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O dia em que Carmem Miranda morreu

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Você deve ter lembranças de seu tempo de criança, algumas delas inesquecíveis. Para mim dois acontecimentos de repercussão nacional ficaram bem guardados na memória. O primeiro foi o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. Que dia! Longe do Rio, nas pequenas comunidades do interior do país, o desaparecimento de Getúlio provocava comoção. Um sem número de versões sobre as causas do suicídio corriam por toda parte. O atentado da Rua Toneleiros no qual Gregório Fortunato tentara matar Carlos de Lacerda fora o estopim de uma crise sem volta para Getúlio. Pelo rádio as notícias chegavam do Rio dando conta da presença de uma multidão no funeral do presidente morto. De fato, Getúlio saia da vida e entrava na história.

Mas, inesquecível mesmo foi o dia em que ouviu-se pelo rádio sobre a morte de Carmem Miranda. Carmem talvez tenha sido entre todas a pessoa mais amada pelo povo brasileiro. Estrela de renome internacional, Carmem morava no coração do povo a quem encantara com suas interpretações musicais sempre de grande sucesso. A morte dela, inesperada, logo após apresentar-se num show nos Estados Unidos provocou enorme comoção.

Embora menino ainda pequeno guardo daquele dia a imagem de minha mãe e minha tia chorando. Perdera-se alguém da família, a “uma de nós” que emprestava brilho aos dias. E dizer que Carmem quando morreu há catorze anos não se apresentava no Brasil. Entre lágrimas a duas lembravam-se da fenomenal recepção a Carmem quando de sua visita ao país após o primeiro ano de sucesso nos EUA. Falavam sobre a apresentação dela no Cassino da Urca no qual o público, favorável à Alemanha e contrário aos EUA - isso em plena guerra – dera as costas à grande cantora e atriz brasileira. Mas - o principal - ponderava-se sobre o casamento ruim que tanto a magoara. Atribuía-se ao marido a responsabilidade pela vida complicada de Carmem fator importante para seu fim precoce.

Ontem assisti a um documentário sobre Carmem Miranda. Pude rever imagens da portuguesa que imigrou para o Brasil com um ano de idade e aqui se tornou um dos maiores ídolos de nossa história. Ouvi sobre as eternas acusações feitas a Carmem de que ela traíra o Brasil americanizando-se. Me deu saudades daquele tempo. Tive saudades daquelas duas mulheres - minha mãe e minha tia - chorando a morte de Carmem.

Vi cenas do enterro de Carmem Miranda realizado num dia em que o Rio parou. Cenas arrepiantes de uma massa humana consternada marcaram um momento grave na vida dos brasileiros.

Dentro do caixão, exposta aos olhares consternados de seu público, Carmem Miranda apresentava o semblante sereno. Como Getúlio, pouco tempo depois dele, Carmem saia da vida e entrava na história.

Música brasileira

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Um músico profissional me pede para citar cantoras brasileiras “de verdade” em atuação no momento. Sinuca de bico. Disfarço, perguntando a ele o que significa, afinal, ser cantor “de verdade”. Ele sorri e diz: você bem que sabe. Trata-se de gente que não só tem voz, mas é capaz de cantar qualquer coisa. Gente que tem bossa, acrescenta. Termina criticando essas cantoras que, segundo ele, “miam” e não passam disso. Ficam miando uma frase depois da outra. Não são, por exemplo, como a Lenny Andrade, essa sim cantora “de verdade”.

Conheço o músico desde os meus tempos de criança. Na época dos Beatles ele simplesmente enlouqueceu com o som da rapaziada britânica. Lembro-me de que no lançamento do álbum “Help” o meu amigo músico vivia a cantarolar as novas músicas do conjunto. Aliás, a tentar reproduzir na sua guitarra os acordes dos rapazes de Liverpool coisa que muitas vezes provocava alguma reação na vizinhança.

Não sei se o músico tem razão ao dizer que hoje em dia não se encontram cantoras “de verdade”. Recentemente assisti a alguns programas do “The Voice Brasil” e não me senti seguro sobre as promessas de bons cantores. Temo ter ouvido no último programa da série algumas desafinadas dos participantes que poderiam muito bem ser atribuídas ao nervosismo. Mas, eram os finalistas, não?

Talvez por essa razão eu tenha me cansado dos barzinhos. Propagou-se neles a música ao vivo padrão executada por um músico ao violão e uma cantora com temas da bossa-nova. Em muitos desses casos acho que pode se aplicar a crítica do meu amigo músico. A coisa toda soa muito repetitiva e seria preciso muito talento para que se fruísse alguma diferenciação. Serão necessárias doses a mais de alguns drinks para que a música tocada venha a se integrar ao espírito da diversão. Mas, é bom não se esquecer de que não se pode exigir de todo mundo recursos de atuação realmente profissional.

O meu amigo músico é uma grande figura. No meu entendimento ele já habita aquele pórtico no qual a filtragem sobre o que tem ou não qualidade torna-se muito sofisticada. Ouvidos como o dele treinados e auxiliados por cultura musical, dificilmente aceitam o que não é bom. Isso eu disse a ele, colocando-me muitos e muitos degraus abaixo nas possibilidades de avaliação. Foi quando ele terminou a conversa, dizendo:

- É, mas você gosta de boa música e isso é quase tudo.

Pois é, o diabo é o “quase”.

Dominguinhos

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No início da década de 90 passei uns tempos no sertão da Bahia. Quando desembarquei no aeroporto de Salvador não fazia ideia do que me esperava. De cara apaixonei-me pela capital que conheci a bordo de um ônibus circular. A descida desde a Praça Castro Alves à Cidade Baixa com a visão do mar e barcos ancorados ao lado do Mercado Modelo está entre os momentos mais emocionantes da minha vida.

Anoitecia quando tomei um ônibus na estação rodoviária rumo ao sertão. Meu destino era a cidade de Euclides da Cunha, antiga Cumbe, local por onde passaram as tropas do governo federal durante a Guerra de Canudos, em 1897.

Naquela época não existiam as estradas federais que hoje permitem deslocamentos mais rápidos na região sertaneja. De todo modo passei algumas horas dentro de um ônibus no qual viajavam pessoas do interior, em geral carregadas de compras feitas na cidade. Além do que muitos passageiros desciam durante o trajeto enquanto outros os substituíam. Na medida em que avançávamos as coisas tomavam rumo diferente, inclusive com o embarque de pessoas trazendo pequenos animais.

Não sei como será hoje a rodoviária de Euclides da Cunha. Naquela época pareceu-me um lugar isolado, distante da cidade, na verdade com ares de abandonado. Mas, ali encontrei um táxi no qual relutei em entrar porque faltava a ele uma das portas…

Quando o táxi chegou à cidade não pude conter o meu espanto. Uma grande festa ali se realizava. Numa praça, sobre um palco, apresentavam-se vários artistas de renome, entre eles o incrível sanfoneiro Dominguinhos.

Depois de deixar as minhas coisas no hotelzinho - meu quarto não era coberto fato que me explicaram porque ali nunca chovia - saí à rua porque não conseguiria mesmo dormir com toda aquela barulheira. Pois foi justamente o momento em que Dominguinhos começou a se apresentar. Devo dizer que se existe identidade entre um músico e o seu povo esse justamente é o caso de Dominguinhos. Ao começar a tocar e cantar ele, herdeiro de Gonzaga, estabeleceu um pacto com o público subitamente imantado a ele. De repente desapareceram a pobreza do lugar, a seca, os infortúnios daquele gente que se unia fraternamente ao som de uma música que a eles pertencia, interpretada por um dos seus. Tornava-se comovente observar nas faces do público a alegria, a gratidão por aqueles momentos nos quais se tornara possível conviver com um ídolo cuja arte a todos apetecia.

Dominguinhos é artista de primeira linha, em seu gênero musical insuperável no palco. Grande voz e invejável domínio de seu instrumento fazem dele um ícone da música brasileira. No dia seguinte um amigo apresentou-me ao Dominguinhos com quem troquei rápidas palavras. Homem simples, perfil de sertanejo, figura por demais agradável.

Hoje o filho de Dominguinhos divulga que o estado de coma em que o pai se encontra é irreversível. Segundo o filho o músico nascido em Garanhuns está, pois, por nos abandonar, deixando um imenso vazio nos quadros da arte nacional. Perda irreparável para a música e seus milhares de fãs.

Axé e preconceito

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No prédio onde moro há um rapaz que presta serviços de manutenção. Ele passa os dias nos corredores dos andares dedicando-se aos mais variados tipos de tarefas. Nas longas horas de trabalho, em todas elas, faz-se ele acompanhar de um radio de pilhas no qual ouve músicas de axé. Ele ama o axé. Aliás, conhece de cor a letra de todas as músicas, fato que permite a ele cantar junto. Não canta alto demais, mas canta em nível suficiente para que o ouçamos. Para esse rapaz não existe outro mundo que não o do ritmo das músicas interpretadas por Ivete Sangalo, Chiclete com Banana e muitos outros. Não sei dizer se o rapaz alguma vez presta atenção ao que está fazendo.  Posso afirmar, sem erro, que ele parece feliz: nenhuma barreira se interpõe entre ele e o som das músicas que o elevam da materialidade banal a um estado de permanente transe.

Tem, portanto, o axé a funcionalidade de falar de perto a uma vasta gama de espíritos conclamando-os ao enlevo e à dança. A agitação incansável dos corpos que se entregam aos trejeitos estereotipados que o ritmo desperta é de conhecimento geral. As apresentações ao vivo dos ícones do axé provocam o delírio das multidões, sendo notável o encolhimento das individualidades que passam a reagir em uníssono. É o que se vê, é o que se constata.

Até ai tudo bem. Mas, existe preconceito contra o axé? Seria esse gênero musical apanágio das camadas sociais incultas que por ele são magnetizadas? Representaria o axé uma subcultura musical direcionada a espíritos mais grosseiros e cerceados culturalmente a fruições de melhor nível?

As perguntas anteriores podem carecer de sentido, mas tornam-se pertinentes a partir das declarações feitas por uma cantora de axé. Segundo ela existe um desprezo em relação ao axé por gente que se acha superior só porque conhece John Coltrane. E assim da noite para o dia, o falecido músico de jazz, John Coltrane, vê-se confrontado com um ritmo popular brasileiro em ascensão, sendo tomado – ele, Coltrane – como parte integrante da cultura de poucos privilegiados que o admiram e ouvem e que, por conseguinte, não aceitam o axé.

Em primeiro lugar torna-se necessário esclarecer que John Coltrane não pode ser tomado como paradigma de determinado nível cultural seja ele qual for.  A música de Coltrane pode não ser de fácil consumo, sendo mais afeita aos aficionados do jazz. Nem por isso o próprio jazz pode ser definido como gênero musical restrito à intelectualidade, conforme demostram os mais variados festivais desse gênero musical aos quais comparecem os mais díspares tipos de público. De que o jazz tem cracterísticas próprias e oferece maior convite à introspecção que um gênero como o axé não se  discute. Mas, daí a se imaginar uma separação estanque entre os que ouvem jazz e os que ouvem axé há um Rio Nilo a se abrir milagrosamente. Posso gostar de jazz e de axé sem que isso comprometa a minha definição de intelectualidade.

Não creio que exista preconceito em relação ao axé. Se algum preconceito existir não será em relação ao gênero musical, mas ao leque explosivo de camadas sociais que o consomem. Na verdade é a rapidez da mobilidade social e a percepção de que ninguém sabe no que tudo isso vai dar que pode assustar aos espíritos mais cautelosos. É bom lembrar que, assim como o jazz, o axé não pode ser usado como instrumento de caracterização de camadas sociais.

Retorno ao rapaz que canta nos corredores. Nutro contra ele  - e em relação a toda a nação de pessoas que acham que todo mundo deve ouvir música o tempo todo  - a mais justa indignação. O axé me irrita na medida em que o cidadão encosta o carro em lugares públicos e abre o porta-malas para dividir com o mundo o seu prazer em ouvir música com o som nas alturas. Detesto ouvir axé durante as compras em supermercados, odeio a bebedeira de domingo no terreno próximo à minha casa quando a turma come e dança ao som do axé. Nessas horas preferiria o John Coltrane, de preferência solando My Favorite Things , isso se for de todo impossível realizar os meus afazeres dentro do mais absoluto silêncio.

Para terminar não custa lembrar que qualquer gênero musical torna-se mais palatável quando executado dentro do contexto que a ele é mais apropriado. Não há como não dançar com o Chiclete com Banana durante um show em que eles se apresentam. É uma loucura, alegria contagiante, conforme constatei e adorei certa ocasião durante um FORTAL que, para quem não sabe, é um carnaval fora de época em Fortaleza.