presença da morte at Blog Ayrton Marcondes

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Ainda ela

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Sim, a morte. Não ia falar sobre ela, mas…. Não é que se apresentou de novo? Sem avisar. Inesperadamente. Sorrateira como sempre. Como sempre não se fez anunciar. Sem pródromos.  Assim, num piscar de olhos, certeira, roubou mais uma vida. Talvez ela tenha prazer nisso. Aprecia instalar a desordem, desconstruir. Deixar atônitos os que presenciam seu ato. Intimidá-los. Avisar a cada um que talvez seja ele o próximo. Rir a cambalhotas, olhando os que choram em torno do caixão. Futuros pendentes. Mais hora, menos hora, virá buscá-los. Um a um.

Desta vez foi uma velha conhecida a quem eu não via a algum tempo. Semana passada fez contato. Estava bem, apesar da idade. Uma dorzinha na perna esquerda, quem sabe a coluna, quem sabe a necessidade de trocar o colchão. Falamos sobre noites mal dormidas, travesseiros altos, preocupações disparatadas que nos agoniam justamente nas madrugadas. Ensaiamos iniciar conversa sobre os filhos, mas depressa desistimos. Por onde andarão esses que se alongaram de nós? Em que mundos estarão metidos? Eles que agora nos olham como pessoas de ontem. Ultrapassadas? Não é que de tempos para cá as crias têm-se revelado mais pacienciosas com a gente? Imagine que me pegam pelo braço toda vez que entro e saio do carro - disse a amiga.

Ninguém sabe. A amiga não sabia. Talvez enquanto falasse ao telefone comigo a morte a espreitasse. Talvez a morte tenha uma agenda com datas, horários. Para ela não contam os interesses daqueles que levará. Se a amiga precisasse de mais um dia, só mais um dia, para terminar algo essencial, então não se poderia conceder a ela o benefício de algumas simples horas?

Estive no velório. Observei a face emudecida da amiga. Recordei as últimas palavras que trocamos. Não derramei lágrimas. Abracei o viúvo inconsolável. Estava junto ao caixão quando pressenti que a morte estaria bem ali a observar-nos. Afinal, quem entre nós seria sua próxima vítima?

Perto do fim

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Antes que a morte se mudasse para os leitos hospitalares morría-se mais em casa. De minha infância trago imagens dos últimos momentos de pessoas conhecidas em geral levadas pelas doenças. Os mais velhos estavam familiarizamos com os sinais da morte. Sabiam quando ela se aproximava, sentiam-na invadir as casas, acercando-se dos leitos onde os doentes exalavam seus últimos suspiros. Tratavam com respeito a intrusa que se encarregava de ceifar vidas. As mulheres rezavam. Os homens permaneciam nas cozinhas, sentados em torno de uma mesa na qual reinava um bule de café. Aceitava-se o inevitável com relutância, mas as coisas eram como eram e nada mais havia a se fazer.

Quando aquele que ia morrer começava a emitir sons metódicos a cada inspiração sabia-se que o desenlace estava próximo. Era a “sororóca”. Da sororóca ninguém jamais voltara. Ela era a cadência da morte, o trajeto regular em direção ao derradeiro suspiro. Mas, outro sinal de que o fim seria iminente eram certas coisas que o doente dizia. Vi, por exemplo, gente de minha família referir-se à presença de pessoas já mortas que estariam próximas, no mesmo cômodo. Num desses casos a parenta moribunda apontava em direção à porta do quarto, dizendo estarem ali, fulano, fulana, etc. Eram os mortos que compareciam ao seio da família para acompanhar a travessia de um dos seus ao outro lado, acreditava-se nisso.

Em artigo publicado nesta semana no NYT Jan Hoffman escreve: “Há milênios, os sonhos e as visões dos moribundos cativam as culturas, que lhes atribuem um significado oculto e sagrado. Antropólogos, teólogos e sociólogos já estudaram os ditos fenômenos do leito de morte … mas os médicos tendem a evitá-los porque não sabem que diabo eles são”.

Hoffman relata que uma equipe médica está tentando desmistificar essas experiências e compreender seu significado no apoio a “uma boa morte” para o paciente e para os que ficam. Os pesquisadores concluíram que sonhos dos moribundos e outras manifestações oferecem conforto a eles e aos que os pranteiam.

Até hoje ninguém retornou efetivamente da morte, isso sem falar nas experiências de quase morte. De modo que a despeito de pesquisas e suposições nunca teremos certeza sobre o significado dos fenômenos que antecedem o instante da morte. Quanto a mim, realmente não sei o que dizer dado que até hoje me impressiona a lembrança da moribunda em seus últimos momentos, apontando em direção à porta e descrevendo as pessoas que ali estariam presentes, todas elas mortas, absolutamente mortas. Vieram me buscar - foram suas últimas palavras.

Vida longa

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Um conhecido, autoridade do Judiciário e hoje aposentado, certa vez me confessou ser o seu barbeiro - ele dizia “barbeiro” e não “cabeleireiro” - a pessoa que talvez soubesse mais sobre a sua vida. Mais que a minha mulher - acrescentou.

De fato as relações que mantemos com os “barbeiros” são incomuns. Talvez a cadeira onde nos sentamos para o corte tenha algo de mágico porque depois de algumas visitas ao profissional a intimidade se instala. Sei, por exemplo, de detalhes da vida de meu “barbeiro” que, certamente, ele confia a poucas pessoas. Por outro lado já contei a ele particularidades pessoais que nunca abri a ninguém. Pode-se estranhar o fato, mas é muito comum – acredite.

Outro lugar que se presta bem a confissões é a mesa de bar. Reunir-se com um amigo num bar para uns goles pode resultar numa curiosa troca de informações sobre as mais escabrosas aventuras. Não há lugar onde a confiança mútua entre bons amigos se revele tão intensa como numa mesa de bar.

Há pouco tempo fui almoçar com um amigo que insistia muito em me rever. Conversamos sobre tudo. Entretanto, houve um momento em que ele se mostrou muito sério e reflexivo. Perguntei se dissera a ele algo inconveniente. Responde-me que não. Na verdade nos últimos tempos vinha se digladiando com sensação ruim da qual não conseguia se livrar. Contou-me que desde dois meses antes de nosso almoço sofria ao ver as pessoas com quem cruzava na ruas. Não entendi bem e perguntei se não estaria ele sofrendo da tal “dor do mundo”. Tem gente que carrega nas costas a “dor do mundo” e sofre por isso. Dizem que Glauber Rocha era assim, não sei se verdade.

Meu amigo arriscou meio sorriso e negou sentir a tal ‘dor do mundo”. Relatou-me que com ele acontecia ver pessoas vivas e imaginá-las mortas. Topava com alguém, observava o rosto da pessoa e já compunha o quadro dela morta, dentro do caixão, coberta com flores, terço nas mãos imóveis. Ora, isso tirava a graça do mundo - disse ele. Pensar a todo instante na precariedade da vida, saber que aquela moça tão cheia de força e beleza estaria morta um dia, vê-la dentro do caixão, observar a face sem vida, isso era demais. A vida perdia o encanto. Estávamos todos condenados. A vida nada mais era que uma grosseira simulação de fatalidades inevitáveis.

Não soube bem o que dizer ao meu amigo. Lembrei-o de que já não éramos jovens e, talvez, a maior proximidade com a possibilidade da morte o estivesse afetando. No fim notei que meus argumentos naufragavam diante de realidade sobre a qual o melhor para os vivos é nem pensar.

Quando nos despedimos desejei vida longa ao meu amigo. Ele sorriu, deu-me um abraço e partiu. Fiquei um tempo parado vendo-o afastar-se. Lá ia ele matando as pessoas a quem encontrava nas ruas, reduzindo-as a cadáveres dentro de seus esquifes, apartadas precocemente desta vida nem sempre prazerosa, mas à qual nos agarramos tanto.