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Dentro das caixas-pretas

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O que resta de vida após acidentes aéreos em que todos morrem fica dentro das caixas-pretas. No interior desses artefatos permanecem guardados não só os segredos dos fatores desencadeantes dos acidentes, mas, por vezes, o último alento de vida dos passageiros desaparecidos.

As caixas-pretas são, na verdade, peças de horror, último contato antes do não ser. Isso é o que mostra, por exemplo, a gravação dos instantes finais do acidente que roubou a vida do presidente da Polônia, Lech Kaczynski, ocorrida em 10 de abril deste ano. Ao todo morreram 96 pessoas na tragédia ocorrida na cidade russa de Smolensk.

Pessoas conversando na cabine, alarmes de obstáculos terrestres indicando a necessidade de elevar o vôo para evitar colisão, o ruído de uma asa batendo nas copas de árvores e gritos, muitos gritos antecedendo o silêncio total.

Nenhum filme sobre acidentes aéreos jamais reproduzirá o horror absoluto desses gritos. É como se um punhado de vidas fosse condenado à eternidade de uma gravação na qual vozes subitamente despersonalizadas dialogam com o absurdo até renderem-se a um silêncio definitivo e sem explicação.

As caixas-pretas são lições sobre a fragilidade dos homens e as máquinas que eles inventam. Elas são o que a morte nos devolve numa espécie de vingança contra a confiança que temos na vida. Por vezes as caixas-pretas simplesmente desaparecem, não sendo encontradas, e resta apenas a dor por perdas jamais esclarecidas.

Jamais penso em caixas-pretas quando estou num avião. Prefiro a visão do mundo lá do alto, o céu azul, o sorriso das pessoas que parecem pairar sobre as nuvens. Trata-se da vida que se sobrepõe às fatalidades, ainda que em permanentes desafios.

Dia de cão

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Há cenas que começam com uma tomada de rua e continuam com o progressivo deslocamento da câmera para o alto. Tem-se, assim, a impressão de afastamento da realidade iniciada com a visão dos prédios, depois da cidade inteira e finalmente da própria Terra observada do espaço.

Tenho a impressão de que cenas como a descrita acima visam demonstrar a pequenez da existência individual quando confrontada com as imensidões planetárias. Lembrei-me disso terça-feira, em São Paulo, quando a cidade foi assolada por repetidos temporais. A submissão da ordem natural das coisas a forças extraordinárias, manifestas pelos efeitos catastróficos provocados pelas chuvas, colide com os interesses pessoais, fazendo-nos passivos de situações sobre as quais não temos qualquer controle.

Ruas cheias de água e trânsito parado sem qualquer previsão de escoamento conferem ao cidadão que circula dentro de seu carro uma profunda sensação de inércia, quando não de puro desespero. Mas, isso não é o pior: inundações, desabamentos, queda de árvores e mortes compõem um quadro agressivo de impotência contra as forças da natureza. Daí que nos choca o contraste entre as conquistas alcançadas no campo da tecnologia e a impossibilidade de aplicá-las num momento em que até mesmo os telefones de emergência deixam de funcionar.

Mas, como será a imagem do caos vista a grandes distâncias? Como teríamos aparecido no dia de ontem a um observador que utilizasse um grande telescópio, capaz de observar a cidade diretamente do espaço? Não tenho dúvidas de que toda a agitação teria passado despercebida a ele. Talvez um olhar ocasional, através de lentes que garantissem grandes aproximações, permitisse ao observador diferenciar pessoas sem nome, envolvidas em situações curiosas, mas que causariam a ele indiferença. Isso quer dizer que o meu problema, o seu problema, os nossos problemas circunstanciais, vividos tão intensamente, simplesmente desaparecem ou deixam de merecer atenção quando vistos de tão longe.

Pois foi assim que me pareceram as notícias sobre tragédias acontecidas na terça-feira, não só em São Paulo como em outras cidades. Aqui uma casa destelhada, ali alguns carros submersos, mais à frente bombeiros e moradores de casas próximas cavando em busca dos corpos de meninos soterrados após um desabamento.

Aconteceu enquanto eu tomava o café da manhã. No noticiário da televisão uma moça falava sobre a previsão do tempo e mostrava os estragos da chuva. No Paraná um desabrigado referia-se à força do vento que destelhara a sua casa; em Santa Catarina um repórter noticiava a morte de quatro pessoas em conseqüência do vendaval.

Não interrompi o meu café. Fatalidades acontecem, o que fazer? Só algum tempo depois comecei a me sentir como o tal sujeito do telescópio que observa o mundo de longe, vendo tudo com indiferença ou fingindo que aquilo não é com ele. Então me senti mal, muito mal.