Rebelião no presídio da Ilha at Blog Ayrton Marcondes

Rebelião no presídio da Ilha

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Eu costumava chamar isso aqui de San Quentin porque não gostava do nome Anchieta. Conheci um cara que esteve preso em San Quentin e foi solto porque descobriram que era inocente. Depois disso, matou a mulher (não suportamos que elas nos traiam enquanto estamos presos) e se mandou para o Brasil. Esse cara esteve metido num assalto grande e ficou marcado pela polícia. Um dia o pegaram: é sempre assim com os caras marcados.

Estou aqui, de volta à Ilha Anchieta (já aceito o nome) e parece que, na verdade, nunca saí desse lugar. Visito a ilha e o presídio, agora vazio. Olho para o mato que cresce sem regra nos pátios, formando verdadeiras capoeiras. Circulo pelos corredores que levam às antigas celas e quase posso ouvir o grito dos homens atrás das grades. Paro no entroncamento de dois corredores e relembro quantas vezes passei por aqui, algemado. Eu era desses que iam muitas vezes para a solitária ou pegava trabalhos forçados. Havia muita perseguição dos guardas contra gente como eu, porque não éramos como os demais presos. Pode-se dobrar um homem em dois, mas se ele for macho não se consegue vergar a sua alma, não é assim? A liberdade é a maior utopia instituída pela humanidade. Você pode ser livre em qualquer lugar, mesmo quando está preso. Eu sempre pensei assim e dizia isso aos meus companheiros, mas eles nem sempre entendiam direito. Eles me tinham como um sujeito preparado. De fato, cheguei a entrar numa universidade, mas não a frequentei. Sempre gostei de ler, lia muito quando estava aqui, minha mulher mandava livros de vez em quando. Os guardas me chamavam de intelectual e riam perguntando por que eu não limpava a bunda com os livros. Eu não respondia a essas provocações, mas elas me exasperavam. Um dia um guarda, o Granatão, folgou comigo sobre livros e eu cortei a garganta dele. Desgraçadamente errei no bote e não peguei a carótida. Ele sobreviveu e, depois disso, nunca mais se meteu comigo. Mas, paguei muito caro por isso: fui a julgamento e minha pena foi acumulada com mais alguns anos.

Tenho 85 anos e fui condenado à perpétua por vários crimes. Bom comportamento nos últimos anos, doença e idade avançada me garantiram uma condicional. Estou livre a algum tempo e hoje vim visitar a Ilha, de certo modo o meu espírito sempre viveu aqui. Pode parecer incrível, mas tenho saudades desse lugar maldito. Andando aqui dentro eu me sinto em casa. Agora páro diante da cela onde passei longos anos da minha vida e é como se revisse um antigo lar. Eu sofri barbaridades aí dentro, a maior delas, talvez, a falta de mulher. Mas, resisti. Lembro-me de que passava grande parte do tempo filosofando sobre o crime e me perguntando por que afinal eu era um criminoso. Li muita coisa a esse respeito e acho que existem teorias demais para explicar aquilo que, na maioria das vezes, não passa de uma simples paixão. A contravenção é, para o verdadeiro criminoso, um ópio. Nem sempre a ela se associa a necessidade de praticar o mal. O mal não passa de uma consequencia da contravenção. Eu, por exemplo, nunca parti para um crime necessariamente pensando em praticar algo mais que a ação prevista para a sua consumação. O que aconteceu a mais se deveu ao fato de que todas as ações contêm variantes inesperadas e essas, no momento em que ocorrem, não nos dão a opção de ignorá-las. Foi isso que sempre aconteceu comigo nas ocasiões em que matei pessoas. Posso dizer que a morte de alguém nunca me deu qualquer prazer. Sempre matei por necessidade, por ser colocado em situações limítrofes nas quais não tinha escolha. Foi assim, por exemplo, com um segurança de banco. O assalto já estava consumado, estávamos saindo, o pessoal todo rendido e lá veio ele achar de sacar o revólver bem na minha frente. Não tive alternativa, enfiei uma bala na testa dele. Ele caiu duro, lembro-me bem de seu rosto ensanguentado. Mas, morreu porque quis; talvez estejam certos os que dizem que um homem só morre quando chega a sua hora.

Eu estava aqui na Ilha Anchieta no dia da rebelião chefiada pelo Pereira Lima. Eu mesmo não me dava lá grande coisa com o Pereira Lima, mas ele era um sujeito  de respeito. Lá isso ele era. E tinha liderança sobre os outros presos. Na verdade ele também exercia influências sobre alguns guardas, justamente os que eram para ser poupados durante a fuga. Digo eram porque quando as celas foram abertas e a turba se espalhou pelos corredores quase ninguém foi poupado. Verdade que o Pereira Lima tentou organizar ao máximo as coisas, mas houve preso pequeno que se meteu a grande e andou fazendo barbaridades. Muitos desses tais foram mortos pelos seus próprios companheiros, quer dizer, resolveram-se muitas rixas pendentes antes da fuga. Caras que sempre quiseram se pegar não deixaram as suas diferenças para depois.

Eu fugi no barco em que com Pereira Lima e muita gente. Chegamos juntos ao continente.Eu fui recapturado junto com outros presos Mais tarde soubemos que muitos tentaram atravessar a nado e morreram no mar.

Se eu pudesse, passaria os meus últimos dias de vida aqui no presídio da Ilha Anchieta. Afinal, a velhice consiste em colecionar lembranças e quase todas as minhas estão enterradas aqui, entre essas paredes. Olhar para esses corredores e celas vazias deixa-me um pouco triste porque é como se eu tivesse desaparecido e a minha voz para sempre se calado.

PS: o texto “A rebelião no Presídio da Ilha” é uma ficção. A rebelião dos presos da Ilha Anchieta aconteceu no dia 20 de junho de 1952. Domingos Pereira Lima matou pelas costas um soldado e, em seguida, foram mortos outros policiais Os bandidos, muito armados, atacaram primeiro o quartel e depois desceram até o presídio. Mataram o Diretor e o Comandante do Destacamento. A ação resultou no maior massacre acontecido em presídios até então. Foi, também, a maior rebelião na história dos presídios em todo o mundo até a data do seu acontecimento.

Escrito por Ayrton Marcondes

8 fevereiro, 2010 às 7:10 am

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