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Linha de cerol

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Crianças adoram soltar pipas. Pipa no ar dá sensação de liberdade, de transposição de  limites intransponíveis. No meu tempo e lá pelos meus lados não chamávamos “pipa” de pipa: o nome era “papagaio”. Soltávamos papagaios. A delícia era fazê-los, prepará-los para o “nosso” voo. A busca dos filetes de bambu para armá-los, o papel e a cola, o rabo de tamanho exato para conseguir equilíbrio durante o voo. E a carretilha na qual se enrolava a linha de cozer, linha fina, mas capaz de resistir aos enfrentamentos do papagaio com inesperados golpes de vento. De repente lá estava ele, frequentando as imensidões, nosso representante num céu límpido com o qual sonhávamos. Assim voávamos.

Há quem prepare pipas e as faça voar com linhas de cerol preparadas com cola e vidro. Esticadas essas linhas tornam-se armas mortíferas. Não raramente recebemos notícia de que alguém foi ferido gravemente por uma linha de cerol. Tempo atrás um rapaz que ia de moto pela avenida da praia teve o seu pescoço cortado por uma linha de cerol e morreu na hora. Ontem, no interior, um homem morreu pela mesma causa. Ele chegava à casa de bicicleta e tentou desviar-se da linha de cerol. Foi atingido por ela na perna daí surgindo grande perda de sangue. Caiu da bicicleta, bateu a cabeça na guia e não resistiu aos ferimentos. A família, inconsolável, pede medidas. Uma autoridade concede entrevista e diz ser impossível encontrar o responsável pela linha de cerol. Outra diz que nas cidades deveriam existir áreas próprias pra soltar pipas. Como se vê ficará por isso mesmo.

O caso do homem que perdeu a vida por conta da linha de cerol me fez voltar situação ocorrida ao tempo de minha infância. Meu pai tinha um comércio na principal e única rua da cidade em que morávamos. Rua estreita, poeirenta como são as ruas de cidadezinhas desse imenso Brasil. Pois por esta rua passava, diariamente, um ônibus que fazia o trajeto entre o sul de Minas Gerais e cidades do Vale do Paraíba. Pois certo dia aconteceu que um rapaz tivesse se alegrado ao chegar à nossa cidade. Tão alegre estava que abriu a janela do ônibus e colocou a cabeça e parte do tronco para fora. Foi quando aconteceu algo inevitável numa rua estreita como aquela: a cabeça do rapaz colidiu com um poste de modo que ficou ele com o corpo separado dela dentro do ônibus.

Como não poderia deixar de ser em lugar pequeno corremos ao local para constatar acontecimento tão inusitado. Ainda hoje me lembro de pedaços de cérebro do rapaz espalhados sobre a calçada e do sangue que escorrera por toda parte. Não fui ver o ônibus, nem tive coragem de observar o corpo do rapaz sem cabeça. Mas, jamais me esqueci do acidente tão trágico que roubou a vida de rapaz tão jovem.

Minha mãe dizia que certas coisas estão escritas daí serem inevitáveis. Ainda penso na chegada daquele rapaz, da possibilidade de ele não ter-se projetado pela janela, de não ter morrido. Seria como se a cena no ônibus fosse regravada dela retirando-se o momento da colisão da cabeça com o poste. Mas, infelizmente, a vida não costuma voltar atrás, assim como é impossível fazer com que o homem que vinha na bicicleta percorresse outro caminho e não se encontrasse com a linha de cerol.