis através de jornais e revistas e ouvir as suas músicas no momento em que foram lançadas. A sensação de ouvir “Jailhouse Rock” no instante em que se tornou sucesso mundial não cabe em palavras. Talvez também seja impossível reproduzir aquele Brasil dos anos sessenta, subdesenvolvido, marginal na economia mundial e a juventude de um país de terceiro-mundo que, desde os anos cinquenta, ouvia e dançava rock para o espanto das suas famílias.

Eles continuam todos lá, Elvis e essa gente toda, cantando e dançando no passado, estalando os dedos, movendo os ventres, arriscando passos ousados, afrontando os costumes. Ninguém envelheceu. Por isso, Elvis não pode ser avô e a notícia está errada.

Não importa o que digam, a verdade é que no imaginário popular Elvis continua tão jovem quanto Benjamin.