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Bastardos Inglórios

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O diretor Quentin Tarantino é, antes de tudo, um mestre da narrativa. O seu filme “Pulp Fiction” continua sendo uma aula cinematográfica sobre a arte de contar histórias, desenvolvendo-se no mais genuíno estilo dos grandes romancistas.

Em acordo com esse retrospecto não se pode dizer que Tarantino nos surpreende com o seu mais recente filme, “Bastardos Inglórios”. É preciso lembrar que o maior fantasma dos criadores está na necessidade não só inovar como renovar-se. Por essa razão tantas vezes encontramos os chamados escritores de um só livro, aqueles que após a repercussão de uma obra não conseguem repetir o feito. Descontem-se da afirmação anterior os casos em que novas produções, ainda que boas, infelizmente não superam as expectativas do público.

Tarantino não padece desse mal. Para ele a criação surge como universo amplo no qual todo experimentalismo é possível. Com essa concepção filmou “Bastardos Inglórios”. O filme é dividido em cinco histórias cujo fio condutor é o embate entre nazistas aos judeus, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. Mas é justamente aí que Tarantino inova: ele trata o seu tema como obra exclusivamente de ficção, sendo que em nenhum momento tenta ser coerente com a história real.

É importante frisar que o diretor jamais pretende navegar nas águas da história, repetindo a abordagem usada em outros filmes sobre o holocausto. De fato, Tarantino não fez um filme de denúncia e jamais teve a intenção de mortificar a platéia com cenas de sofrimento de um povo perseguido. Acima do fato histórico e suas conotações está a ficção e nela situa-se o universo no qual Tarantino trabalha.

Quentin Tarantino toma emprestado a um dos maiores traumas experimentados pela humanidade apenas o contexto em que aconteceu e é absolutamente infiel aos fatos reais que o cercaram. Sob seu comando nomes como os de Hitler, Goebbels e Goering não passam de figuras dentro de um processo ficcional cujos destinos em nenhum momento se ligam aos das personagens reais que atuaram na Grande Guerra. Dentro desse contexto as peripécias da trama e mesmo o seu desfecho tornam-se imprevisíveis ao expectador dado pertencerem unicamente à imaginação e desejo do criador.

“Bastardos Inglórios” não é um filme sobre a violência do grande conflito mundial. Antes, trata-se de uma trama na qual o elemento mais forte é a sequência brilhante de diálogos entre as personagens. Há mais tensão na situação entre um inglês disfarçado de nazista e o nazista que o identifica que na ação do grupo de soldados de origem judaica, chefiados pelo incrível tenente Aldo – personificado por Brad Pitt -, conhecidos por torturar e matar soldados alemães.

Há quem tenha visto no filme de Tarantino a intenção de mostrar vingança dos judeus contra os nazistas. Nada mais absurdo. A seu modo o diretor expõe as fraquezas humanas de alemães e judeus mostrando-os capazes dos mesmos delitos cujas proporções dependem de quem dispõe de mais força e poder. A catedral do nazismo é mostrada em sua imperfeição e loucura através de um Hitler fanatizado por fatos menores que o genocídio que se pratica diariamente. Goebbels nada mais é que um aspirante de cineasta que produz filmes para sua glória pessoal e para que Hitler aprove.

Nesse mundo de vaidades, intrigas, violências, medos, perseguições, racismo e fanatismo, ninguém escapa porque o homem é um ser imperfeito e engaja-se em ações que permitam a ele dar vazão aos seus instintos.

Num filme de tal dimensão destaque-se o trabalho dos atores e a produção impecável. Brad Pitt está bem como o tenente Aldo Raine no comando dos judeus que matam nazistas. Mas o grande papel fica por conta do coronel nazista Hans Landa, interpretado por Cristoph Walts que persegue e localiza judeus. O irretocável Landa desde o início nos propõe a direção de suas ações : ele nos avisa que seu mérito é não pensar como alemão e sim como os judeus, daí o seu faro para encontrá-los onde quer que se escondam.

“Bastardos inglórios” é um filme sobre cinema e no cinema se resolve. Consegue isso em dois planos: no universo da ficção trabalhada e nas cenas finais da trama engendrada por Quentin Tarantino.

O Solista

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Joe Wright, o diretor de “O Solista” (The Soloist) apoiou-se na música de Beethoven para conferir grandeza à loucura de Nathanael Ayers, interpretado por Jamie Foxx. As lindas cenas aéreas da cidade de Los Angeles são exibidas ao ritmo das músicas do compositor alemão.

Não é a primeira vez que o cinema utiliza como ingredientes a genialidade musical e a loucura, compondo personagens que nos transferem uma tremenda sensação de desperdício de talento. É como se Deus ensinasse a um homem como voar para logo depois cortar as suas asas, deixando-o incompleto e perdido num labirinto mental do qual jamais poderá sair.

E é bem isso o que acontece a Ayers, talentoso jovem músico que chega a frequentar a prestigiosa escola de Juilliard, de Nova York, mas que não completa o curso porque é esquizofrênico. A partir daí Ayers passa a viver nas ruas, entre mendigos, eventualmente tocando violino e violoncelo.

Robert Downey Jr. interpreta o colunista Steve Lopez, do jornal Los Angeles Times, que casualmente encontra-se com Ayers e vê nele a chance de publicar boas matérias.  É Steve Lopez quem narra a história do seu relacionamento com Ayers. Ao narrador em primeira pessoa compete conduzir o espectador na investigação do passado de Ayers recompondo o mundo da sua infância e o longo processo que culmina no aparecimento da esquizofrenia.  Para isso, Lopez segue Ayers interessando-se cada vez mais por ele. Entre os dois estabelece-se a forma de relação possível entre um jornalista em busca de assunto e um esquizofrênico nem sempre conectado à realidade.

O grande erro de Lopez reside nas suas infrutíferas tentativas de “normalizar” Ayers como se ao amigo esquizofrênico pudesse ser devolvida a razão. Ayers se liga afetivamente a Lopez, mas não pode satisfazer às expectativas do novo amigo que o quer morando num quarto limpo e estudando música: os velhos fantasmas que habitam a consciência de Ayers continuam ativos pronunciando-se repetidamente nos momentos mais estressantes. Essa a razão pela qual fracassa um recital de Ayers para um público seleto que se reúne para vê-lo: Ayers entra no palco, mas é impedido pelas mesmas vozes que o atormentaram no passado, levando-o a um comportamento colérico e violento que encerra a apresentação mesmo antes de seu início.

Ayers não pode ser curado. A Lopez resta o meio termo entre ajudar o músico e aproveitar-se dele para se promover em sua profissão.

Há quem tenha achado “O Solista” um filme maravilhoso. De fato, há beleza e sensibilidade na trama conduzida por Joe Wright. É emocionante a  cena em que Lopez dá a Ayers um violoncelo e ele começa a tocar uma música de Beethoven, debaixo de um viaduto e concorrendo com a ruído dos carros que passam. São também interessantes os recursos narrativos utilizados por Wright que desliza da narração em primeira pessoa de Lopez para situações do passado de Ayers, exibidas em flash back.

Entretanto, há no filme algo que não convence, algo de superfície que não chega a se interiorizar. Se Donwney Jr. está bem como Lopez o mesmo não se pode dizer de Foxx como Ayers. A atuação de Foxx é tecnicamente perfeita, irrepreensível, porém com alguns altos e baixos no tocante ao seu envolvimento com a personagem que interpreta. Foxx talvez não seja um ator de primeira escolha para interpretar um esquizofrênico e isso diz tudo.

“O Solista” leva o espectador, em muitos momentos, a achar que assiste a um grande filme. Entretanto, essa impressão se desvanece principalmente quando o diretor se empenha em “situar” Ayers dentro do mundo sórdido das ruas cheias de mendigos ou no abrigo onde vivem deficientes mentais. A tentativa de impactar o espectador com uma realidade à qual não está habituado e o contraste entre a sensibilidade e a sordidez dos meios frequentados  por Ayers não fogem aos clichês comumente utilizados em obras do gênero.

Ayers e Lopez são personagens reais que Wright levou para a tela, talvez exagerando em sua tentativa de reprodução da realidade. Nem sempre o mundo real e a própria realidade se afinam por inteiro com a sétima arte, exigindo dos diretores de filmes algum esforço extra de imaginação para que fatos cotidianos não contaminem demais o aspecto ficcional do cinema.