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Charles Baudelaire

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A minha primeira experiência com as “Flores do Mal”, de Charles Baudelaire (1821-1867), deu-se por volta de meus quinze anos de idade. Havia em casa de meus pais uma pequena biblioteca composta por livros que vinham desde a década de 1920, adquiridos por pessoas da família. Biblioteca de outro tempo com obras hoje consideradas raras, algumas das quais tive a sorte de salvar de tragédias familiares futuras: o destino dos livros em geral liga-se ao de seus proprietários cabendo-lhes, como parte do espólio, os impactos de mudanças, separações, incêndios, fenômenos atmosféricos etc.

Pois me lembro perfeitamente de meu primeiro encontro com as “Flores do Mal”.  Na verdade foi um encontro com o livro “Flores das Flores do Mal”, uma edição de 1944 publicada pela Livraria José Olympio, com tradução do poeta Guilherme de Almeida. Não sou capaz de descrever o meu espanto ao ler poesias como “Uma Carniça”, “As Litanias de Satã”, “Spleen” e outras. Terá sido esta ocasião a primeira em que fui atingido pelo verdadeiro impacto da modernidade àquela altura já antiga porque Baudelaire publicara “As Flores do Mal” em 1857. Eram 100 poemas que valeram ao poeta acusações de blasfêmia e obscenidade feitas pelo governo imperial francês. O Segundo Império de Napoleão III pisava em ovos quanto ao perigo de censurar uma obra literária mas impunha-se colocar um freio à libertinagem. Baudelaire foi condenado a pagar uma multa de 300 francos e retirar de seu livro seis poemas considerados eróticos.

Há de tudo em “As Flores do Mal”. O poeta que domina as regras formais do poema esmera-se em metáforas chocantes provocando, intencionalmente, espanto e repulsa. É a subversão da ordem, a corporificação dos contrastes, a lembrança de que o belo é passageiro e seu destino é a corrosão pelos vermes. Assim, há beleza e horror plasmados no casal que, em sua carruagem defronta-se com a podridão de um cadáver animal que, à beira da estrada, se decompõe:

Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,

As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações

…..

- E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!

Sim! tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.

(Versos de “Uma Carniça” – Tradução de Guilherme de Almeida)

Sexo, drogas, prostituição, decomposição, seres errantes, álcool: a poesia de Charles Baudelaire é a do observador atento que flagra o efêmero durante suas andanças. É o homem diante circunstâncias absurdas que o poeta desnuda, obediente à métrica da construção de sonetos, mas interessado numa outra forma de apresentação que subverte a arte romântica.

Não sem razão o grande poeta Charles Baudelaire é considerado, por muitos críticos, o primeiro entre os modernos. Ainda hoje o contato com “As Flores do Mal” é arrepiante. Exemplares de “As Flores do Mal”, de diferentes tradutores, podem ser encontrados nas livrarias.