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Imagens do passado

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A literatura é rica em narrativas nas quais pessoas já mortas manifestam-se aos vivos. Religiões cujas doutrinas admitem a continuidade da vida após a morte e até mesmo a possibilidade de reencarnação postulam a vida como apenas um estágio de purificação da alma, espécie de provação terrena que contribui para o aprimoramento espiritual.

Questões como a existência de um mundo sobrenatural para onde os espíritos são conduzidos após a vida terrena infelizmente esbarram na falta de provas concretas embora os muitos casos citados de contato com os mortos. Em todo caso não deixa de ser estranho o fato de que a nossa existência realmente se resuma a essas poucas décadas de vida. De repente o fogo se apaga e a pessoa deixa de existir, dela restando apenas memórias dos que as conheceram ou realizações pessoais marcantes que deixaram.

Mas, para onde vai tudo que pensamos e fizemos? Terá sido a vida nada mais que uma ilusão que levamos a sério, ignorando o fim previsto e irreversível? Essas coisas que nos atormentam, os compromissos, as responsabilidades que assumimos, a importância que nos devotamos, o bem e o mal que fazemos, afinal para que tudo isso se no fim das  contas o que  nos resta é a banalidade do fim imposto pela morte e o  esquecimento?

Tempos atrás visitei o Cemitério da Consolação, em São Paulo, reparando que ali se encontram as tumbas de gerações de homens importantes na época em que viveram. Aqui o Conde Matarazzo, mais a frente o ex-presidente Campos Salles, o ex-presidente Washington Luís, a Marquesa de Santos, Oswald de Andrade e tantos outros. Gente que fez história e cujas vidas ainda hoje chamam a atenção pelo que fizeram. Todos desaparecidos, para sempre desaparecidos!

A imagem tão repetida de que as pessoas só morrem completamente quando se apagam todas as memórias sobre elas, entretanto fascina. Conheci pessoas que nenhum legado deixaram e morreram já esquecidas. Mas, eu me lembro delas, perfeitamente, e sou capaz de dar-lhes vida em minha memória. Aquele Antonho a quem chamavam “Maneta” porque perdera os dedos da mão direita é um dos que habitam a minha memória. Bebia um tanto e a mulher, a brava Vitalina, vinha buscá-lo e o arrastava até a casinha onde moravam. Bêbado ele não ia pacificamente: esperneava, gritava palavrões, xingava a terra e os céus. Mas a Vitalina sempre lograva prendê-lo em casa e, na manhã seguinte, lá estava ele com o seu cigarro, andando na rua como se nada tivesse acontecido. A Vitalina era baixinha, mulher simples e de fibra, assim sempre me lembro dela com seus olhos claros brilhando dentro de uma face que nunca foi bonita.

A Vitalina e o Maneta eram pessoas pobres e muito simples das quais nunca me esqueço. Quando a minha memória se apagar certamente serão raras as pessoas que se lembrarão deles. Talvez só depois que ninguém guardar memória dessas pessoas elas realmente deixem de existir.