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O último capítulo

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Era o último capitulo de uma trama tortuosa. O velho ficara viúvo.  Sem a mulher não sabia como levara a vida adiante com os três pequenos. Na solidão da caatinga a fome os espreitava. A seca interminável roubara-lhe os últimos bodes e nenhuma lavoura prosperara. Desesperado acabara por ver um dos filhos sucumbir à doença. O mais velho passara adiante a troco de uns cobres para um casal sem filhos que vivia na capital. O do meio acabara matando com as próprias mãos. Ato de loucura depois de um dia errando sob o sol na cabeça, vendo o menino gemer pedindo água. Desgraça sem fronteiras na terra seca onde o vizinho mais próximo distava uns tantos quilômetros.

O filho da cidade fizera-se homem, odiando o pai. Crescera forte e estudara, formando-se no curso superior. Mas, não se esquecera de sua origem. Nem do pai. Nem do irmão cuja morte desconfiava provocada pelo pai.

O filho da cidade casou-se ainda jovem e progrediu depressa. Até o dia que em que se tornou impossível conviver o passado inconcluso. Então, decidiu-se pela busca do pai,

Os anos haviam se passado. Encontrou o velho na mesma casinha de taipa, pobre e enfraquecido. Só então se deu conta de que fora lá para matá-lo. Culpava ao pai pela morte da mãe, pela desgraça da família.

Ao escritor bastava escrever o último capítulo, o fim da trama precedido por breve duelo de palavras e a cena do velho atingido, murmurando sons incompreensíveis. Entretanto, foi como se o escritor perdesse o controle sobre suas mãos. De repente os dedos recusavam-se a obedecê-lo, digitando o fim lógico e esperado. Então escritor o levantou-se e foi à janela. O fim de tarde era lindo. O Mercado Modelo parecia imergir no mar onde mastros de inúmeros barcos brilhavam ao sol.

Diante de tamanha beleza o escritor se deteve. Não valeria a pena escrever páginas sobre seu reencontro com o pai e o modo covarde como o mataria. Era ele agora um homem bem de vida, morava em espaçoso apartamento e seus livros tinham sucesso. O filho e a filha cursavam universidade, a mulher com quem se casara fizera-o feliz. Apercebeu-se de que as desgraças da infância tinham se tornado distantes, infinitamente distantes.

Não demorou a reconhecer que o pai livrara-se dele em boa hora. Que teria acontecido ao irmão do meio que, em sua trama, fizera morrer pelas mãos do próprio pai?

Levantou-se muito cedo na manhã seguinte. Mais tarde a mulher encontrou sobre a mesa um bilhete onde leu que o marido viajara, a caminho do interior, à região da caatinga procurar pelas suas personagens.

O fim do livro? Ora, que importa?

Dentro da Gaiola de Faraday

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Os professores de física ensinam que se uma corrente elétrica atravessa um corpo metálico ela passa somente pela superfície externa dele. Esse é o princípio da Gaiola de Faraday que, entre outras coisas, explica porque você não é atingido quando um raio cai no seu carro.

Muita gente se pergunta sobre o que acontece quando raios caem em aviões em pleno voo. Isso pode acontecer durante uma tempestade. Então você está ali na sua poltrona, com o cinto afivelado, quando de repente ouve um estrondo. Calma, não aconteceu nada, o avião não vai cair, foi só um raio. O avião funcionou como uma Gaiola de Faraday e a eletricidade trazida pelo raio percorreu apenas a parte externa dele.

Certa vez estava eu num voo em direção ao nordeste. Ao meu lado viajava uma moça bonita com a qual não me atrevi a puxar assunto. Íamos assim, calados, cada um lendo a sua revista quando se ouviu um estouro que assustou os passageiros. Logo em seguida falou o comandante, recomendando aos passageiros que ficassem sentados e com os cintos afivelados.

Você sabe como as coisas se passam na cabeça da gente numa hora dessas. Não há como não se pensar no pior. Turbulência e explosão e você dentro de um avião lá nas alturas! Pois não demorou nada e ouviu-se outro estrondo. Nesse momento a moça bonita ao meu lado agarrou-se ao meu braço, talvez achando que chegara a nossa hora, morreríamos num desastre aéreo.

Se há uma coisa terrível quando se está numa situação perigosa é essa de o tempo demorar a passar. Dois minutos são uma eternidade quando se está atravessando uma zona de turbulência. Mas, a situação em que estávamos finalmente passou e as coisas melhoraram. Só então o comandante explicou que aquela barulheira toda fora provocada por raios que atingiram o avião.

Mas, valeu o preço pago pelo susto. A partir daí eu e a moça passamos a conversar e nos tornamos amigos. Tão amigos que marcamos um jantar na capital do nordeste para onde eu viajava a trabalho.

Naquela época eu vivia sozinho de modo que me considerei sortudo pelo fato da moça ter aceitado o meu convite. Na noite da sexta-feira - a combinada - liguei para ela e não fui atendido com satisfação ou pelo menos com alguma vivacidade. Explicou-me ela ser mulher casada e não saber dizer o que lhe dera na telha ao marcar um jantar comigo. Desculpou-se e as coisas ficaram assim.

Até hoje não sei dizer se essa história de fato aconteceu. Tempos depois vi numa revista de circulação nacional uma foto da moça com quem que sentara no avião. Da certeza de que era ela parti para a dúvida e nunca cheguei a nenhuma conclusão. De uns tempos para cá tenho pensado que talvez eu tenha inventado essa história. Eu teria estado num avião que funcionou como Gaiola de Faraday e, assustado, fechei os olhos e inventei uma linda moça ao meu lado só para me acalmar. Quando ao tal jantar, talvez eu tenha acrescentado esse final depois.

De todo modo nada disso importa. Numa época em que se discute se o nosso mundo e nós mesmos não seríamos seres virtuais, criados em computador por um programador de uma civilização avançada, que importância teria uma dúvida entre a realidade e a ficção?