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O discurso do padre

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Era um homem entrado em anos e algo fanhoso. Quando as beatas pararam de cantar ele levantou-se e foi, vagarosamente, até o púlpito. Instalou-se ali como alguém que voltasse à casa depois de muito tempo. Na frente dele um microfone do qual demorou-se a se aproximar. Tinha os olhos perdidos no altar, vagando entre as imagens de santos como a se decidir a qual deles pediria socorro.

Apinhados em todas as partes do templo os fiéis esperavam. Terminara a pouco a procissão de Senhor Morto que íntegra o ritual católico da Sexta-feira Maior. A essa altura Jesus repousava em seu leito de morte, defronte o altar, coberto de flores como convém aos que morreram. Era bem um morto diferente - todos sabiam - porque ressuscitaria na noite da Aleluia.

Aquela gente toda que percorrera as ruas na procissão das velas acesas, seguindo o esquife do Senhor morto, agora esperava que aquele homenzinho de batina que ocupava o púlpito falasse a eles sobre o mistério do momento em que o Senhor estava ali, morto, preparando-se para ressurgir entre os vivos. Ele sofrera nas mãos dos algozes romanos, fora pregado na cruz, deixara-se torturar pela rendenção justamente dos homens, de pecadores como eles que, contritos, esperavam pela voz do padre.

Então o homem da batina começou, finalmente, a falar embora nada do que dissesse fosse entendido. De sua boca saiam frases que soavam desconexas, sem sentido. A idéia anterior não se ligava à posterior e entre elas produzia-se uma lacuna que alguém mais tarde diria terem sido soluços abafados.

Divagou o padre por mais de meia hora num discurso incompreensível cujo significado ainda hoje permanece obscuro. Quando terminou seu sermão houve um grande silêncio como se as palavras pronunciadas precedessem um grande cataclismo, talvez até mesmo o fim do mundo. Mas, nada aconteceu. O padre desceu do púlpito e desapareceu em meio à turba de Madalenas chorosas.

Houve quem dissesse que naquela noite se operara um milagre. O padre teria experimentado um momento de elevação e, durante a transcêndencia, falara a linguagem dos deuses, frases que só os anjos poderiam compreender.

Foi esse o início da trajetória de um homem que passou a ser considerado santo. Conta-se que milagres se operaram ao tempo da vida do padre e ainda hoje se operam aos que a ele rogam favores. Na cidade onde o padre serviu a prefeitura mandou fazer uma imagem, réplica dele, ponto onde se reúnem as romarias que vêm de toda parte em busca de milagres.

Quanto ao médico que tentou explicar que o padre sofrera um derrame tendo sido afetada a coordenação de suas idéias consta que foi acusado de herege e teve que trabalhar noutra freguesia. A cidade tinha seu santo e isso era o que de fato importava.

Escrito por Ayrton Marcondes

21 abril, 2014 às 7:32 pm

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