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Ainda ela

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Sim, a morte. Não ia falar sobre ela, mas…. Não é que se apresentou de novo? Sem avisar. Inesperadamente. Sorrateira como sempre. Como sempre não se fez anunciar. Sem pródromos.  Assim, num piscar de olhos, certeira, roubou mais uma vida. Talvez ela tenha prazer nisso. Aprecia instalar a desordem, desconstruir. Deixar atônitos os que presenciam seu ato. Intimidá-los. Avisar a cada um que talvez seja ele o próximo. Rir a cambalhotas, olhando os que choram em torno do caixão. Futuros pendentes. Mais hora, menos hora, virá buscá-los. Um a um.

Desta vez foi uma velha conhecida a quem eu não via a algum tempo. Semana passada fez contato. Estava bem, apesar da idade. Uma dorzinha na perna esquerda, quem sabe a coluna, quem sabe a necessidade de trocar o colchão. Falamos sobre noites mal dormidas, travesseiros altos, preocupações disparatadas que nos agoniam justamente nas madrugadas. Ensaiamos iniciar conversa sobre os filhos, mas depressa desistimos. Por onde andarão esses que se alongaram de nós? Em que mundos estarão metidos? Eles que agora nos olham como pessoas de ontem. Ultrapassadas? Não é que de tempos para cá as crias têm-se revelado mais pacienciosas com a gente? Imagine que me pegam pelo braço toda vez que entro e saio do carro - disse a amiga.

Ninguém sabe. A amiga não sabia. Talvez enquanto falasse ao telefone comigo a morte a espreitasse. Talvez a morte tenha uma agenda com datas, horários. Para ela não contam os interesses daqueles que levará. Se a amiga precisasse de mais um dia, só mais um dia, para terminar algo essencial, então não se poderia conceder a ela o benefício de algumas simples horas?

Estive no velório. Observei a face emudecida da amiga. Recordei as últimas palavras que trocamos. Não derramei lágrimas. Abracei o viúvo inconsolável. Estava junto ao caixão quando pressenti que a morte estaria bem ali a observar-nos. Afinal, quem entre nós seria sua próxima vítima?