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Finados

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Há quem não acredite em certas histórias acontecidas em pequenas cidades do interior e as atribuam à fabulação de escritores. É no que dá ser ficcionista: quem escreve um livro corre o risco de, a partir daí, não ser tomado a sério pela tendência de inventar tudo o que diz.

Não se pode negar que isso de fato aconteça a alguns escritores. Perdem eles o passo da realidade. Conta-se que para Balzac suas personagens eram tão vivas quanto as pessoas reais que o cercavam. Quando ele se reunia com sua família dava notícias sobre suas personagens: aconteceu isso e aquilo com fulano etc.

Outro ponto é que muito do que se conta sobre habitantes de lugarejos precisa ser datado: mesmo as pequenas comunidades foram assoladas nas últimas décadas pelos meios de informação. Daí que se descaracterizaram. Com o surgimento de uma juventude integrada com o mundo exterior os hábitos mudaram e personalidades estranhas ou arredias deixaram de ter espaço para as suas esquisitices.

Feitas essas ressalvas considere-se a existência de pessoas, moradoras de lugarejos, que passam suas vidas no interior de suas casas sem jamais saírem à rua. Estou falando sobre períodos de 30, 40, 50 anos de reclusão voluntária durante os quais essas pessoas ocupam-se de funções domésticas. Algumas delas quase nunca são vistas; outras costumam vir à janela que dá para a rua, onde passam grande parte do tempo. Da janela observam o escasso movimento e têm oportunidade de conversar com outras pessoas. Passam-se assim décadas num estilo de vida que certamente será incompreensível para a maioria das pessoas que vive nas cidades.

Conheci algumas pessoas assim, de saudosa memória. De uma delas, em particular, lembrei-me hoje. Era uma senhora que envelheceu tendo como moldura o batente da janela de sua casa.  Podia-se vê-la ali, todos os dias, excetuando-se os raros períodos em que sua saúde era abalada por um mal sempre menor. Da janela ela via um pedaço do pequeno mundo em que vivia: um trecho de rua não asfaltada e algumas casas defronte a dela.

senhorajanelaReligiosa, a senhora fazia suas orações em horas certas, tendo o rosário à mão e não sendo interrompida pelos passantes que conheciam os seus hábitos. Muito calma e comedida, a mulher da janela agitava-se numa única ocasião durante o ano: às vésperas do dia de finados. Nesse dia desaparecia ela de sua janela durante largos períodos.  Sabe-se que então passava horas no jardim que mantinha nos fundos de sua casa, cuidando das flores que mandaria para o túmulo do filho.

Ao amanhecer do dia seguinte, muito cedo, lá estava ela no seu posto, aguardando a chegada das suas comadres. Quando elas chegavam, repetia-se um ritual que a cada ano atraía mais observadores: a senhora da janela rezava em voz alta; depois, pegava as flores, beijava uma a uma, e as entregava às comadres recomendando que fossem levadas ao túmulo do filho. Então fechava a janela e só voltava a ser vista no dia seguinte.

Com o passar do tempo o lugarejo cresceu: a rua foi asfaltada e as casas defronte à janela deram lugar a prédios. Envelhecida, a senhora já não vinha tanto à janela. Por fim as comadres morreram e a doença que não poupa ninguém prendeu a senhora ao leito.

A senhora da janela curiosamente morreu e foi enterrada num dia de finados. Os tempos eram outros e já ninguém conhecia a sua história. Meses depois a casa onde ela viveu foi vendida e no lugar dela existe atualmente um prédio cujos moradores nada sabem sobre o passado do lugar.

Lembrei-me da senhora da janela hoje, dia de finados. Quando for ao cemitério vou procurar pelo túmulo dela e quem sabe acenderei uma vela.

Pelos velhos tempos.