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Os multi-ideológicos

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No seu excelente “Dicionário de Filosofia”, Nicola Abbagnano faz longa digressão sobre a definição de ideologia. Ele ensina que, em geral, o termo refere-se “a toda crença usada para controle de comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença, em seu significado mais amplo, como noção de compromisso ou conduta, que pode ou não ter validade objetiva”.

Abbagnano acrescenta que o significado de ideologia consiste em sua capacidade de controlar e dirigir o comportamento dos homens em determinada situação. Isso representa que princípios ideológicos arraigados interferem no modo de agir das pessoas dentro das circunstâncias em que agem. Derivam daí comportamentos que observamos, ditados por essa ou aquela crença.

Recentemente o presidente da República declarou-se multi-ideológico. Justificando a sua posição o presidente afirmou:

“Um chefe de Estado não é uma pessoa, é uma instituição, não tem vontade própria todo santo dia, mas tem que levar a cabo os acordos que sejam possíveis”.

Essa posição, talvez útil no trato com diferentes situações e governos, pretende caracterizar uma situação multi-ideológica apensa não ao homem que assim professa, mas ao cargo que ocupa. Seriam as necessidades maiores do Estado a sobrepujar as do homem que é servidor dele; cabe ao servidor deixar de lado a vontade própria, aderindo momentaneamente a vertentes ideológicas que se chocam desde que contribuam para levar a cabo acordos que sejam possíveis.

O assunto é palpitante e está a merecer análises mais profundas. De que o mundo globalizado exige de autoridades maior cintura nas negociações, sem o que emperrariam as relações entre países, não resta dúvida. Mas, como entender, do ponto de vista pessoal, a adoção de um perfil multi-ideológico?

As campanhas para as eleições presidenciais que se aproximam constituem-se em terreno fértil para a análise de comportamentos. Já surgem as primeiras inversões de posições ideológicas sobre assuntos polêmicos. Teses ardorosamente defendidas no passado sucumbem à necessidade de mudança, adotando-se posicionamentos mais caros à opinião popular. De repente o que está em jogo é o interesse maior da conquista de eleitores.

Talvez a atenção à reafirmação ou negação de princípios ideológicos expressos anteriormente sirva ao eleitor para decidir com mais confiança o seu voto nesse ou naquele candidato.

Por onde andam os materialistas?

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Há muito tempo não ouço alguém dizer: fulano de tal não passa de um materialista. Pois houve período em que dizer uma coisa assim funcionava como um tipo de acusação. O rótulo “materialista” nem sempre condizia com uma postura filosófica, mas com um modo de ser visto como negativo. Evidentemente existe nesse modo de ver muita simplicidade, mas o materialismo serve muito bem à demonstração de como certos termos e doutrinas são incorporados ao cotidiano, sendo usados em geral de modo diferente de seu significado original. A lembrança das conotações da palavra “burguês” é mais que suficiente para ilustrar até onde esse tipo de coisa pode chegar.

Nicola Abbagnano no seu excelente “Dicionário de Filosofia” ensina que o termo “materialismo” foi usado, pela primeira vez, por Robert Boyle, em 1674. O termo designa, em geral, toda doutrina que atribua causalidade apenas à matéria. Ou seja: o materialismo consiste em afirmar que a única causa de tudo é a matéria. Nega-se, portanto, a existência da alma e do mundo espiritual ou divino.

Deixando de lado as várias formas de materialismo (metafísico, metodológico, dialético, histórico etc.) vamos ao ponto em que Abbagnano nos diz que o materialismo da metade do século XIX tem caráter romântico porque pretende ser uma doutrina de vida, destinada a vencer a religião e suplantá-la. Deriva daí o fato da Ciência ter sido transformada na nova tábua de verdade absoluta.  A isso dá-se o nome de cientificismo que, conforme explica Abbagnano, constituiu a vanguarda romântica da ciência no século XIX.

Creio ter sido ligado ao significado de doutrina de vida destinada a vencer a religião, que o materialismo esteve em pauta, em nosso meio, por boa parte do século XX. Lembrei-me disso por acaso ao assistir, pela televisão, o filme em que o ator Carlos Vereza interpreta um dos grandes expoentes do espiritismo no Brasil, o médico e médium Bezerra de Menezes. No filme há uma cena que ilustra bem o embate entre um credo, no caso o espiritismo, e o materialismo: Bezerra de Menezes está presidindo uma reunião espírita quando é desafiado por um materialista a provar que existe algo além da morte, que os espíritos reencarnam e assim por diante. O que os materialistas querem é um debate que não é aceito por Menezes. O médium justifica-se dizendo que só aceitará o debate no dia em que os materialistas provarem a utilidade de sua doutrina para ajudar aos seus semelhantes que sofrem e assim por diante.

Quem assistiu a pregações em igrejas até meados do século XX terá ouvido da boca de padres e bispos grandes críticas ao materialismo identificado como um modo de ser ligado aos interesses, quando não carnal. Aliás, esse significado talvez seja ainda o mais corrente, sendo usado quando se quer caracterizar pessoa sem preocupações com o espírito e voltada para as coisas do mundo, para a posse etc. Note-se que esse modo de ver funda-se em raízes do passado, às tendências materialistas de classes ou grupos mais identificadas com o conforto e o prazer, a um comportamento que Abbagnano nos adverte ser mais conveniente chamar de hedonismo.

Conheci no passado várias pessoas rotuladas como materialistas, pelo menos era assim que os que com elas conviviam as classificavam. Creio que hoje os tais materialistas que conheci passariam por simples consumistas que não seguem religiões. Tomando o termo materialismo no sentido em que é mais utilizado popularmente poderíamos dizer que o mundo atual está cheio de materialistas, consumistas inveterados, pessoas voltadas para o lucro etc. Mas quanto ao sentido filosófico e mais exato do termo, não sei se ainda andam por aí muitos materialistas.

O “Dicionário de Filosofia” de Nicola Abbagnano tem edição em português, ano 2000, pela Martins Fontes. O filme Bezerra de Menezes pode ser encontrado em locadoras.