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As histórias que inventamos

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A linha que separa a realidade da ficção nem sempre é precisa e facilmente detectável. Sendo a ficção reprodução nem sempre confiável da realidade entre as duas estabelecem-se códigos que muitas vezes as aproximam, mas, que, também, podem separá-las.

No livro “Como funciona a ficção” James Wood nos remete ao ensaio “Um enforcamento”, escrito por George Orwell. Nesse ensaio Orwell observa que o condenado, no momento em que se dirige ao cadafalso, desvia-se de uma poça d’ água. Essa preocupação em não sujar os sapatos, gesto irrelevante para quem vai morrer em seguida, é considerada por Orwell como “mistério” da vida. Em relação a isso Wood nos propõe a hipótese de que o texto de Orwell não seja um ensaio – fato – e sim obra literária – ficção. Nesse caso, a poça d’ água passaria à condição de detalhe soberbo que o escritor poderia ter criado. Esse detalhe - acrescenta Wood - denota exatamente o inexplicável. Enfim, em sendo verídico que condenado desvia-se da poça, esse fato representa, nada mais, nada menos, a irrelevância da própria realidade – em itálico como no texto de James Wood.

A conclusão de Wood nos conduz à realidade do cotidiano de nossas vidas no qual significativa parte do que pensamos e executamos pode ser considerado irrelevante. Talvez alguns detalhes do que fazemos e aos quais não damos importância porque considerados “atitudes óbvias” tivessem outro significado saindo-se do fato em si e passando-os ao terreno da ficção. De fato, a um condenado que vai morrer em seguida pouco importaria se seus sapatos devem continuar limpos; mas é, justamente, a noção da vida que ainda não acabou e o hábito de cuidar dos sapatos que explicam a atitude do condenado ao desviar-se da poça d’ água. Trata-se do tal “mistério” da vida.

Não terá passado despercebido ao leitor que muitas histórias que contamos a respeito de nós mesmos ou de fatos que presenciamos no passado nem sempre guardam relação perfeita com a realidade acontecida. Pode-se dizer que é até mesmo comum que à custa de repetir tendenciosamente um fato acabemos por nos habituar à versão imaginada a ponto de, a certa altura, a tomarmos por verdadeira. Pessoas simplesmente criam explicações favoráveis a elas sobre certos acontecimentos. É muito possível que a princípio tenham a noção de que estão se distanciando do fato em si em termos de verdade. Mas, com o passar do tempo, a explicação engendrada converte-se em verdade para elas, para isso contribuindo a já citada repetição ao longo do tempo.

O que se quer aqui é afirmar que dentro da realidade em que se vive, acopla-se um universo de histórias que inventamos muitas delas com detalhes irrelevantes que se tornam importantes dado que agora se trata de ficções criadas. Obviamente, com a pressa e os compromissos diários pouco nos damos conta disso. E prosseguimos, seguindo em frente, desviando-nos, transformando parte dos fatos que nos acontecem em detalhes irrelevantes, de preferência tendenciosamente modificados.



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