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A catadora

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Árvores desnudas, afrontadas pelo vento. De onde vem ele, soprando fundo e forte, cantarolando, uivando, batendo nas janelas, levantando poeira, confundindo? Em quais latitudes terá se formado, de onde sua força para romper barreiras, cruzar mares, impulsionar ondas, empurrar barcos, invadir continentes sem qualquer cerimônia?

As arvores da praia têm caules grossos e fortes, não se curvam. Seus ramos sem folhas travam combates com o vento. De vez em quando uma extremidade sucumbe, é arrancada e a vida que nela demora a desaparecer cai sobre a calçada. Mas é só um vacilo. Depressa a árvore se recompõe, como alguém que se veste rapidamente para não deixar ver algum desassossego.

O vento não desiste. Atravessa a rua, choca-se contra os prédios, declara-se soberano. É possível ouvir as histórias que conta sobre gentes e lugares por onde passou. Traz consigo vagos odores de perfumes, emanações de corpos e restos de tragédias talvez não completamente consumadas. Na voragem de uma lufada mais forte ouvem-se, distantes e imprecisos, gritos de pessoas em prédios desabando, derradeiros suspiros de homens do mar cujos barcos imensas ondas afundaram.

A primeira hora da manhã na praia é imprópria. É hora perdida, domínio da natureza na qual vez ou outra os homens se intrometem sem convite. Trata-se do momento em que forças naturais se integram, trocam energias e preparam o ambiente para o dia que há de vir. Há pouco amanheceu e o dia veio impreciso, cinzento, abafando as muitas cores as quais caprichosamente parece sobrepor. Os sinais de trânsito mudam seus tons preguiçosamente, como se houvessem trabalhado por toda a madrugada para nada. Paira a atmosfera de inutilidade sobre o existir das coisas inertes que o vento teima em deslocar, como a soprar jatos de vida na matéria inanimada.

Há a calçada, a areia e o mar que avança e se retrai, como se seu objetivo fosse inundar a terra, finalmente. Por vezes uma ave solitária surge do nada mas logo desaparece, sugerindo não ter existido, imagem de poeta talvez.

É nessa atmosfera pálida que ela irrompe. Vem de longe, de uma longa noite, de madrugada insone e trabalhosa. É velha e arrasta uma pequena carroça na qual traz a parte do lixo que coletou nas ruas da cidade durante noite. Move-se devagar porque ninguém a espera em nenhum lugar. De vez em quando pára, avança sobre os sacos de lixo deixados por um dos prédios, rasga-os e tira coisas que coloca na carroça. Depois, retoma o seu caminho.

Quando a velha entra na avenida da praia, o vento a recebe como intrusa. Ele faz balançar o corpo dela e ameaça levantar a saia suja. A velha resiste. Em vão o vento toma outra direção, agride os cabelos brancos que, desgrenhados, duros e insolentes, não se movem.

A mulher avança devagar, desafiando o vento. Também ela tem histórias que não contará porque ninguém a ouvirá. É assim que vai passando. O vento que veio de tão longe, parece resignar-se: não pode impedi-la de prosseguir. Ela é a vida que se esvai, o fracasso da uma ordem social, testemunho da possibilidade de sobrevivência em condições impossíveis. Ela é o outro lado de todos nós, que nada já pode derrubar, exceto a morte.

A velha passou com sua carroça pela avenida deserta. Eu a vi. Ainda assim não é possível dizer se ela existiu de fato ou se foi apenas mais uma imagem trazida pelos ventos que batem nas nossas janelas nos alvoreceres, como este que chegou aqui durante a madrugada.

Escrito por Ayrton Marcondes

12 agosto, 2009 às 10:15 am

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Postado em Cotidiano

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