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O último dia

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Ouço a entrevista que Jair Rodrigues deu à Radio Bandeirantes. Falou sobre a Copa favorita dele: a de 70. Explicou que a Copa de 70 era inesquecível, não só por Pelé, mas por todos aqueles grandes jogadores. Dizia-se que alguns deles não poderiam jogar juntos, mas, no fim, tudo deu certo e foi o que foi. Terminou assim a fala dele.

Jair era um cara bem humorado e assim se mostrou ao ser entrevistado. Morreu na noite do mesmo dia, aos 75 anos. Encontraram-no na manhã seguinte, morto na sauna de sua casa. Deixa saudades. Quem o viu nos festivais da canção ao lado de Elis Regina jamais se esquecerá dele. Uma figura. Grande figura, excelente intérprete da música brasileira. Jair interpretando “Disparada” no Festival da Canção faz parte da memória brasileira. Não há com rever as imagens de Jair no palco e não se emocionar.

A morte de Jair Rodrigues faz pensar nesse dia em que alguém acorda de manhã e não sabe que vai morrer. Essa pessoa provavelmente vai repetir toda a rotina a que está habituado, preparando-se para as atividades do dia que tem pela frente. Perderá um tempo com a higiene matinal, tomará o café da manhã, ouvirá as notícias pelo rádio do carro e assim por diante. Até a chegada da hora marcada, momento de eclipse total no qual, simplesmente, deixará de existir. O modo como tudo se passará é insuspeito. Para cada um reserva-se um fim absolutamente pessoal e intransferível. De repente a realidade se apagará, mas o mundo seguirá em frente mostrando-se indiferente à baixa sofrida. Uns tantos familiares e conhecidos se despedirão, mas a vida continua e logo sombras de esquecimento pesarão sobre o desaparecido. Assim passam as gerações. Homens desaparecem e outros ocupam os seus lugares. É o jogo da vida que, tal como o dia e a noite, alterna-se com a morte.

A partir de certa idade é impossível não se pensar nas circunstâncias do último dia. Como será ele? Quem sabe em meio a uma festa no momento em que estourarem os fogos. Ou durante um instante de gozo e satisfação, desses que tão raramente nos sucedem. Mas, que não seja em meio à doença, representando nada mais que um epílogo ao sofrimento. Nem mesmo aconteça na inesperada situação de um acidente ou de uma bala perdida. Da morte tudo o que se pode pedir é que nos abata com dignidade.

O deixar de ser, de existir, é um enigma tão insolúvel como o de nascer. Mas, se inevitável, que venha ao som de uma grande banda, num dia claro de primavera muito florida, ao sol que nasce numa manhã de beleza incomparável. Que seja alegre para que levemos deste mundo uma última imagem de rara beleza. Que no último segundo, no instante do desenlace fatal os pássaros de todo mundo cantem uma sonata de Beethoven. Depois disso nada mais importará a quem se foi porque essa é a regra da vida.

Como sempre acontece o Jair Rodrigues que falou à Rádio Bandeirantes não podia ter ideia de que pouco tempo depois estaria morto.

Boa viagem Jair.