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O meu múnus

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Você já cumpriu o seu “múnus” hoje? Não sabe o que significa? Pelo visto a palavra é mais utilizada no meio jurídico, pelo menos foi numa declaração da promotoria pública que eu a vi. Confesso que também não sabia o significado de “múnus” daí buscar sapiência no “Houaiss”. No dicionário fiquei sabendo que “múnus” é um substantivo masculino de dois números cujo significado é “tarefa, dever obrigatório de um indivíduo; encargo, obrigação”.

Assim. Portanto cada um tem o seu múnus nessa vida. Na verdade hoje em dia a vida anda complicada daí que podemos ter mais de um múnus a enfrentar. São tantos os encargos, as obrigações impostas pela vida em sociedade que haja paciência para tantos múnus.

Pois conheci um camarada que não teve múnus. Dirão que é impossível porque não existe quem não tenha pelo menos um dever obrigatório a cumprir. Ele decidiu não ter. Na verdade era um sujeito muito lido e a pedra de toque que o levou a uma vida sem compromissos foi o livro “Cândido” do Voltaire. Os conselhos do Dr. Pangloss a Cândido feriram fundo a alma do amigo de quem falo. À semelhança de Cândido o meu amigo se desiludiu ao experimentar as dificuldades do mundo. Como se sabe Cândido não chegou a rejeitar o otimismo de Pangloss para quem “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”, mas substituiu-o por outro dizer: “devemos cultivar nosso jardim.” O homem de quem falo ficou entre os dois: não acreditava no melhor dos mundos e não se movia para cultivar nada. Desse modo viveu na casa que herdou dos pais e deixou de ir à rua. Uma irmã abnegada cuidava de trazer-lhe comida. Despediu-se do mundo silenciosamente. No enterro a irmã, o cunhado e eu que nunca deixei de acompanhar aquela rara experiência de vida.

Mas, ao meu múnus. Para mim o múnus tem sido um fardo pesado demais a carregar. Com o passar dos anos as forças já não são as mesmas, mas o fardo parece ganhar cada vez mais peso. Não sei se depois, no momento da morte, deixa-se o múnus para trás. Conheço uma mulher que acredita na continuação da vida após a morte, não só isso, mas no fato de que se continua a trabalhar no mesmo ramo ao se chegar ao outro mundo. Caso seja assim, o múnus será, Infelizmente, eterno. Mas, não é que se prega por aí que a morte é o repouso definitivo?

A ver.

Santo Antônio

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Vi o velho Rubens ajoelhado diante do altar. Face constrangida, olhos lacrimosos, terço na mão, orava, rogando aos céus a ajuda impossível. O neto o traíra, levando-o a vender a fazenda para aplicar o dinheiro que se multiplicaria. O neto viveu no paraíso com o dinheiro do avô, morando na cidade grande e alimentando toda sorte de vícios. Ao velho Rubens restaram apenas o desespero e a espera do milagre que nunca viria.

Também vi ajoelhado aquele Valdir que vingou-se do próprio tio que o havia lesado num negócio. Valdir esperou pelo tio numa curva da estrada e, ao vê-lo, atirou em seu peito, impiedosamente. Perseguido pela sombra do tio morto Valdir refugiou-se  na oração, implorando misericórdia aos céus. Quando o vi ele ainda não sabia que minutos depois o Zeca da polícia ia algemá-lo e prendê-lo, fato que desesperou a mulher dele e filhos os quais jamais entenderam a razão do crime.

Também vi o padre que diziam cortejar mocinhas, a carola que cantava nas procissões, as multidões que beijavam o Senhor morto em seu esquife, a missa de corpo presente do Tanarico Mendes, o casamento do Manfredo que se desfaria dois dias depois e o batismo de uma criança que viria a ser importante juiz.

Posso dizer que estavam todos presentes na igreja porque, isso garanto, eu os vi. Também os viu o Santo Antônio que nunca saiu do principal nicho do altar e ouviu a toda essa gente, nem sempre podendo ajudar.

Minha avó contava que nas noites os mortos visitam as igrejas onde rezaram , talvez por isso eu os tenha encontrado, agora que todos  dormem o sono que nunca termina.

Escrito por Ayrton Marcondes

6 julho, 2013 às 7:10 pm

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Manhã de sol

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Manhã nítida, fachadas de tintas revigoradas. Dia bom para tudo porque nas ruas ainda desertas da primeira hora da manhã nada está fora do lugar..

De repente surge uma velha senhora saída talvez do nada, carregando uma sombrinha a conselho de seu senso de previdência porque não vai chover. Andando devagar ela desce da calçada e se dirige ao meio da rua, tão lenta e calmamente que me pergunto se de fato ela está ali ou não passa de imagem criada pela minha imaginação.

Pois a velha senhora ainda está no meio da rua quando surge um carro em velocidade e nem tenho tempo de fechar os olhos para não ver a tragédia que se desenha e me parece inevitável. Mas, incompreensivelmente, o carro não chega até ela, breca subitamente, um rapaz grita algo que não entendo e a cena para com a velha senhora seguindo em frente, como se ignorasse o perigo que quase roubou a sua vida há apenas um instante.

Meio sem jeito, afobado, corro até ela, pergunto se está bem, se precisa de algo. Só então percebo que a velha senhora não é velha, trata-se de uma moça que me olha e sorri sem nada dizer. Então do carro desce o rapaz que vem na direção da moça e diz que a cena será exatamente essa, o ensaio deu certo.

Não sei dizer como o rapaz e a moça sumiram, nem se aquele padre de batina que vinha do outro lado era real. Mas é manhã de sábado, o dia apenas amanhece, há sol batendo nas janelas fechadas e um homem me ajuda a levantar, perguntando se me recuperei, eu que havia caído na calçada, talvez um desmaio, um simples desmaio ou alucinação que me aconteceu nesta manhã quando a caminho da padaria.

Escrito por Ayrton Marcondes

2 fevereiro, 2013 às 8:07 pm

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Noite de sábado

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Ella Fitzgerald canta “Desafinado” e ressuscita outras tantas noites de sábado como aquela em que o Nê, bêbado de cair, batia à janela do quarto e implorava por um disco de Ataulfo Alves. Mas, era preciso que Ella terminasse para que, então, viesse o Ataulfo com o seu samba, invadindo as almas com a dor de amores perdidos.

O Nê, a Ella e o Ataulfo desapareceram há muito tempo. O Nê foi levado por um câncer. Ele que era tão forte e apaixonado pela vida morreu antes dos 50 de idade, deixando um vazio enorme na memória dos que o conheceram.

Mas, nesta noite de sábado me ocorre que também quase todas aquelas pessoas das noites de sábado desapareceram. Uns últimos retardatários erram por aí, nesse louco mundo, resistindo bravamente aos apelos da morte. Hoje mesmo veio a notícia de que o Carlos está mal, internado em hospital. A doença terminal do Carlos confirma como essa vida é estranha, absurda, principalmente passageira, sonho breve de algumas noites de sábado que terminam sem deixar resquícios.

Imagino o Carlos nesses seus últimos dias. Mas, não era ele o camisa 8, magrinho e correndo, do time de futebol? E não foi ele que vagou pelas estradas de Minas, viagens de negócios, até parar porque já era tempo que outro Carlos tomasse o lugar dele?

Mas, é noite de sábado e o Carlos está lá deitado, esperando. Talvez se lembre de tanta coisa, daquelas madrugadas em que éramos todos jovens e a vida nos parecia infinita. Talvez.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 junho, 2012 às 11:56 pm

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Na fila

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Tinha um sujeito engraçadinho na fila do supermercado. Início de noite, pessoas com cara de cansadas, compras grandes e demoradas para passar, certa intolerância diante da necessidade de estar ali quando se poderia em outro lugar, melhor, talvez em casa, de pijama, curtindo o fim do dia. Mas, o engraçadinho parecia não se dar conta de nada disso: alegre, falava com pessoas que passavam, sempre arranjando jeito de adaptar tom jocoso ao que dizia. Dir-se-ia que o cidadão era desses que a todo custo querem dividir sua alegria com os outros, doa a quem doer.

Foi aí que uma mulher baixinha que estava na minha frente na fila, voltou-se, olhou-me direto nos olhos e explodiu:

- Sujeitinho histriônico.

Histriônico? A palavra soou estranha, fora de lugar e circunstância, há tanto tempo eu não a ouvia. Nem tive tempo de dizer nada porque a baixinha já tinha retornado à postura original, olhando para frente, talvez arrependida de ter-se comunicado comigo, dividindo a agonia que a insatisfação da presença do engraçadinho provocava a ela.

Agora chegara a vez do engraçadinho passar compras e aproveitava o momento para encher a moça do caixa de conversa mole, fazendo perguntas inoportunas, rindo sempre, quando não voltando-se para a turma da fila com aquele jeito de quem procura concordância com o besteirol que proferia ou, talvez, algum aplauso.  Interessante o mal estar que o sujeito causava pela presença impertinente, cara chato, inconveniente, que nos aborrecia por exibir descaradamente, em público, esse lado da personalidade de que não gostamos, simplesmente não toleramos.

Por fim, o engraçadinho comprou, pagou e lá se foi ele, saltitante, levando as compras, com aquela alegria absurda e fora de lugar, nascida não se sabe a título de quê.

Chegou a minha vez. Passei pelo caixa e quando cheguei ao estacionamento deparei-me com a baixinha da fila que fechava o porta-malas do carro dela. Ia passando por ela quando percebi que me olhava. Quando retribui o olhar e me dispunha a cumprimentá-la ela encerrou qualquer investida afirmando:

- Sujeito histriônico.

E parece ter corrido para a direção do carro dela porque não a vi mais, nem ao engraçadinho. Voltei à minha casa pensando em caracterizações definitivas, julgamentos sumários e, principalmente, no poder que os chatos têm de nos incomodar.

Um homem sem profissão

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Paro o carro para abastecer e encontro um homem que mora no mesmo prédio que eu. É um sujeito de meia idade que usa um brinco de argola na orelha direita. Ele está de bicicleta e mostra-se efusivo com os frentistas do posto e comigo. Brinca com todos, provoca um dos frentistas e recomenda que me atendam bem porque sou amigo dele.

Pergunto ao homem por onde anda já que não o tenho visto ultimamente. Ele me explica que está sem tempo, atualmente trabalha numa grande construtora na área de projetos. O trabalho é tudo para ele, gosta de ser útil, ajudar a construir e melhorar o mundo.

Depois de alguns minutos o homem parte. Pergunto a um dos frentistas, a quem conheço bem, se sabe o que o sujeito está fazendo no momento. O frentista sorri e responde:

- O senhor não o ouviu dizer que está numa construtora, fazendo projetos?

- Mas,…

Não termino a frase porque o frentista sorri com jeito de que o melhor é deixar pra lá.

O problema é que a cada vez que encontro com o homem que mora no meu prédio ele relata que está trabalhando em algo muito importante, mas sempre diferente do que fazia anteriormente. Essa história começou há alguns anos quando ele me falava sobre o cansaço decorrente da afinação de instrumentos musicais. Na época ele  não só afinava como consertava instrumentos como guitarras, pianos etc. Aliás, dizia-se músico tendo abandonado a participação dele numa banda da qual era o líder.

Noutra ocasião eis que o homem havia mudado de ramo: abrira uma loja no centro da cidade onde comercializava vários produtos destinados às casas. Mas, ao que me parece isso não durou porque, tempos depois ele passou a consertar computadores. Nessa ocasião, quando eu o encontrei, disse-me que era especializado em redes sem fio e aparelhos de transmissão à distância, incluindo-se aí a área de telefonia.

Há algum tempo eu o encontrei no elevador e soube que estava trabalhando como eletricista, destacando-se a tarefa de montagem de quadros de luz para residências. Quando estranhei mais essa aptidão ele me disse que era eletricista diplomado, com certificados obtidos em vários cursos e assim por diante.

Certa vez parei num posto de gasolina para abastecer e fui atendido por um frentista que era, nada mais, nada menos, o homem de quem falo. Também o vi mais amiúde durante os meses em que cuidou da mãe idosa que veio a falecer.

Não sei bem o que dizer sobre isso tudo. Há quem ouça uma história dessas e diga que o homem mente, simplesmente. Embora isso de fato seja possível, tenho lá as minhas dúvidas sobre tudo o que ele diz. Mas, confesso que me atrai a estranha liberdade desse homem nas idas e vindas que proporcionam a ele tantas realizações, ainda que possam ser imaginárias.

Fico pensando no que ele me dirá sobre suas atividades na próxima vez que o encontrar. Trabalhando com mísseis, energia atômica ou o quê?

Escrito por Ayrton Marcondes

7 abril, 2012 às 6:45 pm

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Ô Geraldo…

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Porque amanhã é o Dia da Mulher eu me lembrei do Geraldo, melhor dizendo da mulher do Geraldo. Nem é preciso perguntar qual Geraldo porque o Geraldo a que me refiro foi homem como tantos outros, talvez seja mais adequado afirmar que neste Geraldo em particular existem pedaços de todos nós, os homens, com suas idiossincrasias, seus diferentes, mas tão próximos modo de ser.

Conheci a mulher do Geraldo ainda mocinha, bonitinha que nem ela só. Atraía o olhar dos rapazes, na verdade mais que o olhar, se bem me explico. Era desses protótipos em transformação para algo completo, a forma quiçá perfeita da mulher madura que a todos encanta e apaixona.

Mas, a mulher do Geraldo tinha nascido para ser a mulher dele que era um sujeito alto e forte, bonitão, cabelos castanhos avizinhando o aloirado, olhos espertos e um rosto bonito no qual não faltavam sinais de muita bonomia.

Foi assim: um dia os olhos dos dois se encontraram e nasceu entre eles algo ainda maior que a simples atração, isso que se chama amor. Namoraram, ficaram noivos e se casaram. Naturalmente os machos de plantão invejaram a boa sorte do Geraldo que se aninhara com um mulherão daqueles, mas no fundo a coisa foi bem aceita porque o Geraldo era sangue bom, amigo dos amigos, tipo solidário desses que merecem a sorte que têm.

E ai tudo estaria muito bem e ordenado não fosse a maldade que mora nas coisas benfeitas, essa maldade que parece ter prazer em desenfeitar as coisas boas e belas. Ocorreu, então, que o Geraldo seguiu com a mulher dele para a viagem de lua de mel. Entretanto, passados apenas dois dias, eis que voltou ele, sem a mulher, sozinho.

Ninguém teve coragem de perguntar ao Geraldo sobre o que teria acontecido. Ele deixou de ser o rapaz bem afeiçoado e há quem garanta que nunca mais sorriu na vida. Tempos depois se soube que a mulher do Geraldo vivia em outra cidade em casa de parentes e, depois disso, nunca mais se ouviu falar dela.

É nesse ponto que eu entro na história. Na época do casamento do Geraldo eu não passava de um rapazote e, naturalmente, minha curiosidade foi aguçada pelo episódio. Depois me esqueci do fato como de resto esqueceram-se os demais. Até que em certa ocasião, acho que quase vinte anos depois, parei num restaurante localizado na Via Dutra e eis que lá encontrei justamente o Geraldo. Fiquei alegre ao vê-lo e logo nos sentamos para um longo papão. Pois foi no meio da conversa que sucumbi à antiga curiosidade e perguntei ao Geraldo sobre o que tinha acontecido durante a lua de mel dele.

Obviamente o Geraldo negou-se, a princípio, a responder, mas no fim acabou me confessando que, na primeira noite de casado havia constatado que a mulher dele não era virgem. Esse fato o magoara muito e para ele era inadmissível casar-se com mulher desonrada por outro homem. A tragédia o afetara tanto que não só abandonara a mulher como nunca mais se casara.

Eram outros tempos, não? Outros valores e modos diferentes de encarar a vida. Despedi-me do Geraldo a quem nunca mais vi e cuja morte aconteceu anos atrás. Mas, confesso que tive a impressão de que ele jamais deixou de amar aquela moça bonita com que se casara, mas de quem se afastara por ela não ser virgem.

Era uma boa moça, muito bonita, só não era virgem. Ô Geraldo …

Escrito por Ayrton Marcondes

7 março, 2012 às 9:08 am

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Quando tudo e nada acontece

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Você olha para a cerca de cedro que separa a sua casa da rua. Você observa os buracos por onde entram os vira-latas. Eles rasgam os sacos de lixo e espalham os restos sobre a grama verde queimada pela geada. Malditos vira-latas, maldito você que não ouviu o velho. Você plantou o cedro, cada muda distante um metro da outra. O velho viu e disse: o certo é uma muda a cada meio metro, senão vai ter buraco.

São passados trinta anos desde essa tarde de plantio de mudas e velho falando sobre espaços entre elas. O velho morreu, os buracos estão aí, esperando que você morra para que os vira-latas possam entrar em paz.

Não existe lugar no mundo melhor que as pequenas cidades para que se possa constatar a brevidade da vida. Num lugarejo você conhece todo mundo, tem nas mãos o pulso de uma geração. Você convive com as pessoas que depois de um longo tempo desaparecem. Então você anda pelas ruas e encontra gente que não conhece. Nos lugarejos o vazio torna-se mais presente, impositivo. Você também sabe que não muito longe fará parte do vazio da memória de alguém, mas isso não serve de conforto.

Novos homens virão, com cercas de cedro, buracos e vira-latas passando por eles. Mas, você não verá nada disso porque terá desaparecido, suavemente, como aconteceu e acontece  a todo mundo.

Escrito por Ayrton Marcondes

10 julho, 2011 às 7:50 pm

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Pra Marancangalha

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Tudo cansa, até o interminável noticiário sobre ocupação dos morros no Rio. Tá bom, as coisas andam, que bom. O Exército vai atuar como força de paz, legal. Mas, as intermináveis entrevistas, o detalhamento de ocorrências… O pior é a repetição que acontece por atacado, em todos os canais.

O telefone toca. Atendo a moça da Telefônica que me oferece um plano novo, vantagens incríveis, como é que estou fora disso? Abro a caixa postal e sou atacado por uma montanha de envelopes, todos com assuntos comerciais. Nada de pessoal, só contas a pagar e ofertas de produtos a preços especiais para o natal que está chegando. No meio de tudo uma cartinha de pessoa doente que vive num asilo e pede que eu me lembre dos pobres e desvalidos com uma pequena contribuição.

O interfone toca. É o zelador para falar sobre o vizinho de baixo que reclama de um eterno vazamento, consertado não sei quantas vezes sem resultado. Penso em dizer que talvez por trás disso exista alguma ação terrorista, na água que escoa pode haver um veneno infiltrado, vindo do céu para matar todo mundo e, assim, redimir os pecados. Mas só resmungo, prometo chamar o encanador, mas não aquele que conversa demais e sempre fala na filha que vive com um cara que ele detesta e um dia vai matar.

Ligo o computador e descubro que o dia tornou-se radicalmente contrário a mim. Forças do mal estão agindo em todos os setores, a verdade é que estou cercado. O computador não passa do boot, o Windows não carrega, meu Deus, preciso enviar uns e-mails agorinha, é coisa de responsabilidade. Não posso ficar na mão de uma máquina rebelde que talvez esteja cansada de mim, das minhas esquisitices e agora se nega a me ajudar, talvez o conteúdo dos e-mails desagrade a esse monte de fios e cabos, sei lá.

Preciso sair, mas espero a minha mulher chegar porque não posso deixar sozinho o pintor que está às voltas com a massa corrida da parede da sala. Olho para o relógio, ando de um lado para outro nessa manhã de pura barbárie, na qual tudo teima em dar errado. É quando o telefone toca de novo e fala uma moça da agência de viagens, dizendo que dispõe de ofertas incríveis para o Natal e o ano Novo. São lugares maravilhosos onde eu serei mais feliz que na Passárgada do Bandeira. Conheço a moça, na última viagem foi ela quem cuidou de tudo, então me sinto a vontade para dizer a ela o que quero nesse exato momento:

- Minha filha, eu quero mesmo é ir pra Maracangalha, não importa o preço, você pode providenciar isso?

Escrito por Ayrton Marcondes

3 dezembro, 2010 às 11:19 am

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Rubem Braga

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Quando nada ocorre para escrever e o pensamento parece embotado o melhor é correr os olhos nos títulos de livros enfileirados na estante. Pega-se um ou outro, folheia-se, leem-se alguns parágrafos e, sem que se perceba, de repente o mundo é outro, entra-se no universo acolhedor da literatura.

Lugar seguro esse, não tão calmo, mas seguro. Aqui uma pitada de Cervantes, ali um poema de Borges que vale reler mil vezes. Mais à frente um conto de Cortázar, isso sem esquecer Shakespeare que envia Macbeth, espada em riste e sobre o seu cavalo, entrando pela janela. Há também Faulkner e Hemingway, as poesias de Drummond, a capa com o nome de Pirandello e a Morte Rubra que de repente é lançada diretamente das páginas de um conto de Poe.

Circulando entre livros, apartado da realidade para sobreviver dentro da ficção topa-se com Rubem Braga. O livro é velho, alguém riscou a capa, provavelmente foi comprado em algum sebo. Trata-se de uma coletânea com os melhores contos de Rubem Braga, assim os consideraram aqueles que os colheram em outros livros do cronista e os puseram nesse, preparando-o para esta manhã obtusa em que se busca alguma coisa sem saber bem o quê.

Abre-se o livro numa página ao acaso, aí está o tal casal no ponto de ônibus, o casal da “vida estreita”, noutra página o menino que faz perguntas ao vendedor de passarinhos, mais à frente o caso do homem que passou seis dias trancado com a amada, sem atender telefone. Vai-se passando de uma crônica à outra, absorto, esquecido da hora de sair para o trabalho, pensando se afinal a realidade não passa de uma invenção maldosa de alguém que tinha muita raiva dos homens. Isso dura até que dois carros batem na esquina, o barulho interrompe a leitura justamente quando um narrador encontra um par de luvas femininas atrás de uma pilha de livros. É quando, muito irritado, você sai à janela e começa a gritar, dizendo que as pessoas não devem bater carros, é preciso ler Rubem Braga e coisas assim.

Não demora a que você repare que ninguém o ouve. Então você volta aos livros, desconfiado de que talvez você não seja real e tenha saído das páginas de uma crônica do Rubem, você personagem dele, feito para esta manhã cinza e fria, para o enredo em que um cara não tinha o que escrever e se perdeu olhando para os nomes dos livros da sua pequena biblioteca.

Escrito por Ayrton Marcondes

19 agosto, 2010 às 12:02 pm

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