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Livros

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Então me rendi ao Kindle. Olhe que não foi sem resistência. Amo os livros, o contato com o papel e até a poeira que se junta nas velhas páginas. Existe sensação melhor que rever anotações feitas há anos nas páginas de livros? Não há jeito melhor de nos reencontrarmos com a pessoa que um dia fomos. Aquele parágrafo destacado que causou tanto interesse ao leitor que fomos ontem talvez seja muito revelador sobre a personalidade que assumimos na época da leitura. Livros anotados são confissões não só sobre nossos interesses, mas documentos sobre nossas almas. Por que destaquei essa página que hoje parece nada me dizer? Eu era outro, alguém que desapareceu de mim, alguém que já não sou, mas ainda vive nas páginas de livros que li no passado.

Livros são companheiros inseparáveis. Guardam ideias que nos interessaram e comoveram, conceitos que moldaram nosso modo de pensar e ser. Que prazer circular entre as estantes, vez ou outra destacando delas um livro de que nos havíamos separado a muito. Ou redescobrir um escritor cuja obra nos atraiu. Cada página uma revelação, labirinto de significantes que moldam a atenção do leitor.

Ao longo da vida corre-se sempre o risco de perder-se livros. Isso sem falar no destino a eles reservado após a morte de seus proprietários. Nunca me sai da cabeça a biblioteca de um professor, meu vizinho. Quando morreu a mulher dele apressou-se em colocar os livros na caçada para quem quisesse os levar. Soubesse que a velha na verdade odiava aqueles livros contra os quais competia na atenção do marido. Daí livrar-se dos inimigos que enfrentara vida afora.

Também perdi muitos dos meus. A vida é longa. Muitas mudanças. Numa delas perderam-se os livros. A transportadora bem que se ofereceu para indenizar-me. Mas, como fazê-los entender que o dano era irreparável? Como entender que parte da minha alma se fora com os livros perdidos?

Agora o Kindle. Você faz o download e abarrota o leitor com vários títulos. Leva consigo uma biblioteca que pode acessar a qualquer momento. Pode fazer anotações, marcar parágrafos, enfim…. Muito prático. Mas, não há folhas, poeira, cheiro. O Kindle é insensível, não participa: ele serve. Nele todas as páginas são iguais, mesmo as de livros diferentes, exceto pelo conteúdo. As publicações estão descaracterizadas. Não há capas grossas, sem orelhas. Mundo plano, gráfico, com os livros escondidos atrás da telinha.

Estou me habituando à modernidade, embora ainda resista.

Escrito por Ayrton Marcondes

30 maio, 2017 às 2:03 pm

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