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Livro: Machado de Assis por dentro

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Ao vasto universo de estudos machadianos soma-se, agora, o livro do escritor Gilberto de Mello Kujawski que recebeu o feliz título de “Machado de Assis por dentro”. Explica-nos Kujawski que Machado de Assis abriga em si muitos “dentros” daí a escolha do título. De fato, o chamado “Bruxo do Cosme Velho” é homem e escritor de muitas facetas, algumas delas ainda não devidamente exploradas. É nesse hiato que se insere o livro de Kujawsky, avançando em territórios tidos por explorados e esgotados, mas deitando novas luzes sobre a obra de Machado de Assis.

Entretanto - é bom que se diga - não se trata de uma simples revisita ao universo machadiano. Aqui não se repetem interpretações exaustivas que, decoradas, passaram a pertencer ao domínio público. Kujawsky navega em mares revoltos com destemor, frequentemente deixando de lado conclusões já sedimentadas, por vezes confrontando-as com argumentos de fina análise. Esse é o caso, por exemplo, do chamado “enigma de Capitu” que tem apaixonado gerações de críticos e despertado calorosas discussões. Para Kujawsky todo o barulho em torno do assunto carece de sentido dado que a possível traição de Capitu prende-se ao perfil do escritor Machado de Assis, definido como um “profissional da dúvida”. Em assim sendo, Machado criou e legou à posteridade uma situação de fato insolúvel dado que nem ele mesmo seria capaz de dizer se Capitu traiu ou não. Nesse fato toda a bruxaria que se atribui ao escritor, mestre em expor as mazelas humanas como a se deliciar com as imperfeições.

Há que se destacar, também, que o livro impressiona pela análise filosófica dos textos machadianos a partir da qual Kujawsky busca aproximar-se do grande escritor. Trata-se do “por dentro” exercido sob o viés filosófico, área de domínio do crítico. Ao caracterizar Machado de Assis como um clássico em moldes apolíneos Kujawsky propõe a releitura de aspectos importantes da obra machadiana ligados ao humor, o ceticismo, o ateísmo ou o agnosticismo, o pessimismo e assim por diante. A partir daí nada escapa à análise do crítico para quem Machado de Assis recebeu da cultura grega dois legados: o humanismo e a supremacia da razão, fatores esses determinantes da obra que escreveu.

Demais forçoso é dizer que o texto justamente não nos surpreende dada a conhecida cultura filosófica de Kujawski, representante do pensamento de Ortega y Gasset entre nós. Munido de ferramentaria intelectual extremamente vigorosa Kujawsky invade, sem cerimônia, o espaço interno dessa alma multiforme que foi Machado de Assis, condição que abre muitas possibilidades de análise. É assim, por exemplo, que nos é apresentado um Machado de Assis vivendo numa réplica da sociedade vitoriana que Pedro II procurou instalar no Rio de Janeiro. Nesse contexto Machado de Assis é interpretado como um caçador das transgressões que minavam a falsa moral vigente na Corte. Para Kujawski Machado seria a um só tempo crítico e cúmplice da situação reinante, jamais algoz ou inquisidor. Movia-o a formação humanista que não permitia a ele compactuar com a farsa e a mentira. Escreve Kujawski:

“Servindo-se da lâmina cortante da ironia, Machado descobria e analisava, metodicamente, os fundos falsos, a comédia da hipocrisia, o teatro do farisaísmo que o cercava por todos os lados”.

“Machado de Assis por dentro” é publicação da Editora Migalhas e apresenta-se constituído por dez ensaios, cada um deles voltado a aspectos diferentes da obra machadiana, mas tendo como elo de ligação o perfil clássico do Bruxo.  São ensaios saborosos, profundos e que fazem pensar. Acompanham-se da erudição do seu Autor sem que ela se imponha como demonstração de conhecimento ou arrogância: aqui a erudição não passa de complemento necessário à elucidação do enigma, ferramenta de que faz o uso o escritor para aproximar-se do totem e dele extrair a essência.

“Machado de Assis por dentro” é excelente livro, obra de valor que tem profundidade de análises, novidade de pontos de vista e fecunda participação de conhecimentos filosóficos. Livro de quem “sabe Machado” e por ele foi irremediavelmente encantado, legando-nos textos deliciosos de ler, que nos fazem refletir.