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Cinzas

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Não sei se o padre está lá, mas deveria passar o dia esperando pelos pecadores do carnaval, ungindo suas testas com as cinzas da quarta-feira.

Um amigo me disse, certa vez, que a manhã mais silenciosa do ano é esta da quarta-feira. Na época o samba parava e o carnaval estava terminado. Nada mais restava aos foliões de então que não alguns momentos de remorso por alguns mal feitos ou impertinências de baile, tantas vezes envolvendo a mulher dos outros. Aquela bela cigana, enlaçada com um sujeito tão feio, por que não passou o carnaval comigo? Em que noite, em que baile, em que ano isso aconteceu? Carnaval é isso, confusão de memórias, ressaca eterna, promessa matinal de nunca mais beber, nem seguir adiante de mãos dadas no cordão dos desesperados.

Certa senhora, nascida de mal com a vida, odiava o carnaval. Dizia que era o tempo de Satã na Terra, o Tinhoso que espalhava tentações para o pecado, colhendo créditos para cobrar mais tarde na portaria do inferno. Era ela das primeiras a ir à Igreja na manhã de quarta que ela chamava de “quarta-feira de trevas”. Sempre vestida de negro, entrava na igreja e sentava-se na primeira fila de bancos para assistir, de camarote, o desfile dos pecadores arrependidos. Dizia que, entretanto, de nada valia o pedido de perdão depois da diversão: não se limpa roupa suja com o ferro de passar, é preciso lavar bem a alma para que Deus ouça e se apiede dos pecadores.

Conheci bem a essa senhora um tanto lúgubre, testemunha de pecados alheios, ela mesmo talvez pecadora grande que se tinha por pura. Morreu num desastre do qual não a preveniu seu anjo da guarda, talvez por ser novo de vez que ela dizia que essa categoria de anjos troca de posto a cada aniversário de seu protegido. E ela fizera aniversário – ou trocara de casca – poucos dias antes do acidente. Falo dessa senhora porque ela permaneceu para mim como figura símbolo da quarta-feira depois do carnaval, após o pecado coletivo.

Está em Bergson, primo por afinidade de Proust, que é possível recuperar os nossos “eus” passados desde que uma determinada circunstância nos coloque diante de uma situação vivida e esquecida. O gatilho para que voltemos a ser, ainda que só por um instante, aquilo que fomos depende de lembranças que se apagaram porque não eram importantes. Coisas periféricas e esquecidas podem, de um momento para outro, devolver-nos a nós mesmos, recuperando-se por instantes as pessoas que fomos, deixando de lado o ser que assumimos no presente.

O carnaval é uma boa época para que antigas fantasias que vestimos voltem ao nosso corpo, restituindo-nos as pessoas que fomos e deixamos de ser. Basta olhar para a multidão que passa, para a mulher seminua no carro alegórico e, de repente, temos trinta anos a menos e estamos correndo atrás daquela colombina destinada a desaparecer para sempre no meio de um bloco, como acontece aos seres que se tornaram imaginários.

Quarta-feira de cinzas! Quantas lembranças de carnavais passados, ah bons e velhos, talvez estúpidos, mas tão bem curtidos pecados!