A morte gravada at Blog Ayrton Marcondes

A morte gravada

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Antigamente morria-se mais discretamente, anonimamente. Mesmo os que morriam de repente tinham mais direito à privacidade. A morte chegava como sempre sem aviso, mesmo nos casos em que podia ser pressentida. Todo mundo sabe que a morte ronda certos lugares onde atende a maior o número de chamados. Hospitais, estradas… Há quem acredite que a morte atua do mesmo modo em qualquer lugar, mas o fato é que é presente onde mais se precisa dela.

Quase ninguém se dá conta, mas a morte não passa de um funcionário da eternidade. Há um grande poema – cujo autor escapa à memória – que fala sobre o homem que se levanta de manhã no dia em que vai morrer. É um dia como os outros, com problemas a resolver e tanta coisa a fazer. Tudo seria como sempre exceto por esse encontro imprevisto, depois do qual tudo deixará de ser.

Mas, dizia, no passado morria-se mais discretamente. Hoje em dia não é assim, há casos em que os detalhes que precedem o grande momento são dolorosamente revelados e exibidos nos meios de comunicação. Câmeras nos estabelecimentos comerciais, nas ruas, em toda parte, flagram os últimos momentos de alguém e muitas vezes a ação da própria morte. Aqui alguém baleado num tiroteio, ali uma pessoa espancada até a morte, mais além um veículo em alta velocidade que colide com outro ou atropela alguém. Cenas mudas, terríveis, dolorosas, cotidianas, absurdas, incorporadas ao dia-a-dia como se fossem absolutamente naturais.

Agora se fala muito sobre o acidente em que uma moça, dirigindo uma Land Rover, atropelou e matou um rapaz. Há indignação geral, a moça teria bebido antes ou não, seria ela ou não ao volante, o assunto rende especulações de todo tipo. Mais terríveis são as cenas que vão sendo coletadas, obtidas a partir de filmes gravados por câmeras localizadas no lugar onde tudo aconteceu. Então há um filme em que o rapaz atravessa uma rua, andando muito depressa. Ele segue pela faixa de segurança, não passa de um vulto correndo na madrugada. Um instante depois acontece o acidente que o filme não mostra. Então estão aí, por toda parte, sendo mostrados os derradeiros instantes de uma vida prestes a ser extinta, a imagem de um vulto correndo, pode-se imaginar com que dor aqueles que amam e sofrem pela perda do rapaz terão visto essa cena.

As imagens gravadas pelas câmeras podem ajudar a desvendar o que acontece, mas para quem perde um ente querido talvez o melhor seja não ver cenas que se repetirão para sempre nas memórias, uma família sendo levada pela enxurrada, um filho deixado morto na calçada após ser espancado, um rapaz correndo para a morte que o espera logo à frente, sob as rodas de um veículo.

Escrito por Ayrton Marcondes

8 agosto, 2011 às 10:19 am

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