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A censura

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Aconteceu numa viagem de bondinho pela Estrada de Ferro Campos do Jordão. O bonde saia de Pindamonhangaba em direção a Campos do Jordão. Nós, moradores de Santo Antônio do Pinhal, desembarcávamos na Estação de Eugênio Lefreve, no meio da Serra da Mantiqueira. Da estação até Santo Antônio são 4 Km de distância.

Eram os anos sessenta do século passado. Ainda não existia a estrada asfaltada que hoje liga o Vale do Paraíba a Campos do Jordão de modo que o bondinho funcionava como acesso entre as duas regiões. Havia, sim, uma estrada, mas de trânsito difícil. Muitas curvas na serra, sem asfalto, íngreme e, por vezes, intransponível no período de chuvas. Naquela época era grande a produção de produtos hortifrutigranjeiros na região de Santo Antônio. Esses produtos eram transportados, por caminhões, aos mercados de São Paulo. As dificuldades de acesso pela estrada em períodos chuvosos, provocava a paralisação dos transportes. Quantas vezes teremos visto caminhões carregados com cargas a apodrecerem nas suas carrocerias.

Certa ocasião íamos, eu e meu pai, em viagem de bonde na direção de Santo Antônio do Pinhal. A última estação, antes da subida da serra, é a de Piracuama, que ainda existe. Ao chegar ela, avisaram-nos de que deveríamos desembarcar por conta de problemas com o bonde, se bem me lembro defeito nos freios. Anoitecia. A única hipótese plausível seria a de passar a noite sentados nos bancos da plataforma da estação.

Assim foi feito até que, certa hora, passou pela estrada o Paulino tropeiro. Ao vê-lo meu pai gritou por ele que de pronto nos reconheceu. O Paulino comandava sua tropa de burros com os quais realizava o transporte de cargas na região. Era um homem corpulento, mas não gordo. Levava sempre, na altura do pescoço, um lenço vermelho com o qual cobriria a face em momentos de muita poeira. Para mim a figura do Paulino será sempre a de um homem sobre seu cavalo, com o lenço vermelho no pescoço.

Foi o Paulino quem nos salvou de passar a noite na plataforma da estação. Sobre o lombo de burros eu e meu pai, fizemos a travessia da serra numa noite sem luar. Haveria muita coisa a relatar sobre essa estranha viagem numa serra inóspita, na escuridão. Mas, por agora, basta-me lembrar de um momento que guardei para sempre na memória: íamos, serra acima quando, em certo momento e diante do desconforto que experimentávamos, meu pai disse ao Paulino:

- Paulino você já se está acostumado com isso.

Ao que o outro retrucou:

- Meu senhor, nessa vida a gente só se acostuma com o que é bom…

Lembrei-me disso ao ler que um jornalista do site Intercept se demitiu ao ter um artigo censurado e não publicado. O tema do artigo eram atividades do candidato Biden à presidência dos EUA e seu filho. Sendo negativo e às vésperas da eleição o artigo fora censurado pelo fato de que, segundo o demitido, o Intercept ser favorável à vitória de Biden.

Entre 1964 e 1985 o Brasil foi governado por militares. Nesse período, conhecido como Ditadura, foi abolida a liberdade de expressão. A censura agia sobre todas as formas de expressão. Jornais, meios de comunicação em geral, atividades musicais etc. só chegavam ao público após passarem pela censura. Foi a época em que o jornal “O Estado de São Paulo” publicava em suas páginas receitas de alimentos no lugar de textos censurados.

Vivia-se, no país, a censura. Havia medo de falar em público sobre assuntos que seriam comprometedores. Esquerdistas e comunistas, contrários ao regime, eram punidos. Mas, em tantos anos de censura pode-se dizer que nos acostumamos com ela?

A resposta a isso depende de cada um. Mas, é difícil, senão impossível, acomodar-se a algo que fere a liberdade de expressão. De modo que fico com o que aprendi naquela noite, na estrada de terra da Serra da Mantiqueira quando o Paulino, com a sabedoria do homem simples que era, sentenciou:

- A gente só se acostuma com o que é bom.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 outubro, 2020 às 1:35 pm

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