Lá no alto do morro at Blog Ayrton Marcondes

Lá no alto do morro

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Amigo, não sei dizer por que a memória é assim, porque de repente algo soterrado lá no meio das sinapses – existem tantas - aflora, como um naufrago que tivesse adormecido sob as águas e despertasse com lembranças de coisas que simplesmente já não importam.

Então me lembro, sem mais, sem menos, sem aviso prévio, de mim menino, dando pernas naquele caminho de morro, estrada de terra, primeiro passando medroso ao lado do portão do cemitério, depois seguindo adiante como quem vai para as nuvens, talvez para o céu. Até alcançar a última curva, suando sob o sol, já vendo o casarão que um homem de nome estranho construiu no passado, a casa onde mora um casal e o filho, ela aparentada de minha família.

Pois ela é uma loira atraente, casada com certo Zé cuja face surge agora aqui bem à minha frente, ele tão direito, tão tenaz, zeloso na educação do filho que o chamava de pai, mas que não era filho dele, mas isso já é outra história. Ela, a loira, que me recebe à porta com aquele jeito brejeiro dela e eu entrando na casa e achando tudo muito bonito, a blusa dela amarela -revejo agora quão intenso e belo era o amarelo sobre a pele dela - e o filho que corre para brincar comigo, sempre sob os olhos vigilantes do pai.

Depois as cenas no quintal que na verdade é um cercado de arame, além do qual outro cercado enorme se abre com vacas leiteiras de um branco tão uniforme que todas parecem ser uma só. São as vacas do Zé das quais ele ordenha o leite que vende na cidadezinha bem abaixo do morro.

Estamos brincando, eu e o filho, então aparece aquele outro homem saído não sei de onde e, também, não sei como percebo entre ele e a loira, a mulher do Zé, a troca de um olhar, um só olhar que decide e ordena tudo. Depois é ela indo em direção ao mato enquanto o Zé cuida das vacas e o homem, pouco depois, seguindo na mesma direção enquanto o Zé ou percebe ou finge que não percebe que a mulher dele está com outro, lá no mato, escondida e nua, a certa distância de todos nós.

Não me lembro da loira voltando, só me resta o rosto triste do Zé que só agora, nesta noite, compreendo. Mas isso tudo já não importa e fico aqui me lembrando do Zé perto das vacas, da mulher dele no mato com aquele sujeito saído não sei de onde, de algo que na ocasião não entendi direito, mas que já não importa mesmo porque todas aquelas pessoas estão mortas e eu continuo aqui, sobrevivendo, lembrando-me delas.

Escrito por Ayrton Marcondes

27 maio, 2012 às 11:56 am

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Postado em Cotidiano

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