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Manuscrito de Autor Desconhecido

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Há cerca de três anos estive na antiga sede da Faculdade de Medicina da Bahia, localizada no Terreiro de Jesus, em Salvador. Encontrei o prédio em fase avançada de deterioração, aguardando a restauração que não sei se já foi realizada. Mais constrangedora que a situação do prédio era a dos milhares de livros antigos, abandonados no andar inferior e expostos à poeira e intempéries. Realmente, era de causar tristeza observar o triste destino reservado a obras que serviram, em épocas passadas, à formação de médicos, alguns deles de grande projeção no cenário nacional. A lembrança de nomes como os de Nina Rodrigues, Manuel Vitorino, Afrânio Peixoto, Oscar Freire, Alfredo Brito, Juliano Moreira, Martagão Gesteira, Prado Valadares, Pirajá da Silva e Gonçalo Muniz ilustra o que acabei de afirmar.

Eu folheava um exemplar da “Terapêutica Clínica”, de Martini, editada em Madri, em 1929, quando deparei com um livro de higiene, escrito em francês, do qual haviam se perdido a capa e as páginas iniciais, tornando impossível identificar o autor e o ano de publicação. Entretanto, era possível ver, pendendo do interior de suas páginas, as bordas desgastadas de folhas que, possivelmente conteriam anotações de alguém que fizera uso do livro.

Atraído pela possibilidade de encontrar algo inédito abri o livro e retirei as folhas anexas de seu interior. Na verdade tratava-se de um manuscrito que tive muita dificuldade em ler dada a letra difícil, rasuras e mesmo deterioração de parte do papel.

Nos dias seguintes dediquei-me a recompor o texto do autor desconhecido. Fui obrigado a interferir, adaptando-o à linguagem atual e completando frases que me pareceram ininteligíveis. O resultado foi uma espécie de conto com características comuns à literatura do século XIX. É o que reproduzo a seguir:

“No encontro de variedades em que se faziam perguntas sobre assuntos gerais alguém perguntou:

- O que leva um homem a matar uma bela mulher a quem ama?

As respostas dos participantes foram óbvias, não fugindo ao padrão. As mais frequentes razões apontadas foram ciúme e traição.

Até que um senhor bem velho, levantou-se do meio do público e gritou:

- Eu matei a minha mulher, a mais bela entre todas. E não foi por ciúme ou traição.

A surpresa provocada por tais palavras foi enorme. Muitos ohs percorreram fileiras de bocas entreabertas, algumas delas com a crispação de dentes. De todo modo, gerou-se ali um circulo de energia violenta concentrado no homem que proferira aquelas terríveis palavras. Foi então que o velho decidiu se explicar. Disse ele:

- Era ela a mais bela entre todas as mulheres. A fama de sua beleza espalhara-se por toda a região a ponto de que, à nossa porta, ficassem pessoas à espera de que, por sorte ou acaso, pudessem vê-la. Entretanto, dentro de casa vivíamos um drama inexplicável: nenhuma felicidade existia em nosso lar. A minha bela mulher ficava o tempo todo recolhida a um aposento, ajoelhada diante de um pequeno altar. Rezava horas seguidas a ponto de não comer e enfraquecer-se. Dia após dia eu a via ali, ajoelhada e definhando, sua beleza escoando-se como as águas de um lindo riacho que seca devagar.

Era a situação insustentável. Certo dia, encontrei minha mulher caída e a recolhi ao nosso leito. Um médico, chamado às pressas, foi incapaz de diagnosticar o seu mal. De nada valeram os remédios que a ela foram dados. No final, transformara-se aquela beleza estonteante num arcabouço de ossos revestidos pela pele alvíssima que só se vê nos cadáveres. Entretanto, seu rosto mantinha-se lindo, como a zombar de seu corpo.

Foi um período terrível aquele. Entretanto, curiosamente, apesar do estado terminal de saúde de minha mulher, não conseguia ela morrer. Dias se passavam com ela em franca agonia sem que se chegasse ao desenlace final. Ela já não falava e havia quem dissesse que não respirava. Ainda assim, continuava viva.

Certa noite, porém, estava eu velando por ela quando percebi que me chamava. Aproximei meu ouvido de seus lábios e ouvi dela terrível confissão. Nascera ela feia, horrorosa, tão feia que jamais saía à rua. Tivera uma infância infeliz: zombavam de sua feiúra chegando a atirar pedras para afugentá-la. Isso durou até, certo dia, encontrar um senhor que falou com ela amenamente e a consolou. Aquela que mais tarde seria a minha mulher não teve forças para resistir ao trato que ele lhe ofereceu: a troca de sua alma pela beleza.

Foi assim que ela tornou-se bela. Brilhou em salões até casar-se comigo, homem de posses a quem disse ter amado. Isso durou até que o homem a quem vendera a sua alma veio cobrá-la. Entretanto, ela se recusara e ele, por vingança, condenara-a a definhar e sofrer indefinidamente. Restava-lhe morrer, coisa que o encantamento de que fora vítima a impedia exceto se assassinada por quem mais a amasse. Por isso, implorava que eu a matasse.

Fiquei pasmo com tal confissão. Era eu incapaz de matar um pequeno animal que fosse, que dizer a minha própria mulher. Desesperado, contratei um assassino que, na penumbra, introduzi no quarto para esganá-la. Ele bem que tentou, apertou o pescoço, sufocando-a com o travesseiro. No fim, vendo que ela não morria, saiu correndo do quarto e nunca mais o vi. Nessa ocasião toda a casa encheu-se de fortes e estranhos odores, desesperando-me ainda mais.

O fim de nosso padecimento é já conhecido. Eu a matei. Fiz por amor e para livrá-la de seu sofrimento.

Desde então tornei-me um peregrino. Atravessei épocas vagando pelo mundo até entender que ao matar a minha mulher assumi o lugar dela na jura de eternidade maldita.

É assim que vim parar aqui, em meio de tanta gente, por ocasião deste encontro de perguntas.

Tendo falado assim, o velho levantou-se e saiu em meio a grande silêncio. Houve quem duvidasse de sua história. Outros acharam que talvez fosse ele o próprio o Anjo Caído. Duas senhoras muito religiosas afirmaram ter sentido odores infernais durante a fala do velho.

O certo é que ele desapareceu e, depois desse dia, o encontro de perguntas deixou de ser realizado. “

No final do texto deparei com um comentário do autor: escrevera a história baseado no relato de um paciente a quem atendera. O paciente o procurara em busca de um veneno infalível que pusesse fim à vida dele. O médico se recusara, para isso alegando o Juramento de Hipócrates.

A última coisa que encontrei no manuscrito foi um traço meio apagado, provavelmente parte de uma assinatura que me permitiria, talvez, investigar a veracidade da história.