2010 setembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para setembro, 2010

Um velho piano

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Um piano do século XIX foi encontrado na Academia Paulista de Letras. Esteve lá, ignorado, durante todo esse tempo. Supõe-se que tenha sido usado em saraus durante a Semana de Arte Moderna de 1922; há suspeitas de quem tenha sido o doador de vez que o piano não faz parte do ativo de compras da Academia.

Um piano que passa despercebido durante quase cem anos lembra os versos de Manuel Bandeira no poema “Última canção do beco”: intacto, suspenso no ar . Um afinador que o examinou identificou a procedência alemã e surpreendeu-se com o bom estado das cordas e teclas. Ainda que emudecido, o piano conservou-se, esquecido, mas talvez pronto a devolver aos ouvidos humanos os sons para os quais foi preparado.

Imagino as gentes de 22 ao lado do piano, talvez Mário de Andrade a correr os dedos no teclado, tocando alguma modinha ou uma peça revolucionária. Mário ensinava música, mas terá sido bom intérprete?

Objetos antigos que permanecem são pedaços de passado que se intrometem no presente. Trazem consigo sombras de momentos vividos e terminados, evocando passos agora inaudíveis. O piano da Academia fez parte de histórias de vida encerradas e conserva delas segredos e emoções. Ao vê-lo identifica-se apenas um móvel que, quando afinado, será usado em concertos, assim se espera. Mas, com ele virá, ao presente, o som de outro tempo que embevecerá ouvintes com apelos do passado. Infelizmente o piano não trará de volta os homens e mulheres que estiveram ao lado dele na Semana de 22. Os poetas, músicos, romancistas e ensaístas de 22 já não podem ser encontrados e retornar ao presente: ficaram lá, no palco de um teatro, sendo vaiados pelas plateias, como eles desaparecidas, fazendo história, transformando-se em fotografias e textos, eternizando-se como portadores de uma nova que atravessou décadas, intacta e definitiva.

Um velho piano, um mar de histórias.

Atrás da bola

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São dois gols, ambos tendo por traves pares de chinelos velhos. Entre um e outro poucos metros, as laterais do campo duas paredes acinzentadas.

Isso mesmo, o campo de futebol é um corredor, parte externa do apartamento onde mora o zelador, fundo do prédio, último andar. O jogador dos dois times é um menino que corre de um lado para outro com uma bola de borracha nos pés. No vai-e-vem, entre um gol e outro, ora ele usa a camisa de um time, ora de outro. Controlando a bola de repente ele é o craque de um dos times, depois do outro, dizendo nomes de jogadores que repete em voz alta, arfando o peito, correndo para fazer gols e mudar o placar.

Agora é o time da porta da cozinha que desce em direção ao gol do time da janela do quarto e faz um golaço; na volta o time da janela desconta, coloca a bola entre as traves do gol da porta da cozinha e o jogo está empatado. O menino corre de um lado para outro fazendo gols que soma, um a um. Até que chega ao 7×7 e se distrai com o cachorro que atravessa o campo, não sem protestos da torcida e dos jogadores. O menino, nesse momento juiz e locutor, expulsa o animalzinho do campo e prende-o enquanto irradia o fato em voz alta.

Os jogadores esperam o reinício da partida e voltam a correr. Os gols se sucedem, gol aqui, gol lá, num jogo que parece estar fadado a ficar sempre empatado. A coisa toda continua até que uma voz de mulher ecoa no estádio: é a mãe do menino que o chama para o jantar. É hora de acabar o jogo, justamente no momento em que o juiz marca um pênalti contra o time da porta da cozinha.

São 47 minutos do segundo tempo e o pênalti vai decidir o campeonato. O menino, jogador do time da janela do quarto, coloca a bola na marca de cal e olha para o gol à sua frente. No meio dos chinelos que demarcam o gol está um goleiro enorme que usa roupa preta e luvas.  O menino não se impressiona com ele. Vai para a bola, bate forte e é gol. Segue-se o ruído da torcida vibrando nas arquibancadas, o abraço dos jogadores e o apito final que dá a vitória e o campeonato ao time da janela.

Mas, não há tempo para erguer a taça. A mãe vem ralhar com o menino e, em um minuto, ele está sentado diante do prato de comida, transpirando muito, mas feliz pela vitória do time da janela do seu quarto sobre o da porta da cozinha cujo técnico é ela, a mãe dele.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 setembro, 2010 às 11:19 am

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Fim de carreira

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O tema é recorrente, mas não deixa de impressionar. Trata-se do encerramento de carreira de jogadores de futebol. Chega o tempo de parar e, em geral, a decisão vai sendo adiada, até que o desgaste físico se torna irreversível.

Talvez nenhuma atividade seja tão maldosa com os seres humanos quanto o esporte profissional. Grandes ídolos, habituados à badalação, quando não idolatria do público, da noite para o dia transformam-se em página virada, sendo condenados ao ostracismo. Afora uns poucos que, por uma razão ou outra, depois de parar conquistam algum espaço na mídia a maioria retorna ao convívio dos mortais comuns, longe dos holofotes.

O esporte profissional que agracia os melhores com fama e muito dinheiro é também um devorador de homens. A glória que se apoia em dotes físicos sucumbe na velocidade do envelhecimento. As exceções glorificadas como Pelé - o eterno ídolo - e alguns outros não passam de casos isolados.

Escrevo sobre isso após ler que David Beckham, agora com 37 anos e há cinco meses parado por conta de uma contusão, está de volta ao futebol. Beckham, um dos maiores jogadores de futebol, teve o seu ápice em 1999 quando conquistou vários títulos e recebeu premiações pelo seu desempenho. Outro jogador que tem chamado muita atenção pela proximidade do fim de sua carreira é o artilheiro Ronaldo, idolatrado pela torcida corintiana.

É verdade que nesta vida tudo tem um fim, o tempo não volta etc. Imagino que o período de transição que separa atletas do término de suas carreiras seja muito difícil. A situação envolve uma precoce, mas bem papável sensação de velhice precoce, de perda da força, talvez até de aniquilamento naqueles que não se preparam para a despedida.

O esporte profissional de que tanto gostamos e nos diverte reserva aos seus praticantes uma espécie de acerto de contas com o tempo que passa. Mas nem por isso deixa de ser belo, emocionante, um grande show que não pode parar ainda que ao preço do constante renovamento das suas peças.

O fenômeno Lula

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Ainda é cedo para uma análise retrospectiva do fenômeno Lula. Alicerçado em suas origens e despontando como alguém do povo que venceu, transformou-se ele num símbolo popular cujo significado maior é o de que, sim, é possível chegar lá.

Todo mundo sabe como é o presidente, homem para quem as convicções andam de par com as necessidades. Dotado de incomum senso de oportunidade não há que se negar a ele brilho: circula com desembaraço em todos os meios e mostra-se como um intuitivo capaz de fazer escolhas acertadas quando o que está em jogo são os interesses políticos. Agindo assim, irmanou-se ao povo que o elegeu e sua trajetória consiste em conquistar cada vez mais novos adeptos. Decorre daí sua imensa popularidade, os incríveis índices de aprovação e, mais que isso, o fato de lograr transferir a uma quase desconhecida seu legado transformando-a em sua sucessora, pelo menos nessa direção apontam as pesquisas de opinião.

Mas, que fenômeno é esse? De que natureza é essa trajetória impressionante? Para tentar responder a essas perguntas recorro a um artigo escrito pelo crítico José Veríssimo, em 1901. Sob o título “Duas Lendas” Veríssimo analisa, no aniversário da morte de ambos, os perfis do ex-presidente Floriano Peixoto e do Almirante Saldanha da Gama.

Embora a imagem de Floriano seja bastante diferente da de Lula, une-os a origem simples que emula e comove a massa popular. Sobre Floriano diz Veríssimo:

“Ele é bem o homem representativo do povo brasileiro, que se embevecia de saber que ele a si mesmo se chamava de caboclo, orgulhando-se da humildade da sua origem, de ser o “legítimo brasileiro”, segundo o velho erro, irradicável da opinião popular de que o Brasil é o bronco e ruim selvagem que o habitava”.

Mais à frente Veríssimo afirma que Floriano venceu e que o povo prefere, salvo casos raros, o vencedor ao vencido. E completa, buscando explicar a lenda em que se tornou Floriano:

“Em almas simples e honestas a devoção por Floriano foi grande, intensa, completa e sincera; um pouco mais e o adoravam. Não esqueçamos que foi o medo o criador os deuses. Certo que na massa florianista havia, como há ainda, especuladores de todo o gênero, gente de má fé que explorava a situação, em que o governo era forte, mas não podia ser escrupuloso; mas fora destes era grande o número de convictos, dos desinteressados, dos arrastados no arrastamento geral que levava as massas para o soturno e singelo ditador do Itamaraty.”

Seria primarismo superpor fatos históricos e plasmar perfis em si tão diferentes. Entretanto, o texto de Veríssimo é esclarecedor no tocante à idolatria popular em relação a alguém reconhecido como igual pelo povo.

Entre o atual presidente da República e a grande massa existem identidades e ligações profundas que com certeza contribuem para a imensa popularidade dele. Esse, talvez, grande fantasma a assombrar a oposição que luta para chegar ao governo. Vencer um sentimento arraigado e adubado com promessas e benesses talvez seja mesmo tarefa impossível de Brasil de hoje. Quanto ao fato de Lula se tornar uma lenda, como o foram Floriano de Saldanha da Gama, só o futuro dirá.

O caminho dos votos

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Não há como se evitar o horário político. Ainda que tentemos ignorá-lo, volta e meia damos de cara com pelo menos uma parte da programação dos partidos. É assim que somos contatados pelos candidatos e tomamos ciência da existência deles.

A pergunta que se faz é a seguinte: são os candidatos a cargos eletivos retrato da atual classe política do país?

Descontadas algumas presenças importantes, o horário político é um festival de horrores, mormente na parte em que se apresentam os candidatos a cargos eletivos estaduais. Pessoas que adquiriram popularidade em suas atividades fazem uso de seu destaque para arrebanhar eleitores. Jogadores de futebol, boxers, palhaços e até a Mulher Pera apresentam-se com mensagens que, no fundo, não passam de descaso à importância do cargo que assumiriam caso eleitos. O interessante é que o modo, digamos exótico, de algumas apresentações acaba caindo no gosto popular daí candidatos que em nenhum momento parecem levar suas candidaturas a sério correrem o risco de vir a ser eleitos.

Não sei como as coisas se passam em outros países, quem sabe de modo semelhante ao que entre nós acontece. É bom lembrar que em eleições anteriores os brasileiros tiveram oportunidade de manifestar, através do voto, a sua insatisfação com a classe política. As expressivas votações consagradas ao rinoceronte Cacareco e ao macaco Tião são muito ilustrativas nesse sentido.

Se prevalecer a forma de protesto que se mostrou tão eficiente no passado poderemos assistir, no pleito de outubro, à vitória de candidatos que parecem nada ter a ver com os interesses políticos do país.

Mas, que não se enganem os analistas: Mulher Pera, Tiririca, Agenor Bisteca e alguns outros são, sim, candidatos fortes e a eleição deles não será, de modo algum, surpreendente.