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Finados

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Ontem foi o dia de Finados. Perguntava-se, na véspera do feriado, se choveria. Alguém disse: Finados é dia de chuva. Choveu.
Há um poema de Arturo Torres Rioseco, traduzido por Manuel Bandeira, cujo título é “Elegia de uma Rua”. Nele o poeta fala sobre o retorno a uma rua pela qual passou o enterro de pessoa amada. São passados vinte anos desde o dia do enterro e as pessoas que a levaram também já se perderam no fim da estrada. No fim diz o poeta:
Foi por aqui que a levaram,
Por esta rua passaram.
Levamos os mortos e seremos levados. Finados celebra a morte, o fim do sonho e de toda a ilusão. Celebra as memórias de pessoas a quem tantas vezes nos esquecemos, mas permanecem vivos como se em viagem distante da qual não retornarão.
No lugarejo onde nasci acreditava-se que a chuva fizesse bem aos mortos. Chover em dia de enterro seria dádiva para aquele que morreu. Foi assim com a moça que tomou veneno em nome da paixão não correspondida; com o homem que bebeu e foi arrastado pelo cavalo porque o pé ficara preso ao estribo; com o padre de quem se dizia amasiado com uma filha-de-Maria; com o menino pequeno levado pela enchente do riozinho. Só não choveu no enterro do homem que surpreendeu o tio na curva da estrada e matou-o com um tiro por vingança. Por ele as nuvens não choraram.
Naquele tempo os cadáveres eram velados em casa. O morto era banhado e vestido pelos parentes próximos que, depois, o colocavam no caixão. Terminados os cuidados o morto era posto à visitação, dentro do caixão, na sala. As pessoas iam e vinham, lágrimas nos olhos, uns por amor, outros por obrigação, outros ainda por simples curiosidade. E o morto, indiferente, mãos sobre o peito, adornado por flores e o crucifixo talvez útil a ele na viagem para o céu.
Em menino vi muitos mortos. Ainda agora revejo meu irmão que se afogou em seu banho de cadáver na casa de minha avó. Lembro-me do rosto pálido, os braços inertes que se deixavam ir para qualquer lado quando viravam o corpo. Esperando do lado de fora meu pai andava de um lado a outro, perdido. Minha mãe, terço na mão, talvez rezasse pelo do acontecimento incompreensível.
Meu irmão foi levado na mesma rua por onde mais tarde passaram os caixões de meus pais. Eles se perderam no fim da estrada. Finados me faz pensar que num dia, não muito distante, também eu me perderei.

Escrito por Ayrton Marcondes

3 novembro, 2012 às 8:54 am

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